terça-feira, 30 de junho de 2020

Amore

Por Denise Fernandes




Estou tentando me perdoar. É difícil. Perdoar aos outros também exige muito, mas perdoar a si mesmo é mais complicado. Entre os sonhos e as expectativas, a realidade pode ser o espinho da rosa da existência.

Sem amor, não existe aprendizado, vida, nem significado. A própria energia é amor. Em tempos de marketing, de ódio político, e igrejas que ainda temem o diabo, só o feirante Ricardo me salva. Ele me manda mensagem de áudio: "Oi, amore, tudo bem? O que você vai querer essa semana? A mamãe vai bem? Sua filha vai bem?".

Passo minha lista para ele, e toda semana vem aquela alegria de frutas coloridas. E o mais importante: a alegria de ouvir "Oi, amore!". Porque parece que o amor está mais raro, ou mais caro. No luto coletivo que vivemos, com cada vez mais miséria, doença e saudades, o amor que o Ricardo me dedica, com seu nobre trabalho, é um sol quentinho no inverno da cidade.

Outro dia, disse a ele que estava sem dinheiro para pagá-lo, e perguntei se podia fazer um depósito em conta. Ele se preocupou com a situação, e até me ofereceu dinheiro. Quase não acreditei na generosidade e confiança dele. Perplexa, agradeci. E depois comemorei com meu filho a sorte de convivermos com o Ricardo. Sem as feiras, as cidades são frias e sem graça. Sem amore, é quase impossível ter esperança.

Desejo toda a sorte do mundo para o Ricardo, e para todas as pessoas que ele ama. Muito amore, sempre amore, e frutas também. Quando as estrelas brilham no céu, elas emanam amore. No carinho das crianças, também amore. E quando, na madrugada fria, os feirantes vão chegando com seus produtos cheirosos, e transpiram, montando suas barracas, reviro no meu quarto as angústias que não posso esquecer.

Mesmo que eu nunca consiga me perdoar, sempre serei agradecida por ser amore, e pela feira, onde a alegria e o alimento se misturam; sedimentando o espírito urbano como troca.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

balada do fim do mundo

Por Ana Paula Perissé




acreditaria
que morremos flor
mesmo em solo
fértil?
há desmesura de nada conter
o imenso do que se finda.


morremos mata
morremos lua
mas separados


teu corpo de argila
e tua inexistência
pousam em meu corpo nu
e pesa;
brando, o tempo ainda
escorre nas paredes.


ser terra e dizer novamente
leva o tempo
do acaso
.
(éramos muitos
agora, ninguém)

domingo, 28 de junho de 2020

Amanhecimento

Por Oswaldo Antônio Begiato




Tem dias
em que descubro
a poesia
logo pela manhã,
e minha boca fica com gosto
de flor e orvalho.


Tem dias
em que ela
é que me descobre
logo pela manhã
e me põe totalmente nu
diante de um sol novo.


Nesses dias
sinto orgulho
de minha
insignificância.

sábado, 27 de junho de 2020

Olhai os lírios do campo

Por Meriam Lazaro




O agora é o sem tempo,
Aqui é a eternidade,
Fazer do amor um instrumento
De feliz boa vontade.
Vigiar o pensamento
Pra não cair na maldade,
Cumprir fiel juramento
Dia-a-dia com bondade.
De Jesus o ensinamento,
Sua tão grande verdade:
Este é o melhor momento
Pra viver felicidade.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Amores

Por Mayanna Velame




Já tive algumas paixões: umas avassaladoras, outras mais contidas. Contudo, todas foram vividas no seu modo e tempo. Falar de amor nos instiga. Afinal, como pode alguém, de repente, remexer nosso senso e juízo? A resposta talvez seja, justamente, não termos nada que defina o que sentimos um pelo outro, quando de fato nos apaixonamos. Amar é um rebuliço no estômago. É sentir o suor nas mãos, é gaguejar enquanto se declara, é escolher o presente com minúcia.


Dos meus tropeços amorosos, sempre dancei com esse sentimento tão nobre. Aprendemos algo em cada relacionamento, e deixamos algum tipo de legado. Creio que isso seja, então, o lado mais humanizador daquilo que chamamos de amor. O "A", por exemplo, ensinou-me a gostar de cervejas, vinho, vodca, loucuras, noites levianas regadas a porres. Foi um amor extremamente etílico. Durou pouco, mas o suficiente para, até hoje, eu apreciar uma boa bebida.


Entre idas e vindas, também amei o "B". Aprendi com ele que o amor pode se fazer presente a distância  e que, embora machuque, a saudade é capaz de condimentar uma relação. "B" me ensinou a gostar de forró, a comer rubacão. Fez-me desbravar o sertão e mostrou-me a simplicidade das coisas belas da vida: andar na garupa da moto e sentar à beira de um açude paraibano (enquanto o arrebol diluía-se entre as serras). "B" ofereceu-me uma música chamada Retrovisor e me disse adeus quando saí de Recife. Lembro-me que chegamos a passear pelas margens do Capibaribe, mas a magia daquelas águas não foi suficiente para regar o nosso amor.


Alguns meses atrás, me apaixonei por "C". Através desse amor, conheci o céu e o inferno. "C" não é oito; é oitenta. É um tipo de amor imprevisível e frenético. Hoje comigo, amanhã não se sabe. Uma hora acredito em suas palavras, em outra, penso ser apenas uma fantasia, um delírio sentimental. "C" se entregou pela metade e isso me frustra, pois o amor, em sua essência, precisa ser inteiro para, realmente, ser amor. Mas admito que "C" tem um lado bom: ele cozinha muito bem, apresentou-me o requinte e a sofisticação gastronômica. Aprendi a tomar amarula com café, e a amar sem medo ou convenções sociais. O mais interessante é que "C" ri do meu sotaque chiado, e, na mesma proporção, eu me desdobro com o excesso de seus erres. "C" é minha tempestade e bonança, solidão e coletividade. "C" é minha história de amor inacabada.


O amor é assim. Por isso, eu me jogo, rasgo-me, sofro, esperneio. Alimento a insônia, caio, levanto. Sonho e escrevo poesia nos muros da rua, para alegrar teus dias cinzentos. Posso me apaixonar por "Y", "X" e "W", abraçar o "H" e ser feliz com o "J". Mas creio que o amor sempre causará um engasgo na garganta. É inevitável. Amor é foguete, movimento, dinâmica. Ele requer doses diárias de coragem e protagonismo. Educado como é, o amor sabe se comportar. Entende sobre ser e estar, percebendo o momento certo de partir  mesmo que, para isso, seja necessário sangrar (em nome da liberdade de quem se ama).

quinta-feira, 25 de junho de 2020

10 minutos

Por Nana Yamada




Por dias, venho acompanhando a semana passar
Cada segundo avançando lentamente
Até chegar a contagem regressiva
Pensei que não fosse passar
Pensei que não fosse chegar
Mas, talvez, algo aconteça logo mais
Dez para meia noite
Fico esperando a luz brilhar
A mensagem chegar
Para dizer coisas boas e
Meu coração alegrar
Ele que passou
A semana na ansiedade
Pela data de hoje, que me trouxe
Um pouco de você...

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Muita hora nessa calma

Por Fabio Ramos




chore


até
que


não reste


uma
gota


de lágrima


(...)


chore
de


soluçar


mas
chore


de alegria


(...)


diante
do


altar


de
joelhos


pois
é lá
que


o Senhor está


(...)


e
aqui
embaixo


(sob a vossa proteção)


teu pequeno
servo


que
vos fala
neste momento

terça-feira, 2 de junho de 2020

Louças

Por Denise Fernandes




(Para Bia, Cauê e Clodine)

Recebo convites para vários tipos de meditação. Temos cursos online, compras online, eventos online, paquera online. Mas a real meditação se faz na pia cheia de copos, pratos com molho, frigideiras onde algo se grudou. O real é o detergente, e a esponja de lavar louças (que fica suja rapidamente).

E lavando louças, a gente medita sobre a vida. Imagina se podia ter tido uma vida amorosa diferente, tomado outra decisão na vida profissional. Lavando louças a gente questiona a política, imagina uma economia suficiente.

Enquanto a gente lava uma boa pia de louças, dá tempo pra rezar um "pai-nosso", uma "ave-maria" e depois fazer uma jornada até Buda. De Buda, sai um caminho até o Islã, um tímido Bismillah, que me une ao sagrado.

Do outro lado do mundo, tem uma pia japonesa que vi na televisão. A mulher japonesa lava louças sem detergente, e os peixes comem os restos de comida dos pratos.

Aqui, vou trocando a cor dos detergentes e seus falsos aromas  com o único objetivo de arrumar a louça lavada no escorredor. Minha escultura diária de amor e esperança, minha mandala de areia. Só lavando a louça me aproximo do tao.

Antes de começar a pensar nas diferentes visões do mundo, já tenho a imagem da minha mãe lavando louças. E o barulho da água, dos talheres deitando no escorredor. Minha mãe disse: "Lava melhor a louça quem faz menos barulho". Por quê? "Você não precisa ter raiva da louça", ela disse.

Talvez um dia a gente perceba que não perdemos tempo lavando louças. Ganhamos com essa atividade um tempo que é força radical, porque é paciência e humildade. Se um dia você se sentir muito perdido, lave uma boa pia de louças. E se ache.

Lavar uma boa pia de louças é como subir uma montanha. É fácil e difícil ao mesmo tempo, árduo e prazeroso, individual e coletivo. Lavando louças você ganha consciência: da chuva, da água, do tempo, de você, dos seus amores. Enquanto você lava louças, descobre que pode mudar tudo, e que talvez não mude nada.

Assim como cresce o cabelo, mais forte que as ervas daninhas, está a louça se alastrando de novo na pia.

Enquanto lavo louças, uma árvore na floresta queima, e sinto daqui a sua dor; um bebê vem ao mundo, e sinto daqui a sua força. Vou lavando a louça, e percebendo que tenho uma vontade de correr, tipo "Forrest Gump". E sonho com um beijo imaginário. Viver é mais intenso quando a água escorre em outro prato, e o liquidificador me espera de molho, astuto, fazendo quarentena.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

extinção

Por Ana Paula Perissé




(seu olhar me destinou à prisioneira)


um pequenino barco aturdido
leva quem não precisa ir
a lugares sem passaporte
.
sem pele.


sozinha enfurnada
não houve nada,
nem tapa na cara.


mentira com olhadelas cínicas
são apenas desvios para o barroco.
.
evanescendo
em vestes outras
.


(o único motivo
de vc ter desaparecido
é a sua extinção)