domingo, 31 de janeiro de 2016

Horas

Por Oswaldo Antônio Begiato




Vieste buscar as horas
Que, quando ainda jovem,
Deixaste abandonadas
No pêndulo do relógio


Elas trincaram a pele
Do reboco que escondia
A fraqueza das paredes
E a insolência do passado
E descoloriram a retina
Das cortinas que protegiam
A sala das vidraças, do sol
E dos maus olhados.


Leva-as consigo.
Guarda-as.


Guarda-as como quem guarda
O pão caseiro,
No forno do fogão
Cobertas por um pano de prato
Para que testemunhem a saciação
De quem as quer consumidas.


Guarda-as como quem guarda
A aliança de noivado,
Na caixinha de música,
Para que denunciem a subtração
De quem as quer furtadas.


Guarda-as.


Porque elas te encherão a vida de tempo
E te farão experimentar o fim.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Começos inesquecíveis

Por Meriam Lazaro




Resoluções de ano bom são tomadas na virada do ano em todo o planeta. Perecem, algumas, já ao estourar das borbulhas do espumante; outras têm o começo das grandes esperanças. São os janeiros, a propósito, os precursores de bons presságios.


No mundo dos livros, leitores podem ser conquistados desde as primeiras linhas, mas nem sempre isso ocorre e o autor não consegue despertar interesse durante as 40 páginas de amostra disponíveis nas livrarias virtuais. Há começos inesquecíveis que despertam curiosidade, fazendo o leitor vivenciar diversos papeis na versátil tela da imaginação.


No leitor comum, não especialista em literatura, dizem que a ponte é percorrida pela empatia. Sentimentalidades em comum, um texto pode prender a atenção por despertar riso ou nostalgia, ter diálogo farto ou escasso. Enfim, pela narrativa o livro cai nas graças ou desgraças de quem o lê naquele momento.


De minha parte, poderia citar – fácil – dez começos inesquecíveis. Folheei apenas para saber do que tratava o livro “Mudança”, do escritor chinês Mo Yan, e quando vi estava na metade da leitura. Começa assim: “O que quero narrar deve ter acontecido depois de 1979, mas o fio do meu pensamento teima em ignorar esse limite e volta àquele outono de 1969, com o sol radiante, seus crisântemos dourados e seus gansos migrando para o sul. Nesse ponto, já não me distingo de minha lembrança”.


Manhãzinha, com gratidão meus olhos se dirigem para um retalho de rio, a xícara de café fumegante na mesinha, um livro no colo. O dia começa no espaço entre as palavras.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Crônica diária

Por Mayanna Velame




Em uma das mãos, seguro uma caneta. Numa folha em branco, o vazio se manifesta. Nenhuma palavra nasce, nenhuma palavra grita. Agito meus dedos, folheio dicionários, consulto jornais. Ligo e desligo a TV.


A vida e seus acontecimentos não se resumem a noticiários de trinta minutos; com apresentadores sisudos e nauseados. Nosso viver é muito mais valioso.


Há tantos assuntos que deveriam ser abordados em uma crônica. Podemos escrever sobre o terrorismo amedrontando a Europa e o resto do mundo. Ou, então, expor nossa indignação a respeito da corrupção entranhada no país.


Esta crônica pode relatar a tragédia de Mariana; descrevendo os sonhos enlameados pela incompetência das mineradoras e autoridades brasileiras. Mais do que isso: esta singela crônica pode exprimir uma opinião acerca da crise econômica, do desemprego, da alta do dólar, do preço da gasolina, do caos da saúde pública, da violência de cada dia, dos Jogos Olímpicos na Cidade Maravilhosa. Sem esquecermos do Impeachment, do cinismo de Eduardo Cunha, da Operação Lava Jato, da Seleção Brasileira, do Corinthians, do rebaixamento do Vasco da Gama, da bomba H, das tempestades de verão, do carnaval. Tantos fatos batem à nossa porta. Mas, realmente, o que nos desperta o interesse?


A imprensa filtra os assuntos e nós absorvemos como esponjas. Notícia ruim vende, gera polêmica, garante audiência. Escrever sobre o que a mídia publica é cansativo, indigesto e redundante. Existem crises que cada um de nós carrega dentro de si. Crises que não estão nas manchetes dos jornais. Nossas crises estão aqui, circulando em cada artéria do corpo.


Cada dia que surge é uma crônica a ser escrita. Escrevemos porque a vida é rodeada de palavras (alegres ou tristes). Palavras de amor e ódio. Algumas delas são tão fortes que permanecem presas em nós. Para sempre. Escrevemos com os olhos, escrevemos com o pensar. Escreveríamos também com o coração? Somos autores da nossa efêmera existência.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Âmago

Por Daniella Caruso Gandra




Assim como o mistério que há na noite, na luz que vem de sua escuridão, da lua que escolhe um ponto da rua pra iluminar, e de um suave ruído que o silêncio vem quebrar, é o mar em mim sem aportar. 


Jeito que destila ânsias, feito resina, se fixa sem se debater, no meu peito a temperatura se adita a romper estados pantanosos tão comuns em meu ser. 


Sem perceber, quase como um filete que a inércia vem mover, me desfibrila e reverte o quadro de pintura íntima ainda inacabada de mim. 


Taciturnamente, gesticulo o nascer das palavras que instantaneamente meu coração exorta na medida em que o tempo desembarca no meu rito de passagem nada popular. 


E aí, quero dizer, daqui, meu espírito, sem qualquer desvelo, nem traçamento, transpõe a minha razão, superando toda ilusão.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

mil novecentos
e cacetada

Por Fabio Ramos
 
 
 
 
um tapetinho
para não


sentar
no
chão


menino queria
menino


(sabia)


custava lhe fazer
a vontade
?


(SE)


olhos na tevê


biscoitos
na
mão


(CALAVA)


um cômodo de
aluguel


um
piso
escarlate


que refletia o brilho
da cera


num terreno
coberto
de
mato


(...)


mamãe e vovó
entravam em acordo


ÀS VEZES
 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

ainda

Por Ana Paula Perissé


 
 
                                    abri receosa
                                    parte do céu
                                    com requinte
                                    de crepúsculo
                                    assim fico
                                    porque me lê em meus seios
                                    e eu passo a faca no poema
                                    de onde por enquanto
                                    não tem cortina à prova de fenda.
 
 
                                    inesperadas rugas
                                    pedem traços novos
                                    depois de tanto tempo
                                    de 1´dança
                                    brincam de passado
                                    porque não há tempo
                                    é por aqui
                                    que aparece sem muito retorno
                                    a chave de mergulhar em época
                                    eterna de instantes
                                    o amor do eu te amo.
 
 
                                    recuo de onda
 
 
                                    ainda.
 
 
                                    (para sempre
                                    para nós)
 
 
                                    paúra iminente do intenso