quinta-feira, 30 de junho de 2011

Antes do Amanhecer

Por Alex Constantino 



 Um encontro casual, permeado por uma conversa trivial, dá ensejo a um convite inusitado que culmina numa apaixonada e apaixonante história. Essa premissa improvável se desenvolve sem a interferência de artifícios dramáticos tentando forçar uma verossimilhança artificial, e portanto, tão próxima da realidade das relações humanas.

Talvez por isso o casal de protagonistas é registrado quase em tom documental e quase ausência de trilha sonora nos permite acompanhar longas tomadas recheadas de diálogos triviais, mas nem por isso despidos de profundidade, relevância e sensibilidade. Aliás, diálogos que soam naturais e que conduzem a história enquanto nos vão revelando as personalidades díspares dos protagonistas ao mesmo que se revelam um ao outro, tornando-nos cúmplices do afeto crescente, tanto entre o casal quanto entre espectador e personagens.

Os coadjuvantes, também inusitados, pontuam a história como aqueles elementos incomuns que contribuem para tornar um acontecimento uma memória especial. Ao lado disso, trazem reflexões que exteriorizam o que vai dentro dos protagonistas enquanto dialogam com o espectador, como o poeta de rua com o poema carpe diem que desnuda o tom de celebração do momento que escorre da película.

Os cenários da bela Viena são contaminados pelo estado de espírito do casal e ganham vida pela história, talvez não por outro motivo o diretor os exibe novamente no final do filme, desta vez insossos sem a presença dos protagonistas. É como se estivesse a reforçar a batida (mas não menos verdadeira) afirmação de que basta a companhia certa para tornar qualquer momento ou local especial.

O final confirma a ausência de convencionalismos do gênero e arrebata o espectador que se sente um pouco constrangido, lembrando-se quando sorriu desdenhosamente junto com Celine no início da história, quando Jesse confidenciou à ela sua ideia de um reality show que acompanharia o cotidiano de pessoas comuns. Ela certamente concordaria conosco de que preencher o espaço entre duas pessoas com trivialidades pode ser mais mágico e cativante do que qualquer acrobacia visual ou narrativa.

Título original: (Before Sunrise)
Lançamento: 1995 (EUA)
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater e Kim Krizan
Atores: Ethan Hawke, Julie Delpy, Andrea Eckert, Hanno Pöschl, Karl Bruckschwaiger, Tex Rubinowitz, Erni Mangold, Dominik Castell, Haymon Maria Buttinger, Harold Waiglein, Bilge Jeschim, Kurti.
Duração: 105 min


quarta-feira, 29 de junho de 2011

Engrenagem

Por Fabio Ramos


despertador
despertando a dor
na melhor parte
do sonho

(abrir os olhos é obrigação)

ferro quente
na cara amassada
cheiro forte
de naftalina

o espelho
do banheiro
refletindo
a raiva por
dentro

nem se despediu
o café pela metade

piloto
automático
ligado
com veias e artérias
bombeando óleo diesel

(só uma peça da engrenagem)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

A Mula Sonora

Por Alex Constantino

Híbrido é a qualidade de tudo que resulta de elementos de natureza distinta, mas pertencentes ao mesmo gênero e, geralmente, se refere ao cruzamento de duas espécies animais ou vegetais com finalidade econômica ou apenas por entretenimento.

A mula, por exemplo, é um animal híbrido, proveniente do cruzamento de um jumento (equus africanus asinus) com uma égua (equus caballus). Com isso herdou qualidades de ambas as raças se tornando um animal bem adaptado ao transporte de cargas em terrenos acidentados.

E por falar em meios de transporte, atualmente há um esforço para a produção em larga escala de automóveis híbridos que combinam um motor a combustão e um motor elétrico, com vistas a reduzir o consumo e a emissão de gases poluentes.

O hibridismo é uma prova da inquietação e gênio inventivo da humanidade que sempre buscou melhorar sua própria condição, seja para utilidade ou para o mero deleite. Bem, algumas vezes também serve de prova para a falta dele.

É o caso da existência de um espécime bem inusitado, porque desafia todo o conhecimento convencional quando se fala em hibridismo. Por falta de termo melhor, chamemos de equus vehiculum sonorum, ou também como é conhecida popularmente: Mula Sonora.

Ela resulta do cruzamento de um tipo peculiar de asno, criado longe do campo e perto da tv, com um veículo equipado com uma quantidade obscena de aparelhagem de som.

No caso da mula tradicional consta que devido ao fato de cavalos possuírem 64 cromossomos, enquanto o jumento possui 62, resultando em 63 cromossomos, elas são, quase sempre, estéreis.

Bem, a Mula Sonora sempre é stereo, porque é o resultado do baixo QI do asno com a pancada de decibéis do sistema de som do carro.

Se fosse apenas isso tudo bem, afinal nada de mais com um pouco de ostentação ou busca sincera por identidade. O problema é que alguns exemplares dessa terrível besta resolvem relinchar orgulhosamente a muitos decibéis de altura, num arremedo ritmado que alguns observadores mais apenados até tentam reconhecer piedosamente como uma forma primitiva de melodia.

Na verdade é um amontoado de barulho, geralmente uma fracassada tentativa do pobre animal de se envolver num ritual de acasalamento. Na maioria das vezes serve mais como uma sinal de aviso para qualquer criatura se dispersar em desabalada carreira, ruborizada pela vergonha alheia.

Ela tem possibilidade de atingir grandes velocidades, mas prefere andar a poucos quilometros por hora relinchando horrendamente, importunando por onde passa.

Essa criatura inoportuna, ironicamente, subverte a ordem das coisas porque enquanto sua parente foi muito utilizada e ainda continua a ser como meio útil de transporte de carga, é a Mula Sonora quem deposita uma carga imensa de incômodo no ombro de todo desafortunado que tem que conviver no mesmo habitat que ela.

Uma frente de resistência está sendo planejada antes que a besta leve à extinção toda paciência alheia e um membro do movimento, que prefere permanecer anônimo, indica que existe um plano para exterminá-la atingindo bem naquilo que é seu ponto fraco. Planejam envenená-la com doses maciças de conhecimento, educação e respeito.

Boa sorte à empreitada! Nossos ouvidos agradecem.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sebos

Por Fabio Ramos


A menos que a rinite ataque, caçar livro em sebos é sinônimo de diversão. Quem resiste ao impulso da compra quando avista tais ambientes abafados e empoeirados? Mesmo não querendo, sou compelido a sair do local carregando vários exemplares.

Isso gera dois problemas: primeiro, a falta de espaço e, segundo, a falta de tempo. Quisera eu ter onde colocar todas as obras que adquiro! Este cotidiano agitado – no qual estamos inseridos – prejudica o rendimento da nossa leitura. A pilha de livros me esperando, contudo, não para de crescer.

Nos sebos tradicionais do centro da cidade, será difícil encontrar barganhas. Muitas vezes, é preferível obter uma edição nova numa livraria qualquer... O oposto acontece precisamente nos sebos de bairro; pois seus donos não querem obras encalhadas na estante. Então, o preço costuma ser bem mais atrativo.

Outro lugar muito bom para conseguir livros baratos é em bazares beneficentes e liquidações do tipo “família vende tudo”. Só para citar minhas últimas aquisições, comprei por mixaria obras de autores tão díspares – e geniais – quanto Dyonelio Machado, Paulo Leminski, Manoel de Barros, Julio Cortázar, Cacaso, Ferreira Gullar e até uma cópia em inglês de “Universo em Desencanto” (Universe in Disenchantment), da Cultura Racional!

Nesses locais, é preciso ter paciência para vasculhar. De um modo geral, os livros são acondicionados sem a menor organização (seja ela alfabética, de gêneros semelhantes etc.). Alguns espirros são inevitáveis e suas mãos ficam imundas ao final do processo. Mas, para leitores compulsivos como eu, a recompensa vale a pena.

Em comparação com as livrarias tradicionais, o acervo de sebos e bazares é mais abrangente. Nas megastores, só conseguimos clássicos com saída garantida e best-sellers do momento (comumente vendidos a preços proibitivos). Sabendo o que procurar, gratas surpresas poderão te esperar naquele sebo da esquina que você nunca explorou.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Fragmentos

Por Fabio Ramos



Era domingo.
Uma explosão de dentro para fora.
Meus pedaços voaram longe.

Quem viu o espetáculo, enojado ficou.
Eu no lençol, no teto e nas paredes.
O abajur combinando com o sangue
que respingava do porta-retratos.
Mas todos elogiaram a decoração!

Fui recolhido em sacos plásticos.
A beleza estética do quarto
contrastava com o odor nauseabundo.

Pelo estado avançado de decomposição,
passaram-se meses até me encontrarem ali.
Você foi chamada para elucidar
esse quebra-cabeças macabro.
A incumbência não afetou teu ar blasé.

domingo, 12 de junho de 2011

O Fotojornalismo Além do Olhar

Por Fabiana Siqueira

A todo o momento, quando abrimos revistas e jornais, nos deparamos com fotografias e imagens que nos ajudam a compreender as notícias que serão relatadas.

Quem vai dizer que nunca escolheu um assunto – ou se interessou pelo contexto do que estava escrito – apenas pela foto ilustrando a matéria? Afinal, uma imagem vale mais que mil palavras.

A poesia do fotojornalismo permite isso: um olhar afinado com a realidade, capaz de transcender a barreira da leitura.

Muitos mestres do fotojornalismo fizeram escola e deixaram seu legado através das histórias contadas por meio das imagens que captaram.

Nik Ut – 1972
Entre os milhares de cliques históricos produzidos pelo fotojornalismo, este acima (do fotógrafo Nik Ut na Guerra do Vietnã) registra o sofrimento da população com a explosão de uma bomba de Napalm.

Kim Phuc foi fotografada quando tinha 9 anos. Ela sobreviveu ao ataque e hoje, engajada em projetos pela paz, luta contra a guerra.

Kim Phuc atualmente
O olhar aguçado por trás de uma câmera traz ao leitor mais do que informação. Muitas vezes, reflete a arte e a sutileza do momento – mesmo que o repórter fotográfico esteja apenas interessado em documentar um acontecimento.

A imagem abaixo, captada pelo fotógrafo Steve McCurry, também é um exemplar bastante conhecido do trabalho histórico que o fotojornalismo vem produzindo ao longo dos anos.



Steve McCurry fotografou a menina afegã Sharbat Gula em 1984, quando ela tinha 12 anos e se encontrava em um acampamento de refugiados no Paquistão (durante a guerra contra a invasão soviética). Essa foto foi publicada na capa da revista “National Geographic” em 1985.

Anos mais tarde, conseguiram reproduzir a imagem e registraram o olhar da mesma mulher afegã; revelando os anos de angústia e guerra de uma nação.

Poderia passar horas relatando fotos e histórias que o fotojornalismo trouxe para o mundo, através das lentes de grandes nomes como Araquém Alcântara, Evandro Teixeira, José Medeiros, Thomas Farkas, entre muitos outros.

Mas as perguntas que me veem ao pensamento, sempre que vejo uma foto marcante, são:

1. O que será que esses fotojornalistas e fotógrafos têm, além da técnica de produzir imagens e de um olhar bem peculiar sobre as coisas do mundo?

2. O que eles veem, por meio de suas câmeras, que um pobre ser humano não vê?

3. Como captar aquele momento que nunca mais se repetirá?

Acredito que não terei resposta para tais perguntas tão cedo. Porém, tenho certeza que o fotojornalismo – no Brasil e no mundo – ainda trará inúmeras fotos que emocionarão e farão pensar.

Cada vez que abrir um jornal ou revista, pense também o que pode estar por trás daquela fotografia enquadrada.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Literatura no Cinema Brasileiro*

Por Fabio Ramos


A relação entre a literatura e o cinema vem de longe. Desde o começo do século XX, os cineastas franceses transpunham textos clássicos para as telas com o intuito de legitimar suas produções cinematográficas. Um grande exemplo disso é o cineasta alemão F. W. Murnau, que filmou duas obras-primas baseadas em livros: “Nosferatu” (uma livre adaptação de Drácula, de Bram Stoker, realizada em 1922) e “Fausto”, de 1926 (inspirado no célebre poema de Goethe).

Por serem duas linguagens distintas, há quem não admire as versões audiovisuais de certos livros – especialmente se essa pessoa já conhecer a obra de antemão. Alfred Hitchcock, por exemplo, confessou a Truffaut que ele não trabalhava com livros famosos justamente para evitar as comparações de seus filmes com as histórias originais. Mesmo que o diretor se mantenha fiel ao texto literário, chega um ponto que adequações precisam para ser feitas para transformar as palavras em imagem e ação (ou seja, o cerne da adaptação cinematográfica).

E quando falamos da literatura brasileira revista pelo cinema nacional, três cineastas me vêm logo à mente: Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos e Joaquim Pedro de Andrade. 

Nelson, um dos pilares do Cinema Novo, realizou vários longas-metragens que usam como fonte o universo de nossos escritores. O romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, foi recriado pelo diretor em 1963 (que conseguiu extrair uma interpretação magnífica da cachorra Baleia). Ele retoma a obra de Graciliano em “Memórias do Cárcere”, de 1984 (transformando o calhamaço do autor alagoano num filme com duração de três horas).

Nelson Pereira dos Santos ainda se dedicou a Machado de Assis (o longa “Azyllo Muito Louco”, de 1970), a Jorge Amado (“Tenda dos Milagres”, de 1977 e “Jubiabá”, de 1987) e filmou “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, em 1993.

No ano de 1965, Roberto Santos também revisitou Guimarães – só que a narrativa escolhida foi “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (conto que encerra o livro “Sagarana”). Dizem que o filme de Santos foi a única versão cinematográfica aprovada pelo literato. Entre outras adaptações suas, podemos citar o episódio de “As Cariocas” (da obra de Stanislaw Ponte Preta, 1966) e “O Homem Nu” (baseado numa crônica escrita e roteirizada por Fernando Sabino, 1968).

Já Joaquim Pedro de Andrade realizou “O Padre e a Moça” em 1966, com Helena Ignez vivendo Mariana e Paulo José interpretando o padre (nessa produção inspirada no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade). Três anos depois, em pleno auge do AI-5, o cineasta dirige “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Nesse longa-metragem, a personagem Ci – a belíssima atriz Dina Sfat – torna-se uma guerrilheira! Por mais que a conjuntura política brasileira fosse desfavorável à criação artística, o filme constituiu-se a maior bilheteria da história do Cinema Novo. Joaquim ainda filmaria “O Homem do Pau Brasil”, do modernista Oswald de Andrade, em 1981.

Outras adaptações não podem ser esquecidas. Para destacar alguns exemplos, cito “A Moreninha” (dirigido por Lauro Mirko Laurelli em 1970), “A Hora da Estrela” (de Suzana Amaral, 1985), “Policarpo Quaresma – Herói do Brasil” (de Paulo Thiago, 1998) e “Memórias Póstumas”, de André Klotzel (realizado em 2000). Recentemente, duas excelentes transposições cinematográficas também devem ser mencionadas: “Mutum”, de Sandra Kogut (2007) e “Hotel Atlântico”, novamente da diretora Suzana Amaral (2009).

Esse é um tema bastante extenso e não pretendo dissecar cada uma dessas obras. Para quem não conhecesse os longas-metragens aqui citados, vale a pena se aprofundar no universo das recriações literárias do cinema nacional. Leia o livro e assista ao filme!

* Esse texto é dedicado a nossa amiga Fabiana Vascon,
professora de literatura e mãe de Clarice.


quarta-feira, 1 de junho de 2011

Abaixo da Superfície

Por Fabio Ramos


Sonho = manifestação do inconsciente.
Supondo verdadeira tal premissa,
o que pensar de mim?

Quase nunca sonho.
Essa noite foi uma exceção.

Não imagino porque raios
eu acompanharia um garoto desconhecido
num passeio ao parque
(porém, esta cena me ocorreu).

De repente, cadê a criatura?
E como justificar o desaparecimento da peste
para sua preocupada matriarca?
Freud veria sentido na falta de sentido?

Outro dia, sonhei com o recebimento
de dinheiro vivo.
Alguém me estendia cédulas amarrotadas
(desconheço o valor
e desconheço o motivo do obséquio).
O que Kerouac acharia disso?