Por Érika Batista
O menino era
miúdo. Tinha cabeça de jerimum, com orelhas das mais protuberantes, uns beiços
que davam meia cara, braços, mãos e pés longos. E teimava em andar meio
curvado. Desde cedo o chamavam “Macaquinho”, carinhosamente. O nome de batismo havia
sido esquecido: nada mais natural, Felisberto.
Com dois anos
trepava em sua primeira goiabeira, uma bem mirrada, no quintal da avó. A
façanha não foi por isso menos aplaudida. Todas as tias guinchavam de susto. A
mãe nem se fala, mas logo viram que o garoto não corria perigo e começaram as
exclamações de “Que fofinho!” e “Que sapeca!”. Os homens da família riam do
menino, e davam-lhe ares de importância porque Felisberto possuía uma habilidade
que muitas crianças não desenvolviam. E o pai, orgulhoso, comentava à socapa
que teria colocado o menino numa arvorezinha para perder o medo. Verdade ou
não, ninguém se interessou em averiguar.
A família era
humilde, rural, e a infância do macaquinho passou de galho em galho. E também tinham
uma estranha fixação por primatas. No videocassete (sim, a história não é tão
recente) só se via “Buddy, o gorila qualquer coisa”, “King Kong”, “O Planeta
dos Macacos”, o macaco que jogava basquete, o que foi pro México, e tudo nesse
nível. Uma vez foram visitar o zoológico e Felisberto conseguiu entrar na jaula
dos saguis e fez amizade com os bichinhos. Ficou muito encantado.
Em
casa Felisberto era feliz daquele jeito. Ainda mais que havia pé de banana no
quintal e a mãe era uma cozinheira criativa: bananinha, bananada, torta de
banana, sorvete de banana, banana frita, banana split, banana caramelada,
vitamina de banana! Apesar da magreza natural, conseguia manter uma
barriguinha.
Mas
então o menino foi para a escola. Aí macaquinho já não era mais apelido
carinhoso, e sim zombaria. Os meninos o cutucavam e ficavam coçando a cabeça e
o lado; fazendo grunhidos baixinhos, para a professora não ver. As garotas riam
e corriam, enojadas, quando o pequeno tentava falar-lhes. Não que ele fizesse
isso muitas vezes. Era um piá quieto e pensativo.
No
começo chorou e contou para a mãe. Ela foi à escola e fez um escândalo. Deu uma
lição de moral, mas terminou com “E quem ousar falar do meu macaquinho...”. A professora
riu disfarçadamente. Depois disso – agora sendo chamado de “macaquinho da
mamãe” – resolveu aguentar firme, ao menos pra tirar o “da mamãe” do epíteto.
De qualquer forma, esta senhora reconhecia que era hora do filho moderar com as
árvores. E passou a colher apenas do abacateiro do quintal, para deixar isso
claro.
Felisberto
sofria calado. Sofria mais em ciências. Evolução natural era sua maior tortura.
Ele mesmo abdicou das árvores. Começou a falar mais, até andava ereto, mas no
íntimo sofria. Não entendia porque viver em árvores o tornava menos humano.
Tinha muitas saudades. Mas a turma o aceitara. E como, a essa altura, já estava
com 15 anos, isso era mais importante que sua satisfação pessoal. Um dia
marcaram de encontrá-lo na sorveteria. Todos os amigos levariam garotas.
Felisberto quase não aceitou, porque não tinha jeito com meninas. Os outros lhe
asseguraram que dariam jeito nisso. Era só vir.
Quando
o rapaz chegou, viu seus amigos sentados em volta de uma mesa, sob o toldo. E havia
uma cadeira vaga, ao lado de uma ocupada. Ao chegar mais perto, notou que a
cadeira ocupada continha uma grande boneca Chita, do Tarzan, com um vestido de
chita. Os outros explodiram em gargalhadas. Felisberto ficou vermelho. Saiu
correndo para chorar em algum lugar e nunca mais falou com eles.
Mais
tarde Felisberto arrumou um emprego, ajuizou-se e foi fazer faculdade.
Administração, como sugerira a tia. Mesmo assim, conheceu gente esquisita lá.
Falavam sobre liberar sua verdadeira natureza. Que a sociedade não devia
oprimir nossos impulsos naturais. Alguns ali eram tigres, outros tubarões,
cobras ou mesmo borboletas. Felisberto percebeu que havia um grande bosque, numa
parte do terreno da universidade. Começou a matar aula pra ir lá. Estranharam,
mas ninguém falou nada até o dia em que chegou ao trabalho pulando de poste em
poste. Não deu prejuízo à rede elétrica pois, como já foi dito, ele era miúdo.
Mas no caminho alguém chamou a polícia. E na loja chamaram sua tia.
Quando
chegou, ela quase não reconheceu o sobrinho. Felisberto, sempre tão tímido,
estava cercado por uma pequena multidão de curiosos. Gritava que os policiais
não tinham por que censurá-lo. Ele trabalhava dignamente, estudava, contribuía
para o progresso da nação... Era o que interessava, não era? O resto era
problema dele.
A
tia teve alguma dificuldade para livrá-lo daquela confusão. Por sorte, era
conhecida do delegado. Ligou para a irmã e manteve o sobrinho sob rígida
vigilância. No sábado, colocaram o moço no meio da sala; onde foi submetido a
um interrogatório familiar.
Entrou
ali envergonhado, mas foram tantos lamentos, as ameaças, os “Onde foi que eu
errei”, que ele se viu compelido a dizer tudo. “Não nasci pra ser humano não”,
falou. “Minha alma é de macaco. É isso o que sou e está mais do que na hora de
assumir”.
Pra
quê! Foi aquele rebuliço. Choro, protestos, gritos histéricos, ameaças de
surra, manicômio... Chegaram a avançar pra bater nele. Mas Felisberto
endureceu. Estava mesmo obstinado. Quando viu que não apoiariam sua decisão,
saiu porta afora e foi procurar abrigo com seus amigos-bichos da universidade. Como
era o caso mais radical que tinham visto, os colegas não quiseram se envolver
demais; para não atrair publicidade negativa para o grupo. Ainda conseguiu emprego
num parque temático de fama dúbia. Largou os estudos, a loja e passou a
trabalhar no show; em troca da porção diária de bananas.
Na
solidão que os intervalos das apresentações lhe proporcionava, Felisberto
matutava. As pessoas consideravam-no estranho e pouco ligavam para ele. O
apreço que tinha por gente, que já não era muito, foi diminuindo até
reverter-se em desprezo. Em compensação, havia alguns animais no parque – entre
eles macacos. Afeiçoou-se aos animais, embora não possa dizer que foi
exatamente correspondido: os macacos o olhavam com desconfiança; e respondiam a
seus estímulos como a um brinquedo curioso.
Pouco
a pouco, Felisberto acreditou entender o que os macacos diziam. Imitava seus
guinchos com perfeição. Acabou esquecendo boa parte do seu vocabulário, pois nenhum
humano lhe procurava para conversar. Uma ideia o consumia: ir para a floresta.
Amazônia ou Pantanal, África ou Oceania – não interessava bem onde, contanto
que estivesse perto de seus “irmãos”. Ele morava em uma árvore nessa época.
Barba e cabelo crescido davam ao seu rosto um ar ainda mais animalesco. Mas sentia
que a transformação não estava completa. Podia pendurar-se nos galhos pelos pés
ou pelas mãos, mas faltava o principal. Foi aí que decidiu fazer um transplante
de rabo.
Voltou
a fazer uso de suas faculdades humanas. Anunciou isso a todos com quem tinha
contato. E mesmo no parque lhe diziam que era loucura. Ele não se importou. Mesmo
não encontrando seus velhos amigos universitários, saiu atrás do que queria. Os
parentes, apesar de renegá-lo, sabiam de tudo que acontecia. A família ficou ainda
mais contristada.
Tanto
Felisberto fez que virou um dos casos bizarros da imprensa. E então apareceu um
empresário multinacional, dizendo-se apoiador das causas libertárias e inimigo
do preconceito, disposto a financiar a caríssima cirurgia rara. Não era a
primeira vez que ele o fazia: já financiara a fenda na língua de indianos-naja,
o afilamento dos dentes de um tigrão e os olhos de gato de uma atriz. Era uma
vergonha que a saúde pública não dispusesse de verba para esse tipo de
cirurgia.
No
dia marcado, grupos de manifestantes com cartazes faziam vigília, em frente à
clínica onde ocorria a operação. Gente a favor e gente contra. Uns gritavam que
a liberdade é um dos principais direitos humanos. Mas não a liberdade de um ser
não humano, respondiam os outros. E, assim, havia uma tremenda balbúrdia.
Felisberto
se sentia esquisito. Enquanto vestia a camisola para os procedimentos
cirúrgicos, viu passar o rabo que os médicos transplantariam. Olhou pra si
mesmo e, pela primeira vez, questionou se realmente queria aquela coisa em si. O
enfermeiro veio e aplicou-lhe uma anestesia. Em poucos minutos, ele estava
desacordado.
Felisberto,
o “macaquinho”, morreu na mesa de operação.
A
família ficou com vergonha de reclamar o corpo. O milionário tratou de desviar
a atenção da imprensa, improvisando alguma extravagância. E os macacos do
parque temático tampouco sentiram sua falta.
Nenhum comentário :
Postar um comentário