terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Janeiro

Por Denise Fernandes



o mês inteiro de janeiro
acumulei essas chuvas
na alma na pele e ainda
me perguntei assustada
onde vão vocês que vão
vão para onde

nenhuma resposta
para tão boa pergunta
como se eu quisesse carona
na loucura alheia;
talvez eu tome outra cerveja
pensando em tomar alguma atitude

minha cachorra late diferente
nem todo mundo está contente
abro um velho livro e releio
o doce viver de janeiro:
a chuva a cerveja esses pensamentos todos
há um azul no céu mais que perfeito
prometa-me então o impossível
que será possível no ar de janeiro

domingo, 29 de janeiro de 2012

Adeus

Por Lígia Domene


                  A semana já vinha monótona e sem graça, com os dias cinzas, com um cheiro estranho que permanecia no ar, mas  ela não sabia identificar. Podia ouvir os mais velhos sussurrando, olhando-a com certo receio, como se um misto de pena e dor lhes cortasse o olhar, a comida era insossa, mesmo sua avó cozinhando tão bem, mas não naquele tempo, onde algo estava errado.
                  Seu coraçãozinho parecia pronto a saltar-lhe da boca a cada batida do carilhão, que ressoava sozinho na sala escura, a cada estalar da fechadura, um misto de esperança e tristeza percorriam seu corpo minguado como uma corrente elétrica, olhava por horas para a porta, sem saber se quando novamente se abrisse, ele traria aquela mulher de volta para a pequena menina, que ainda sentia a dor da despedida. Mas a cada adulto que entrava suas esperanças minguavam, e sua dor aumentava.
                  A noite seus joelhos tocavam o chão e a criança chamava pelo Papai do Céu, para que ele minguasse o sofrimento da mulher que tanto ela amava, para que elas voltassem a se encontrar e pudessem brincar, depois fazia o sinal da cruz, deitava-se, cobria o rosto com a coberta e adormecia, com o peito carregado de esperanças.
                  Aquela manhã despertou mais cinzenta do que as demais, e seu coração que fora feito apenas para as brincadeiras infantis, agora estava pesado, os olhares de todos estavam carregados de sofrimento, a comida já não tinha nenhum sabor, mas o telefone havia ficado mudo durante todo o dia e a porta, inerte. Nada estava fora do lugar, então porque ela se sentia tão apreensiva? tão deslocada e triste? Ela ainda não sabia.
                  Sua avó encheu o quadrado do box de água, e ela ficou ali submersa até que seus pequenos dedinhos se enrrugassem, até que fosse tirada dali e enrolada na toalha, seus olhos de jabuticaba vasculhando cada expressão da anciã que lhe secava, sem nada conseguir desvendar, era enfim a hora de dormir.
                  Após a oração noturna, se deitou e quando o sono já vilha beijar-lhe a tez, ouviu o telefone tocar, e pela primeira vez cometeu a travessura de ouvir a conversa dos adultos na linha. Seu corpo frágil, ficou rijo, ela desligou o aparelho, e cobriu o rosto sabendo que logo um adulto viria ver se ela dormia. Mas agora, ela entendia o aperto no peito que lhe acompanhara durante o dia, toda dor hava acabado enfim.
                  Na manhã seguinte fora levada para a casa da prima, onde passou parte da manhã brincando de colorir, até que ele, seu pai, adentrou a sala com o olhar cansado de quem não dormira, e a tristeza por traz dos olhos, a pegou no colo e falou alto a sentença que ela já sabia .
                  - A mamãe morreu!
                  Os olhinhos negros da menina o encaravam agora, cientes de que ela não mais voltaria para abraça-la, mas as lágrimas não rolaram, e a inércia permanecia, talvez por isso, no seu senso de proteção a criança, na busca de um entendimento simples, ele tentou uma abordagem diferente.
                  - Fiotinha, a mamãe era como o danone, venceu o prazo de validade dela.
                   E os dois se abraçaram, e choraram, a ausência daquela que amavam.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Busílis

Por Flavia Marques


 Caminhava lentamente pelas ruas da cidade, pés descalços, a atenção totalmente voltada para dentro. O que procurava não poderia encontrar longe de seu coração, mas precisava provocar as sensações, precisava do estímulo que não encontrava enclausurada em seu apartamento. O vento da noite não trazia nada aos seus ouvidos, nem o barulho das pessoas, nem o cheiro do caminhão de lixo passando... Nada... Nem uma palavra. “Estava perdida”, pensou, “nunca mais escreveria uma linha. Sua fama de excelente articuladora de palavras, de mestra das ideias, de conhecedora da alma humana... tudo ficaria para trás.” O que faria agora, que sua personagem já estava amalgamada em sua personalidade de uma forma tão indiscutível que não saberia viver sem ela? Estranho que o primeiro sentimento não fosse de dor, mas da raiva de ter que admitir aos críticos que eles sempre tiveram razão, que aquilo acabaria um dia. Pensou na amiga de infância que se afastou quando ela começou a fazer sucesso. Ou foi ela quem se afastou de todos? O fato é que agora se sentia como uma câmara escura e fria, uma câmara mortuária, onde nada poderia surgir, a não ser dor, espanto e tristeza. A partir de agora, perambularia pela cidade como uma pessoa comum, sem qualquer dom especial. Será que algum dia fora diferente? Ou sua arrogância a fez pensar que portava algum tipo de missão de levar ao mundo o que ele não poderia ter sem ela?! Que tola! Que menina tola e vazia! Suas palavras não passavam de um rearranjo das de outras pessoas, uma repetição de histórias que alcançaram corações mais vazios que ela. Sentiu-se o maior dos enganos, a farsa do século, e até nisso queria ser grande!

Voltou para casa com os pés imundos e a sensação de que nada a faria sentir novamente as emoções da estreia, aquela sensação maravilhosa de que algo incrível está para acontecer, de que sua vida vai mudar, de que o sonho irá se tornar realidade. O sonho aconteceu há tanto tempo que já nem se lembrava de haver sonhado, e as obrigações da nova imagem que fez de si mesma enterraram bem fundo o sabor de estar vulnerável. Olhou para o homem que dormia em sua cama, para os filhos no quarto ao lado, para todas as coisas que possuía, e sentiu-se a mais solitária de todas as mulheres. Não havia ninguém que pudesse entender o que se passava com ela. Seu sofrimento era incomunicável. Não adiantaria tentar dormir porque o sono não viria. Tomou um banho demorado e chorou todas as suas mágoas, chorou a raiva, a dor, o abandono... Um pouco mais leve, foi até a varanda, e deixou o vento secar a água de seu corpo nu. Um homem que vasculhava o lixo parou e a observou, uma interrogação no rosto. Vestiu-se e desceu pelas escadas, sem paciência de esperar pelo elevador. O homem estava indo embora, mas ela o chamou até que ele não pudesse mais fingir que não a ouvia. Sentaram-se na calçada e conversaram até o amanhecer como dois amigos de longa data que há muito não se viam. Despediram-se depois de um café bem quente da padaria que começava sua rotina, e se foram, lados opostos. Ela entrou, pegou papel e caneta como antigamente e começou a escrever: “Nesses olhos doídos de uma vida de privações, ainda há um homem que observa...”  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sobre a Magia da Arte (ou a Arte da Magia) - Tomo III

Por Alex Constantino

Creio que toda cultura deve ter surgido de um culto. Originalmente, todas as facetas de nossa cultura, sejam as ciências ou as artes, eram territórios dos xamãs. O fato é que, nos dias atuais, este poder mágico se degenerou ao nível do entretenimento barato e manipulação, o que penso que seja uma tragédia. Em lugar de despertar as pessoas, o xamanismo é usado como um opiáceo, para tranquilizar as pessoas, para fazê-las mais manipuláveis. A sua caixa mágica, a televisão, com suas palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no país pensem nas mesmas palavras e tenham os mesmos pensamentos banais exatamente no mesmo momento.
Alan Moore

Continua...

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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Caganeira

Por Fabio Ramos


                                                                            No princípio,
                                                                            era a ideia do
                                                                            precipício a martelar.
                                                                            Bastava um passo
                                                                            à beira do penhasco
                                                                            e ponto final.

                                                                            Meu plano arquitetado
                                                                            escorreu pelo ralo
                                                                            quando matutei:
                                                                            sabe esse povo que adoraria
                                                                            ver o malogro da gente?
                                                                            Meu salto seria a bênção deles
                                                                            [tartufos por todos os lados].

                                                                            Lampejo 

                                                                            de lucidez
                                                                            me fez abrir 

                                                                            as pálpebras.

                                                                            Estômago revirando
                                                                            no meio da madrugada
                                                                            significa uma coisa:
                                                                            é o poema querendo sair
                                                                            às três da manhã.

                                                                            Para chegar ao banheiro,
                                                                            preciso acender a luz.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Corpo

Por Denise Fernandes


corpo vírgula 
enquanto te escrevo
corpo mar e praia
enquanto me entendo

corpo oco e cheio de terra
vertentes e possibilidades
corpo saudoso de bebês 
que se aninham contentes

corpo sol e pôr do sol
de todos os amanheceres
e das noites mais frias
onde eu me escondo

corpo amado dolorido
antes da forma a Vida
raiz fonte e céu força
corpo vontade e Vontade

corpo verdade
mas de uma verdade tão verdadeira
que escondida no corpo
mais que revela

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Sobre a Magia da Arte (ou a Arte da Magia) - Tomo II

Por Alex Constantino

Em toda magia há um componente linguístico incrivelmente grande. A tradição mágica dos bardos colocava estas pessoas num patamar muito mais alto e temível do que os magos. Enquanto os magos poderiam fazer você mover suas mãos de forma engraçada ou seu filho nascer com um pé de pau, um bardo não te amaldiçoaria. Ele faria uma sátira, coisa que poderia te destruir. E se fosse uma sátira inteligente, não te destruiria somente aos olhos de seus pares. Te destruiria aos olhos de tua própria família e aos teus próprios olhos. E se fosse uma sátira finamente elaborada e muito astuta, o bastante para sobreviver e ser recordada durante décadas ou mesmo séculos, então anos depois de tua morte as pessoas ainda leriam e ririam da tua ruína e do teu absurdo.

Alan Moore

Continua...

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mais um Cliente Contente

Por Fabio Ramos


                                                                      Entre cavalheiros,
                                                                      a palavra empenhada
                                                                      vale mais que assinatura
                                                                      em uma promissória.
 

                                                                      Notas sobre notas
                                                                      sendo empilhadas
                                                                      na mão estendida.
                                                                      Tudo combinado
                                                                      e pago no ato.

                                                                      Bateram à minha porta
                                                                      dois dias depois

                                                                      com uma ordem de entrega.

                                                                      A encomenda
                                                                      desceu de um
                                                                      caminhão-baú,
                                                                      sendo deixada
                                                                      na sala de estar
                                                                      pelos rapazes
                                                                      da transportadora.

                                                                      Na caixa lacrada,
                                                                      jazia a cabeça
                                                                      que mandei buscar.

                                                                      Possuir este suvenir
                                                                      não me deu tanta alegria
                                                                      quanto desembolsar
                                                                      a quantia pedida.
 

                                                                      O serviço custou uma ninharia.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Carta a Dilma

         Por Denise Fernandes


       Aqui do meu canto tô achando as questões políticas cada vez mais complicadas. Depois que o Collor conseguiu se eleger pelo voto pós processo de "impeachment", me arrependi de ter ido ao evento "Diretas Já" em mil novecentos e bolinha. Para quê ter brigado com meu pai, minha mãe? Ter ficado tensa e com medo? O evento fedia a pinga. A gente aplaudia quando todo mundo aplaudia. Meu namorado fazia quase que uma escolta em mim, para que ninguém me “encoxasse” ou passasse a mão na minha bunda. Acho que eu não precisava ter dado essa contribuição para o movimento democrático. Podia ter ficado namorando em casa. Porque há uma democracia que nunca aconteceu e só existe nos planos da gente mesmo.

       Na televisão, um policial diz estar negociando com estudantes numa manifestação. Diz que eles têm cinco minutos para sair dali. Depois, avança com suas tropas de forma violenta. Meu pai me ensinou que, para negociar, é preciso ouvir os outros e também pensar. Achei muito estranha essa forma de negociar do policial.

       A polícia é questão nas conversas, matérias. Quase sempre se pede mais policiamento. Fico confusa: a sociedade tem dinheiro para isso? Para policiar tudo? Essa é realmente a saída?

       Tem mais coisas esquisitas nas discussões envolvendo a polícia. Por que só agora a questão de policiar a USP? No período todo em que estudei lá, a USP era considerada um território bem perigoso em alguns lugares para mulheres sozinhas (pela questão de estupro). Eram boatos? Ou estupro é crime menor, não merece policiamento?  Ou não merece atenção e policiamento porque se estupram mulheres e não homens? Também é esquisito, sempre achei que a USP fosse policiada e que não havia policial para se cobrir toda a necessidade da cidade de SP. Agora tem policial sobrando e dá pra cobrir tudo? Antes a USP não era policiada e eu estava ali dando sopa prá bandido e ninguém se interessou?

       E a Dilma, como se sente vendo pela TV a polícia reprimir estudantes de forma violenta em manifestação? Ou ela não vê? Toma um uísque nessa hora e, mais tarde, um remédio prá dormir. Porque acho que a senhora presidenta possa não estar vendo. Por isso mesmo, resolvi escrever essa carta. Um amigo me disse que escrever na internet é como colocar uma carta numa garrafa no mar. Mas outro dia vi pela internet mesmo que uma pessoa achou, depois de muitos anos, uma mensagem jogada ao mar. Por isso escrevo essa cartinha, querida presidenta. Por favor, ponha a mão na consciência e proíba a polícia de reprimir os movimentos populares pacíficos. Ao contrário, mande emissários para ouvir os que se manifestam.

       Outra questão está levando a uma contradição política que nos deixa sem saída para o entendimento. Se temos um problema de saúde muito maior com o álcool do que com o crack, porque decretamos guerra ao crack e permitimos a venda do álcool até dentro do estádio na Copa? Não dá para dizer que a deterioração de um dependente de álcool são menores que a do crack. Não seria de coerência mínima também se investir na questão do álcool? Ou isso não é investimento relevante, não estamos sendo levados a uma situação de evolução, mas sim de contínua enganação... Será que o crack, o álcool e as drogas são os grandes vilões da civilização? Será que as drogas devem ser responsabilidade do poder público? Será que o poder público não deveria estar investindo seus esforços numa guerra contra o analfabetismo, contra o abandono, a falta de esgotos e de situações sociais positivas?

       Só de pensar, já resolvo que não vou votar na próxima eleição e me arrependo de ter ido no "Diretas Já". Devia ter começado a escrever cartas naquela época. Antes tarde do que nunca, prossigo, querida presidenta.

       Um dia desses apareça aqui em casa para tomar um café. Como políticos populistas de outrora, faça a cena de pertencer ao povo. E, por favor, não faça cirurgias plásticas desnecessárias. Porque precisamos dessa alegria.

       Em nome da Alegria, te peço também um novo uso das mídias eletrônicas. Uma televisão menos comercial e mais expressiva.

       Essencialmente, querida presidenta, seja muito generosa, bondosa, amorosa e verdadeira. Seja um exemplo. Estamos juntas.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sobre a Magia da Arte (ou a Arte da Magia) - Tomo I

Por Alex Constantino


O cultuado escritor de quadrinhos Alan Moore, no documentário "The Mindscape of Alan Moore", conta que, em seu quadragésimo aniversário, ao invés de aborrecer seus amigos com algo tão mundano como uma crise de meia idade, decidiu que seria muito mais interessante aterrorizá-los ficando totalmente louco e se autoproclamando um mago. Eis o conceito de magia para o velho bardo inglês:

"Existe alguma confusão a respeito do que a magia é realmente. Penso que isso possa ser elucidado se você apenas olhar as mais velhas descrições de magia. Magia na sua forma mais antiga é referida como 'A Arte'. Creio que isto seja completamente literal. Creio que a magia é arte, e que essa arte, seja a escrita, a música, a escultura ou qualquer outra forma é literalmente magia. A arte é, como a magia, a ciência de manipular símbolos (palavras ou imagens) para operar mudanças de consciência. A verdadeira linguagem da magia trata tanto da escrita como de arte e também sobre feitos sobrenaturais. Um grimório (livro de feitiços), por exemplo, é simplesmente um modo extravagante de falar de gramática. Conjurar um encantamento é somente encantar, manipular palavras para mudar a consciência das pessoas. Eu acredito que um artista ou escritor são o mais perto do que você poderia chamar de um xamã do mundo contemporâneo".

Continua...

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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sobre Bolinhas de Sabão

Por Fabio Ramos


o rádio à válvula
não captura tais
ondas
mas estabelecida
uma conexão direta
com o outro lado
nosso poema
sobre bolinhas de sabão
vai descer
como o caboclo
incorporado
pelo pai-de-santo

[é só psicografar]

uma vez
sintonizada
na frequência
exata
teremos a mensagem
decodificada
ela também
desliza no ar
ansiando
uma pena
um tinteiro
alguém que preste
atenção

o segredo é
escrever
sob encomenda
e entregar
amenidades
para tímpanos
frágeis

essa vela
acessa
auxiliará
na transmissão
da reprodução

enquanto o mundo
explode
a mediunidade
transcendental
vai revelar
a natureza
sobrenatural
das bolinhas de sabão

[é só sentar e esperar]

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ARCO-ÍRIS

Por Denise Fernandes

       Neste Natal, estava conversando com meu neto sobre o Natal. Perguntei a ele se a mãe dele havia contado que o Papai Noel não existia. Ele disse que descobriu sozinho, mesmo porque não dava pra rena voar. Ele pensou e descobriu. Disse que comigo havia sido diferente. Minha mãe me contou e eu fiquei desesperada. Não parava de chorar. O que seriam dos pobres sem o papai Noel, o que seria do mundo? Fiquei muito triste e preocupada mesmo. Mais preocupada porque minha mãe havia me explicado o mundo assim: há os ricos e os pobres. A gente é pobre. Eu era pobre antes de nascer, já que minhas duas avós passaram fome. A fome deixa uma marca na existência, na continuidade dela.
       Sempre olhamos o mundo assim: há os ricos e os pobres. Minha mãe me deu uma boa explicação básica da vida. Sem o Papai Noel, mas ainda com uma imaginação fértil, fiquei imaginando uma saída para o problema de eu e minha família e tanta gente ser pobre. Quando me contaram, um dia, observando um lindo arco-íris num sítio em Atibaia, a história do duende e do tesouro inesgotável no fim dele.
       Durante um tempo, me perguntei porque não íamos até o fim do arco-íris buscar o pote de ouro, conversar com o duende guardador do tal potinho e resolver a História de outro jeito. Lembro de adultos rindo do meu desejo insistente. Uns diziam ser muito difícil. Um dia alguém me disse: “Um dia a gente vai”. Aí fiquei mais confiante, mas com aquela questão pendente.
       Não sei o porquê da minha infância e adolescência ter a presença constante de arco-íris, que foram rareando. Será que Alguém enterrou o arco-íris junto com o duende, o pote e mais alguma outra coisa em outro lugar? Porque tenho a sensação que algo mudou, foi alterado, no caminho do arco-íris. Lembro da voz dos meus pais me chamando para ver o arco-íris. Sua visão era algo especial, renovador. E foi embora de nossas vidas tão sorrateiramente que nem bem sei como ele sumiu. Escasseou junto com os vagalumes e com o barulho das cigarras que nunca mais ouvi.
        A riqueza dos ricos não veio do duende e seu tesouro. A riqueza deles veio da besteira e egoísmo deles. Todo rico é metido a besta e egoísta, pois a pessoa precisa se permitir enriquecer, ignorando muitos detalhes e sentimentos importantes nessa construção e permissão da desigualdade. Tampouco foi o “capitalismo” que criou os ricos. Os ricos se criam a si mesmos desde que surgiram e já existiam antes do papel moeda circular, dos juros serem possíveis. Muito antes de pensarmos em sistema capitalista.
        Os pobres acham que foram criados. Eles não se criaram pobres, apenas se descobriram assim. Os pobres criam a vida deles e de tudo a seu redor, que não está muito garantido. Por isso eles são pobres.
        A riqueza não traz felicidade, manda buscar. Mas a felicidade não vai, porque não obedece a ninguém. Ela é livre, independente, não obedece e sempre foi assim.
        Uma pessoa me escreveu dizendo uma frase de Luis Fernando Veríssimo: só as pessoas que não tem medo do ridículo são realmente livres. Discordo da frase porque medo e liberdade convivem e segundo o que me ensinaram (e que a realidade confirma): quem tem cu, tem medo. Mas acho os ricos ridículos, mesmo que sejam livres, belos. Há uma falta de equilíbrio, falta de beleza, perversidade, um vazio que ignora na riqueza.
        Ando pela rua e vejo os muros e portões que os ricos construíram para se protegerem de nós, os pobres.
        E estava lá. Entretida na minha cozinha, meu neto gritou: “Vó, um arco-íris!!!!” Corri em sua direção e lá estava: no jato do esguicho que ele projetava para o alto, um arco-íris. Não falei do tal pote, do duende. Apenas apreciei junto com as outras crianças. Porque é muito legal, só por isso. E porque enjoei de ser pobre, dos ricos, da fome que já sentiram e que ainda vamos sentir. Enjoei de tudo e fiquei lá com as cores.
        Um dia vai chegar a conta da água que usamos para produzir tanto arco-íris. Minha vizinha me perguntou, ao ver tantos gastos de água em minha casa, se eu estava preparada para a conta. Claro que não estou, porque sou pobre. Talvez um dia descubram uma maneira de me cobrar algum dinheiro, taxa ou imposto por ter visto essa luz de cores, talvez eu encontre o caminho do arco-íris. Enquanto isso, o sistema processa minha dívida de estar aqui. E o duende, na sua solidão encantada, nos espera.