domingo, 16 de setembro de 2012

Homem-macaco

Por Érika Batista

 

            O menino era miúdo. Tinha cabeça de jerimum, com orelhas das mais protuberantes, uns beiços que davam meia cara, braços, mãos e pés longos. E teimava em andar meio curvado. Desde cedo o chamavam “Macaquinho”, carinhosamente. O nome de batismo havia sido esquecido: nada mais natural, Felisberto.
 

            Com dois anos trepava em sua primeira goiabeira, uma bem mirrada, no quintal da avó. A façanha não foi por isso menos aplaudida. Todas as tias guinchavam de susto. A mãe nem se fala, mas logo viram que o garoto não corria perigo e começaram as exclamações de “Que fofinho!” e “Que sapeca!”. Os homens da família riam do menino, e davam-lhe ares de importância porque Felisberto possuía uma habilidade que muitas crianças não desenvolviam. E o pai, orgulhoso, comentava à socapa que teria colocado o menino numa arvorezinha para perder o medo. Verdade ou não, ninguém se interessou em averiguar.
 

            A família era humilde, rural, e a infância do macaquinho passou de galho em galho. E também tinham uma estranha fixação por primatas. No videocassete (sim, a história não é tão recente) só se via “Buddy, o gorila qualquer coisa”, “King Kong”, “O Planeta dos Macacos”, o macaco que jogava basquete, o que foi pro México, e tudo nesse nível. Uma vez foram visitar o zoológico e Felisberto conseguiu entrar na jaula dos saguis e fez amizade com os bichinhos. Ficou muito encantado.
 

            Em casa Felisberto era feliz daquele jeito. Ainda mais que havia pé de banana no quintal e a mãe era uma cozinheira criativa: bananinha, bananada, torta de banana, sorvete de banana, banana frita, banana split, banana caramelada, vitamina de banana! Apesar da magreza natural, conseguia manter uma barriguinha.
 

            Mas então o menino foi para a escola. Aí macaquinho já não era mais apelido carinhoso, e sim zombaria. Os meninos o cutucavam e ficavam coçando a cabeça e o lado; fazendo grunhidos baixinhos, para a professora não ver. As garotas riam e corriam, enojadas, quando o pequeno tentava falar-lhes. Não que ele fizesse isso muitas vezes. Era um piá quieto e pensativo.
 

            No começo chorou e contou para a mãe. Ela foi à escola e fez um escândalo. Deu uma lição de moral, mas terminou com “E quem ousar falar do meu macaquinho...”. A professora riu disfarçadamente. Depois disso – agora sendo chamado de “macaquinho da mamãe” – resolveu aguentar firme, ao menos pra tirar o “da mamãe” do epíteto. De qualquer forma, esta senhora reconhecia que era hora do filho moderar com as árvores. E passou a colher apenas do abacateiro do quintal, para deixar isso claro.
 

            Felisberto sofria calado. Sofria mais em ciências. Evolução natural era sua maior tortura. Ele mesmo abdicou das árvores. Começou a falar mais, até andava ereto, mas no íntimo sofria. Não entendia porque viver em árvores o tornava menos humano. Tinha muitas saudades. Mas a turma o aceitara. E como, a essa altura, já estava com 15 anos, isso era mais importante que sua satisfação pessoal. Um dia marcaram de encontrá-lo na sorveteria. Todos os amigos levariam garotas. Felisberto quase não aceitou, porque não tinha jeito com meninas. Os outros lhe asseguraram que dariam jeito nisso. Era só vir.
 

            Quando o rapaz chegou, viu seus amigos sentados em volta de uma mesa, sob o toldo. E havia uma cadeira vaga, ao lado de uma ocupada. Ao chegar mais perto, notou que a cadeira ocupada continha uma grande boneca Chita, do Tarzan, com um vestido de chita. Os outros explodiram em gargalhadas. Felisberto ficou vermelho. Saiu correndo para chorar em algum lugar e nunca mais falou com eles.

 
            Mais tarde Felisberto arrumou um emprego, ajuizou-se e foi fazer faculdade. Administração, como sugerira a tia. Mesmo assim, conheceu gente esquisita lá. Falavam sobre liberar sua verdadeira natureza. Que a sociedade não devia oprimir nossos impulsos naturais. Alguns ali eram tigres, outros tubarões, cobras ou mesmo borboletas. Felisberto percebeu que havia um grande bosque, numa parte do terreno da universidade. Começou a matar aula pra ir lá. Estranharam, mas ninguém falou nada até o dia em que chegou ao trabalho pulando de poste em poste. Não deu prejuízo à rede elétrica pois, como já foi dito, ele era miúdo. Mas no caminho alguém chamou a polícia. E na loja chamaram sua tia.
 

            Quando chegou, ela quase não reconheceu o sobrinho. Felisberto, sempre tão tímido, estava cercado por uma pequena multidão de curiosos. Gritava que os policiais não tinham por que censurá-lo. Ele trabalhava dignamente, estudava, contribuía para o progresso da nação... Era o que interessava, não era? O resto era problema dele.
 

            A tia teve alguma dificuldade para livrá-lo daquela confusão. Por sorte, era conhecida do delegado. Ligou para a irmã e manteve o sobrinho sob rígida vigilância. No sábado, colocaram o moço no meio da sala; onde foi submetido a um interrogatório familiar.
 

            Entrou ali envergonhado, mas foram tantos lamentos, as ameaças, os “Onde foi que eu errei”, que ele se viu compelido a dizer tudo. “Não nasci pra ser humano não”, falou. “Minha alma é de macaco. É isso o que sou e está mais do que na hora de assumir”.
 

            Pra quê! Foi aquele rebuliço. Choro, protestos, gritos histéricos, ameaças de surra, manicômio... Chegaram a avançar pra bater nele. Mas Felisberto endureceu. Estava mesmo obstinado. Quando viu que não apoiariam sua decisão, saiu porta afora e foi procurar abrigo com seus amigos-bichos da universidade. Como era o caso mais radical que tinham visto, os colegas não quiseram se envolver demais; para não atrair publicidade negativa para o grupo. Ainda conseguiu emprego num parque temático de fama dúbia. Largou os estudos, a loja e passou a trabalhar no show; em troca da porção diária de bananas.
 

            Na solidão que os intervalos das apresentações lhe proporcionava, Felisberto matutava. As pessoas consideravam-no estranho e pouco ligavam para ele. O apreço que tinha por gente, que já não era muito, foi diminuindo até reverter-se em desprezo. Em compensação, havia alguns animais no parque – entre eles macacos. Afeiçoou-se aos animais, embora não possa dizer que foi exatamente correspondido: os macacos o olhavam com desconfiança; e respondiam a seus estímulos como a um brinquedo curioso.
 

            Pouco a pouco, Felisberto acreditou entender o que os macacos diziam. Imitava seus guinchos com perfeição. Acabou esquecendo boa parte do seu vocabulário, pois nenhum humano lhe procurava para conversar. Uma ideia o consumia: ir para a floresta. Amazônia ou Pantanal, África ou Oceania – não interessava bem onde, contanto que estivesse perto de seus “irmãos”. Ele morava em uma árvore nessa época. Barba e cabelo crescido davam ao seu rosto um ar ainda mais animalesco. Mas sentia que a transformação não estava completa. Podia pendurar-se nos galhos pelos pés ou pelas mãos, mas faltava o principal. Foi aí que decidiu fazer um transplante de rabo.
 

            Voltou a fazer uso de suas faculdades humanas. Anunciou isso a todos com quem tinha contato. E mesmo no parque lhe diziam que era loucura. Ele não se importou. Mesmo não encontrando seus velhos amigos universitários, saiu atrás do que queria. Os parentes, apesar de renegá-lo, sabiam de tudo que acontecia. A família ficou ainda mais contristada.
 

            Tanto Felisberto fez que virou um dos casos bizarros da imprensa. E então apareceu um empresário multinacional, dizendo-se apoiador das causas libertárias e inimigo do preconceito, disposto a financiar a caríssima cirurgia rara. Não era a primeira vez que ele o fazia: já financiara a fenda na língua de indianos-naja, o afilamento dos dentes de um tigrão e os olhos de gato de uma atriz. Era uma vergonha que a saúde pública não dispusesse de verba para esse tipo de cirurgia.
 

            No dia marcado, grupos de manifestantes com cartazes faziam vigília, em frente à clínica onde ocorria a operação. Gente a favor e gente contra. Uns gritavam que a liberdade é um dos principais direitos humanos. Mas não a liberdade de um ser não humano, respondiam os outros. E, assim, havia uma tremenda balbúrdia.
 

            Felisberto se sentia esquisito. Enquanto vestia a camisola para os procedimentos cirúrgicos, viu passar o rabo que os médicos transplantariam. Olhou pra si mesmo e, pela primeira vez, questionou se realmente queria aquela coisa em si. O enfermeiro veio e aplicou-lhe uma anestesia. Em poucos minutos, ele estava desacordado.
 

            Felisberto, o “macaquinho”, morreu na mesa de operação.
 

            A família ficou com vergonha de reclamar o corpo. O milionário tratou de desviar a atenção da imprensa, improvisando alguma extravagância. E os macacos do parque temático tampouco sentiram sua falta.

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