sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Pequena Crônica Ecológica

Por Sérgio Bernardo



As viúvas dos empalhadores de pássaros têm histórias para contar. Por que não as levar ao ar no horário das novelas? Por que deixá-las eternamente trancadas no quarto escuro do anonimato?

Diretores das redes de tevê: contratem-nas!

As viúvas dos empalhadores de pássaros sabem mais coisas que os ecologistas do Baixo Leblon. Elas viram – e mais ninguém – quantos ninhos foram para o lixo naquelas manhãs dos invernos passados.
  

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Trapos

Por Rayane Medeiros




                                      Sem mais trapos de amores vadios.
                                      Ande lá com tua vida já partilhada,
                                      Que, cá fico eu,                                       
                                      Sucumbindo à vontade de sentir teus pêlos,
                                      Instigando minhas entranhas.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sou Vocês Amanhã


Por Fabio Ramos




            abriu o berreiro
            pulou no sofá
            verteu lágrimas
            esperneou até a exaustão
            na casa dos outros
            e não aquietou


            assistindo aquele espetáculo
            os pais nem levantaram a voz
            pelo contrário, cederam às vontades
            do pequeno ditador


            eles nunca dariam
            uma tapa no filho
            para não traumatizá-lo
            são pais ateus
            vegetarianos socialistas
            intelectuais
            ecológicos
            defensores dos animais
            que param o automóvel
            ao verem bichanos
            atravessando a pista
            mas pisam no acelerador
            quando é um ser humano


            essa criança sem limites
            continua destruindo a casa
            fazendo birra
            chantageando
            e sendo prontamente atendida
            por genitores exemplares
            que criam o filho
            à sua imagem e semelhança

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Freud

Por Denise Fernandes



           Começa o horário eleitoral e minha mente fica suja, um horror... O que eu penso de bobagem nessa época é impressionante! Vejo como um período de queda mental na minha vida, bem pior que inferno astral. Toca aquela musiquinha do Emael, um democrata cristão, para prefeito em 15 de novembro. É Emael ou Eymael, sei lá, o candidato da renovação, e a música continua. Se eu acionar a chave, só muda para o tchu-tcha ou algum Roberto Carlos... Será que algum dia vou esquecer o nome do Neymar? Será que o Alzheimer me levará essas lembranças ou vai tocar esse som na minha memória para sempre? E tem tanta coisa que já esqueci e que não consigo recordar. Aí penso no filme "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", que não lembro direito e não consigo esquecer. Quero ver de novo, mas não recordo de pegá-lo quando chego na locadora. Aí lembro que, relendo a carta de amor, beijei um beijo que esqueci. E que minha amiga disse chorando que só homem esquece beijo. Freud, Freud explica tudo.


         Quando me sinto perdida no consultório, imagino como Freud ou Jung agiriam. Inspirada pelos mestres, vou no meu delírio bom. Estou no ombro do mundo e o mundo é bom. Depois toca também no período eleitoral: "enquanto vocês prometem, vou fazer cocô". Garotos Podres, a banda. O passado. Porque fico com raiva do Collor ainda. Sempre me sinto politicamente enganada. É sempre a sensação de estar perdida no espaço. Aí me recordo de "Perdidos no Espaço". Dr. Smith me acalma e eu lembro do medo dele, que também sinto. Relembro do episódio que uma voz de mulher chamava, cantando: Dr. Smith... E minha frustração de nunca ter tido um robôzinho. Ainda estou aqui na Terra e nunca tive um robô legal, para me ajudar, falando "Perigo!", "Perigo!". E me lembrando do que eu esqueci. Enquanto vocês prometem, vou fazer cocô. Enquanto vocês prometem, vou fazer cocô. Tenho um disco riscado que não vou jogar fora e a carta onde o beijo escrito escafedeu-se do meu cérebro. Tive um pesadelo com o Sarney e a filha: eles aparecem como clã no meu inconsciente. Nossa, e como estou ficando velha! Tem gente que lerá essa crônica e provavelmente nunca viu "Perdidos no Espaço".


            E é tão estranho porque tem horas que parece que não fiquei velha ainda... Entre os parafusos que caíram da minha cabeça, e os que eu mesma resolvi jogar fora, há uma alegria esquisita, uma vontade de rir muito, de brincar, de esperar meu robôzinho que não chega. Freud explica e entende tudo isso.        

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O “Outro Eu”

Por Rosimeire Soares

  

         Em meio à miséria urbana nítida, a multiplicação das células constituiu dois ao invés de um: gêmeos morenos.

         Agora eles eram dois para dividir as desgraças, dissabores e desventuras daqueles que, mesmo sendo dois, choravam as mesmas dores. A lama das chuvas de janeiro sufocou a vida de quem lhes deu a vida.

         Jogados à sorte, criados pelos tios, os gêmeos precisavam admitir que eram dois quando dividiam o mesmo pão para, talvez, saciar a horrenda fome. Diante de humilhações vividas, eles se chocam com a dura realidade: não são filhos de sangue, são apenas duas bocas.

         – São eles os culpados das mazelas da família e do mundo – é o que esbravejam os tios, que assumiram a guarda desses seres idênticos. Sempre ouviram que eram o fracasso, a burrice aliada ao tormento. Eles nada são! Eles tudo são! São incômodos dos ascendentes não “tão generosos” que os adotaram.

         Naquele dia foram enviados pelos tios ao centro da cidade para o trabalho de pedinte, mas se depararam com mais uma agrura inesperada. Um numa direção e o outro na outra. O desencontro. Eles se perderam um do outro. Um dos garotos procurou desesperadamente o seu rosto projetado nas feições do outro. Procurou pelo irmão, na certeza que, a qualquer momento, veria aquele sorriso inexpressivo sempre despenteado e a cicatriz exposta no supercílio; resultado do caco de telha que havia recebido há poucos dias durante a disputa por algumas latinhas para reciclagem. Nada!

         O horário de pico da grande metrópole, ilustrado pela movimentação frenética de todos os seres que disputavam espaço dentro dos metrôs, denunciava que o dia já findava. Mas o outro eu – maneira como eles se referiam um ao outro, por notificar tamanha semelhança física – não surgia. Desanimado, resolveu voltar ao morro. Voltar para quê? Talvez o irmão tivesse voltado antes, e assim o reencontraria e atenuaria a dor que lhe cortava o peito. Subitamente atendeu a um impulso de seu cérebro. Ao invés de seguir por mais quarenta minutos no metrô, desceu ali, rapidamente, sem antes se dar conta com precisão de que região era aquela.

         O outro eu poderia não perdoá-lo por não voltar para casa, mas que penhor teria de que o irmão voltara? Não queria saber, não poderia. Dividir os tormentos os amenizaria, mas encarar os tios, sozinho, sem o dinheiro do “trabalho” do dia e ainda ser submetido aos mesmos tratamentos, era tudo que ele não queria reviver. Já podia imaginar o hálito que denunciava a embriaguez do tio, encarando-o bem próximo, acusando-o de saltérios e proferindo-lhe xingamentos dos quais nem conhecia o significado.

         Nas calçadas e sob pontes, sobreviveu. Viu a fisionomia da fome, do abandono, apresentaram-lhe a droga mais acessível, pois sabia que a eterna e crescente dor já invalidava sua condição de amar e sorrir. A solidão fez morada naquele coração que vivia entre tantos corações. Dias que mais pareciam anos. Anos que mais pareciam décadas, ou eram décadas? Perdera algumas noções, aprendeu a viver e conviver com a escória da sociedade, com o lixo humano e ser um elemento desse sistema excretor de seres.

Por várias vezes, sentia-se humilhado, pulguento, leproso. Enquanto caminhava pelas calçadas, nas regiões do pós-feira livre (principal fonte de alimento), se orgulhava de comer, sem controle de qualidade, mas fresco.

Os anos chegaram. Uma importante decisão: queria  encontrar o outro eu. E faria de tudo para fazer disso uma realidade. Ele, agora já homem, queria rever o irmão. O que teria feito da vida? Teria voltado para casa? Adquiriu maturidade para voltar ao morro e procurar pelos seus. – Eram seus? – ele se perguntava, enquanto subia pelos becos. Podia rever alguns rostos conhecidos. Antes mesmo de chegar ao barraco de seus tios, já tinha a resposta:

– Não moram mais aqui. Faz quinze anos que sumiram daqui.

Quinze anos? Esse era o tempo – aproximadamente – que se perdera de seu irmão na praça. Teriam desaparecido? Mas e seu irmão?

Ele se conscientizou de que a rua, seu eterno lar, era para onde deveria voltar. Não tinha história, não tinha origem. Os delitos a serem cometidos poderiam ser mais intensos, pois não tinha que provar nada a ninguém. Precisava apenas viver, e manter seu vício. Uma triste decisão!

O semáforo, lugar de encontros. Ali, podia ver rostos bem maquiados e olhos que temiam sua presença. Podia ver a ostentação do poder sob óculos escuros; atrás de vidros escuros. Ele era visto. E se sentia como cocô de cachorro, aguardando para tornar-se esterco ali, sob aquele sol de quarenta graus. Sentia-se a pior substância. Era o pior elemento. Precisava sustentar seu vício...
 
Preparou-se para o “investimento”. Poupou raciocínio, porque precisava agir e rápido. “Pode ser aquele”. Ao se jogar armado sobre o vidro do carro que acabara de parar, em respeito à sinalização de trânsito, foi enérgico. Anunciou suas intenções, mas estranhou, pois o homem daquele carro o fitou corajosamente. Nada falou,  mas permitiu-se chorar copiosamente. O infrator possuía  tom  enfático, impactante e intimador. Porém, diante da inércia do outro de tez morena e daquele urro de dor, decidiu olhá-lo. Que face era aquela? Seria alucinação? Como poderia assaltar a si mesmo? O outro eu em outra história...