domingo, 2 de setembro de 2012

Rabanete e o Príncipe Desencantado

Por Érika Batista


             – Uf! Cinquenta metros! No mínimo essa mulher deve ter 90 anos pro cabelo ter crescido desse jeito – resmungava Des Encantado, subindo pelas tranças que pendiam pela janela da torre.
             Foi com dificuldade que ele alcançou a janelinha, pulando pra dentro sem qualquer ajuda. De lá vinha a voz melodiosa que, segundo seu pai, lhe guiaria pelo bosque em direção a sua amada. Só que muito antes de pôr os pés naquela saleta ele já adivinhara (pelos berros agudos que ouvia de lá) a sua triste sina: a maldita era metal.
             – E ainda por cima usa aplique! – exclamou Des Encantado.
             Esse comentário fez a moça de cabelos roxos e curtos que “batia cabeça” numa imitação frenética de guitarra no meio da sala interromper seu juramento de vingança e olhar curiosa pra ele.
             – Bom dia pra você também – ela disse, sarcástica. Indicando com o queixo as tranças loiras e sedosas que estavam amarradas na pilastra, comentou: – Dá muito trabalho cuidar. O que esperava? Se estivesse na minha cabeça eu teria quebrado o pescoço com o peso. A vida é assim – deu de ombros. – Imagino que tenha vindo me salvar. Demorou. Mas eu não me admiro, magricela desse jeito. Pensei que iam me mandar um Encantado – a moça comentou, desdenhosamente, analisando-o.
             – Haha, muito engraçado – ele fez, com cara mórbida. – Infelizmente, eu sou um Encantado. Desmond, mas meus amigos, ou seja, o Gui, o Myke, a Rafa, a Bia e a Natty, me chamam de Des. O décimo quinto filho. Preterido e aviltado por todos. E aí você cresce e te mandam escalar uma torre atrás de uma qualquer, porque não vão dar-se ao trabalho de procurar uma princesa por você – ele tinha os olhos cheios de lágrimas nesse ponto. Por baixo da franja, é claro. – Eu tenho cara de Homem-Aranha? – bradou. – Nada contra o cara, ele é dos nossos – acrescentou depois, batendo no peito com um punho fechado. – Bem-vinda à minha vida! – concluiu, para dar efeito.
             A moça olhava para ele com os braços cruzados e uma sobrancelha erguida.
             – Terminou? – questionou, friamente.
             Irritado pela ausência de comoção com seu discurso, Des foi rude:
             – E quem é você, afinal?
             Nesse ponto a mulher ficou constrangida. Corou, desviou os olhos, mas decidiu que não podia mais adiar.
             – Meu nome é Rabanete, e... – começou, hesitante.
             – Rabanete?!!!
             Mesmo Des não pode evitar explodir numa gargalhada.
             – É que a mulher que me nomeou era contra estrangeirismos, tá? – Rabanete gritou, corada; mas Des não parou de rir. – A primeira coisa que vou fazer quando sair daqui vai ser mudar esse nome ridículo.
             – Mudar pra quê, pra Alface? – ele retrucou, causticamente. – Vai ter que pintar o cabelo de verde.
             – Grrr! – batendo os pés, ela deu-lhe as costas. Des, novamente desconsolado, aproximou-se da janela.
             – Que ótimo; subi cinquenta metros para resgatar um vegetal – o rapaz debruçou-se na janela e depois subiu no parapeito, enquanto resmungava – Seria lindo cair daqui. Toda a minha família ia se reunir em volta dos destroços e chorar por mim, e sentir minha falta. Se bem que é possível que nem ligassem. Provavelmente nem ligariam. Principalmente meu pai. Antes gostava de mim – agora eu não passo de um maricas inútil – ele estava acocorado na janela sem nenhuma segurança. – Mas me desculpe, eu não posso ser perfeeeeeeitooo! – cantarolou, olhando para baixo altamente seduzido pela ideia de saltar.
             Rabanete assistira aquela cena com a impassibilidade desdenhosa com que suportara o outro desabafo; mas então, vendo sua única chance de mudar de vida ameaçar sair voando pela janela (e isso sem asas), ela teve de interferir. Lutou contra a repulsa em fazer propaganda para algo tão nojento, mas não vendo outra saída, comentou audivelmente:
             – Tem um show dos Melancólicos na semana que vem.
             O impulso suicida de Desmond sumiu como por encanto.
             – Ué, desistiu? – Rabanete não pode deixar de debochar, vendo o rapaz descer da janela e arrumar a roupa e a franja.
             – Ele não fez nada que o dinheiro do ingresso não possa me levar a perdoar – disse Des, com ar cínico. – Bem, vamos acabar logo com isso – decidiu, tomando ares de eficiência. – Sabe tecer?
             – Eu não – ela falou, com uma careta de desdém. – Tenho só dezesseis anos, isso é coisa de velha; ‘tá me achando com cara de nerd?
             Des Encantado bateu na própria testa, cada vez mais exasperado.
             – Não é nem ao menos prendado o legume que me reservaram... – lamentou o rapaz, lançando um olhar cobiçoso à janela. E viu a trança amarrada no pilar. Ele andou até lá, pegando-a na mão. – Ei, Rabanete, nunca te ocorreu que se as tranças não estão grudadas na sua cabeça, você podia descer por elas? – ela enrubesceu.
             – Não sobra muito tempo pra isso quando dedicamos nossa vida à música, ‘tá legal? – ela desculpou-se, azeda, desviando o olhar. – E já estou cheia da sua tagarelice. Cale a boca e faça o que veio fazer antes que eu lhe arranque a língua com requintes de crueldade.
             Ele estendeu o cabelo loiro para ela.
             – Primeiro as damas.
             Rabanete avançou e botou com elegância meio corpo fora da janela. Mas repentinamente voltou, precipitando-se para dentro e caindo no chão. Levantou-se e começou a empurrar Desmond para o outro extremo do quarto. Estava tão pálida que ficara mais clara que o pó-de-arroz.
             – É ela, a bruxa! Meu Deus, ela vai ficar louca, vai me matar! Se esconde ali atrás do armário, rápido! Rápido! – Rabanete parecia tão apavorada que Desmond começou a tremer de medo também, e encolheu-se com o coração disparado no esconderijo que ela lhe designara. De lá pôde ver Rabanete correr uma cortina de renda branca sobre os pôsteres de homens cabeludos e de negro na parede atrás da cama, colocar uma harpa tirada de sabe-se lá onde sobre uma poltrona e ir prender a peruca dourada nos cabelos, recolhendo-a. Em poucos segundos, ouviu-se:
             – Rabanete, jogue suas tranças!
             E a moça obedeceu. Pouco tempo depois se ouviu no quarto a voz doce de uma velhinha, ofegando da subida. Desmond deu uma espiada, já mais calmo, e pôde ver com surpresa uma senhora com apenas alguns pés de altura, embrulhada num casaquinho de crochê e dona da melhor cara de vó que ele já encontrara. Estendendo para Rabanete um vasilhame tampado que tirara de uma bolsa a tiracolo, ela disse:
             – Está ficando cada vez mais difícil subir, minha queridinha. É esse meu reumatismo... estou tão desajeitada. Hoje quase deixei cair seus biscoitinhos.
             – Obrigada, mãezinha – agradeceu Rabanete, recebendo o pote com a mão trêmula e sentando-se na ponta da cama.
             – Às vezes me arrependo de ter te trancado aqui, mas era uma questão de necessidade, queridinha, com todos esses vilões soviéticos andando por aí... Uma moça não pode mais crescer segura hoje em dia. Estão todas pervertidas. Acredita que ontem no mercado uma me chamou de... – ela estava visivelmente indignada, totalmente rubra só de pensar na ofensa que sofrera e até com vergonha de repeti-la – velha ga... Não querida, não vou sujar seus puros ouvidinhos. Eles são feitos para a harpa. Era isso que você estava fazendo antes da mamãe chegar, não era?
             – Uhum – confirmou Rabanete, desviando o olhar para não se trair. Puxou a harpa e fez soar uma ou duas notas. A velha observava-a embevecida. Depois olhou em volta. Detendo o olhar num ponto perto do armário, ajeitou os óculos e se aproximou, fazendo Rabanete gelar. Havia ali uma mesa com uns utensílios de pintura.
             – Suas tintas estão acabando, doçura? Amanhã lhe trarei outras. Que cores você precisa? – ela voltou-se prestimosa para a moça.
             – Hum... Roxo beterraba e... fúcsia... lilás, magenta... – inventou Rabanete, rapidamente. – Eu precisava mesmo é daquele tom de azul-amarronzado que só tem lá na venda atrás da colina... Mamãe podia trazê-lo logo? – ela pediu, puxando a velhinha para perto da janela e respirando aliviada.
             – Bem, eu precisaria ir buscar agora... – a velhinha começou a descer pelas tranças que Rabanete disponibilizara. – Tome cuidado, filhinha. Não abra a porta para estranhos. Nunca se sabe quando pode ser um comunista – ela recomendou, já embaixo, parecendo esquecer que na torre não havia porta.
             – É disso que você tem tanto medo? – perguntou Desmond, verdadeiramente espantado, saindo do esconderijo e vendo Rabanete recostada na janela com ar cansado. – Dá até vontade de levá-la junto.
             – Ela é terrível; com esse jeitinho gentil quem consegue contradize-la? É tirana, me deixa paralisada. Como eu queria que ela caísse e quebrasse o pescoço... – suspirou Rabanete, com raiva.
             – Se quisesse mesmo isso, já poderia tê-lo feito centenas de vezes – até Desmond podia constatar isso.
             – Acontece que preciso respeitar as tradições. A lenda diz que eu tinha que esperar você sendo oprimida por ela – justificou Rabanete secamente, amarrando a trança de novo no pilar. Fazer-se de impiedosa era parte do perfil social que ela escolhera para si. – Vamos logo; e dessa vez você primeiro.
             Agarrando o pote de biscoitos, Desmond começou a descer pela trança. Rabanete foi em seguida. Apesar da falta de prática, nenhum dos dois teve problemas no rapéu com aquela corda estranha, mas não pararam de discutir um só instante. Uma gracinha mais impertinente da parte de Des e Rabanete deu-lhe uma patada, indo ele cair com o rosto num canteiro de urtigas, sorte que não de muito alto.
             – Aaai! Sua louca! Volta lá pra cima, volta. Você e a velha doida se merecem. Me recuso a contaminar o lombo do meu cavalo com o seu contato. Se eu conseguir achá-lo – o rapaz saiu tateando, com os olhos ardendo e gemendo de dor.
             – Ora, vem cá – Rabanete deteve o garoto pelo braço e tirou do pote da velha uma garrafinha com suco, lavando os olhos do rapaz com aquilo. Quando ele pode abri-los (estavam grudentos e melados), deu com Rabanete parada sorrindo pra ele.
             – Obrigado. E acho que de minha parte também mereço, não?
             Rabanete deu uma gargalhada.
             – Você não fez mais que a obrigação! – e saiu correndo para o cavalo, montando-o e fazendo-o trotar. Des correu atrás dela, rindo e brincando, e depois de se desviar um pouco, ela passou para a garupa e deixou-o montar. E em seguida os dois sumiram no horizonte.
             Quando a velha voltou, lamentou muito aquele crime dos soviéticos. Depois comprou um gato laranja, e sentiu-se menos solitária do que jamais se sentira. Desmond e Natasha (como Rabanete veio a se chamar) não se casaram, mas foram amigos para sempre, suportando um ao outro, ele na sua melancolia dramática e ela com seu sarcasmo e sua crueldade fingida, que se atenuaram com o amadurecimento.
             E viva a diversidade.

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