sábado, 28 de fevereiro de 2015

Taças vazias

Por Meriam Lazaro




Sonhara com duas taças de cristal com bordas douradas. Uma grande como a taça em que é servido o vinho dedicado à consagração e outra de tamanho comum. Não havia uvas por perto, nem vinho ou água ou folha de parreira. Certa de que a taça maior lhe pertencia, aceitou com condescendência a escolha da amiga, que lhe deixou a de menor tamanho.


O tempo passou. A amiga da taça grande, agora com a taça menor, não bebia do líquido pequeno para não gastá-lo. Por isso mesmo o líquido estagnou e tornou-se indigesto. A outra, possuidora da taça maior, mas sem merecê-la porque era, originalmente, da amiga, também dela não bebeu. Sorveu amargamente a vida que não era sua.


No momento do ritual de troca das taças, já cansadas de sonhos sem prática, tropeçaram e deixaram ir ao chão o cristal que se partiu em vários pequenos sonhos. Lá de cima os anjos guardiões, divertidos, deram-se uma piscadela. Estava na hora do brinde à incerteza que gera vida!
 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Maria Amélia, eu te amo!

Por Amilcar Neves*

 
Era o seu grito de guerra quando voltava para casa algumas vezes por mês, nos dias em que estaria de folga à noite do seu trabalho de vigilância na Universidade: "Maria Amélia, eu te amo!" A vizinhança chegava às janelas, abria as portas, debruçava-se sobre o muro baixo, apoiava-se ao portão, ou melhor, à porteira que dava para o caminho de terra batida pomposamente chamado Estrada Geral do Córrego Grande, pelo qual o trânsito era escasso e as pessoas gastavam muita sola quando não chovia. Não havia calçadas, apenas um capim que crescia onde o gado não alcançava pastar.
 
"Maria Amélia, eu te amo!", e as pessoas riam dentro das casas, e diziam: "O Moacir hoje não trabalha de noite!" E vinham à rua para vê-lo passar alegre e feliz, tão leve e desoprimido que até se diria que os pés não tocavam a poeira do chão, o que dava a sensação de que cambaleasse quando, na verdade, ele flutuava.
 
Antes de, por fim, abrigar-se em casa, uma construção despretensiosa, porém ampla, ventilada e iluminada erguida na parte da frente do terreno que era um sítio, praticamente uma fazendola, havia que transpor a entrada, um longo bambu atravessado a meia altura entre dois moirões da cerca com o fim único de impedir suas vaquinhas de saírem para os campos em volta e o gado alheio de apropriar-se do sustento da sua criação, comendo-o, ou de servir-se das suas reses, cobrindo-as. Na hora de enfrentar o obstáculo, soltava de novo: "Maria Amélia, eu te amo!" Jamais invertia a ordem entre o vocativo e o afirmativo.
 
Em casa, Maria Amélia o esperava com um chá de losna bem forte e a inevitável sopa de galinha caipira proveniente das crias do quintal. No forno, o pão caseiro fumegava, ávido por receber, nas fatias, camadas de nata batida ou de manteiga fresca que não davam conta de consumir. "Maria Amélia, eu te amo!" Não fossem a dedicação e o recato da mulher, poder-se-ia pensar que o Moacir fizesse, por via das dúvidas, o que fazem hoje os funcionários das empresas de segurança que, no cumprimento dos contratos que elas mantêm com seus clientes, patrulham de motocicleta as suas casas, apitando porém desde a esquina, com seu apito inconfundível, como a dizer que não querem complicações com malfeitores de qualquer espécie.
 
Havia sempre uma dificuldade considerável com o demônio daquele bambu, nem tão alto que lhe permitisse transpô-lo por baixo e nem tão baixo que o deixasse vencê-lo por cima. Mas, uma hora, sempre havia de conquistar o acesso ao território sagrado: "Maria Amélia! Eu te amo, viste, mulher?"
 
Em pouco tempo o progresso chegou: com asfalto, carros, buracos, prédios e um mundo de pessoas estranhas que, ele via, riam dele de uma maneira muito diferente da carinhosa saudação dos seus vizinhos de toda vida. Ao lado da sua casa brotou de súbito um monstruoso edifício apinhado de apartamentos amontoados. E seu grito de guerra agora incomodava muita gente a um tempo só.
 
Para piorar as coisas, há as comemorações, horas a fio, em dias de futebol. Torcedor do Avaí de hastear bandeira, nas vitórias azuis a casa de Moacir se enche com gente trazendo uma carninha, uma cervejinha, um foguetinho; nas derrotas, o povo do Figueirense não para de passar com buzinas e fogos. Um inferno! Será que esse pessoal não podia torcer por times de verdade, do Rio, de São Paulo ou de Porto Alegre?
 
Por três vezes chamaram a polícia para recolher aquele bêbado inconveniente que chegava aos berros pelas ruas do bairro, que agora é residencial.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.10.11

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Amanda e outras tantas

Por Fabio Ramos


 
 
quantas amandas
você mordeu?

 
quantas
amandas você
não
beijou
?

 
quantas amandas
você comeu?

 
com
quantas
amandas você
broxou
?

 
quantas amandas
você traiu?

 
quantas
amandas você
exibiu
?

 
quantas
amandas você
amou
e
nem foi
correspondido?

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Outono

Por Denise Fernandes




ainda me lembro, minhas bonecas de cabelo cortado
 
rabiscadas, minha mãe, denise, o que você fez?
 
você cortou, rabiscou, estragou tudo?
 
eu perplexa. não pensei em estragar:
 
apenas me derramei reconstruindo
 
minhas bonecas. companheiras.
 
enquanto pequenas guerras desespero


 

agora que já não tinha nenhuma boneca,
 
ganhei uma. E, vejo que se parece comigo
 
o nariz arrebitado, as bochechas rosadas,
 
os cabelos rebeldes, o corpo azul

 


e a boneca nova me lembra todas as outras
 
é difícil que seja assim:
 
o novo-velho-novo-velho
 
uma porta abrindo tantas outras portas
 
toco a boneca espero
 
que minha afilhada chegue para brincarmos
 
a boneca quer brincar
 
e também me assombra com pensamentos
 
não é vodu, não é filme de terror
 
é a vontade nova que eu não esperava,
 
e o outono, se anunciando. 

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

disfarce de mundo

Por Ana Paula Perissé




                                         longe, longe, longe
                                         por detrás de 1´colina
                                         eram muitos
                                         e vinham comigo
                                         há alguém por se lembrar
                                         do golpe?


                                         sim, há vinhas perdidas
                                         romeiros sem destino
                                         tremores de estrelas
                                         térreas


                                         sim, há sementes nuas
                                         vidas ainda sem delito
                                         vontades de sonhos
                                         ou disparates de ruínas
                                         vivas


                                         longe, há de perto
                                         duas ou três vezes
                                         mais
                                         um inominável
                                         o tremor de se ter só
                                         ( amado por mil amores
                                         estrangeiros de sal)


                                         longe
                                         há.
                                         por perto,
                                         vem.


                                         (ponha teu nome
                                         debaixo do meu)


                                         porque longe
                                         de tão perto
                                         é cisão
                                         de teu corpo enleado
                                         ( disfarce de mundo)
 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Desmazelo

Por Oswaldo Antonio Begiato


 
 
Meu doce amor, que essa vá lhe achar com saúde.
Tenho sofrido o suplício de sua ausência,
Sentido uma saudade dura e incontrolável
Rasgando as águas turvas de meu coração.
 
 
Navalha impiedosa incisa sem deixar sangrar;
Dói feito a penetração pungente da espada.
Do beijo além do cheiro formoso da aurora
Sinto falta do despertar florido e fresco
 
 
E do adormecer nos braços do entardecer.
Do corpo retenho a ardência e o forte perfume
Da ambrosia e do néctar que, distraída, trouxeste
 
 
Por conta de um descuido dos deuses do Olimpo.
Meu doce amor, vem, nem que seja por desleixo,
Cuidar das dobras bobas de meus sentimentos.
 

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Por que uma bola não é uma bola e
quanto tempo leva um almoço?

Por Meriam Lazaro


Imagem: Meriam Lazaro

 
Sempre teve gosto por desaparecer. No primeiro relato, dos três anos de idade, a patrulha familiar passou, perguntando ao merceeiro se havia visto uma menininha assim, assim... – Não passou por aqui! A patrulha seguiu em outra direção. Minutos depois, o toco de gente saiu de trás do balcão da mercearia, quase sob as pernas do merceeiro. Vários sumiços depois, quis se perder na Avenida São João, quando em São Paulo. Não teve jeito. Uma batidinha no ombro denunciou um amigo, morador do outro lado do país. Que fazer?! Novos tempos, fabulosos meios de comunicação, permitem informar como está “se sentindo”. Numa dessas, anuncia: “saindo para almoçar com uma amiga”. Depois da saída às 10 horas da manhã, com a volta pelas 6 horas da tarde ou, não raro, mais à noite, veio a pergunta curiosa: – Que almoço é esse? Eis o ritual. Saio a pé, aproveito para pagar uma conta, comprar algo no supermercado, já na casa da amiga espero a criatura se arrumar, saímos para escolher restaurantes, entramos em três ou quatro, voltamos ao primeiro, conversa vai conversa vem, caminhada pelo parque e cidade, ida à igreja (que tem banheiro limpinho), pernas descansadas, fotografia daqui e dali, mil paradinhas para cumprimentar conhecidos e desconhecidos, hora do café da tarde na padaria, amigos são chamados, vemos passar o cantor, alguém intima para o chimarrão em casa, no inverno tem pinhão cozido e vinho, no verão tem “servejinha” com algo espetado sobre o fogo, mais conversa vai e vem... Assim se dão os sumiços anunciados com o nome de almoço. Agora, por que uma bola não é uma bola, que me perdoem!! Quem fez uma pergunta dessas?

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O bloco da saudade

Por Mayanna Velame




“Vai, vai saudade / Me deixe viver sossegado / Vai, vai saudade / Há tanto tempo você vive ao meu lado.” E a saudade é assim: também permeia as letras das marchinhas de carnaval. Há dias que acordamos dessa forma, com alguns sintomas de tal sentimento. Difícil não viver sem ela; pois a saudade não cabe numa mala de viagem, não cabe num poema de amor. A saudade é ferida aberta que (quando cutucada) arde até o último segundo.


Saudade faz morada nas canções ouvidas, resplandece nas fotografias vistas, reativa as lembranças adormecidas. Traz à tona a presença de alguém que não está mais ali. Saudade ressuscita aromas, reapresenta sabores.


A vida se resume em duas palavras: chegadas e partidas. Estamos sempre indo e vindo. Essa é a lei que rege nossa existência. Deixamos nossos gostos, preferências, gestos e rabugices – como marca inapagável – no coração das pessoas.


De toda saudade presente, o passado se materializa. Só sentimos falta daquilo que se foi. E a saudade é como um alarme que, ao ser acionado, dispara freneticamente.


Das marchinhas de carnaval, a saudade irá desfilar na avenida de nossas vidas. Em nosso samba-enredo, há sempre uma ala da saudade desfilando na memória. E no bloco da saudade, só existe espaço para quem gosta de senti-la.


Afinal, a saudade é como o carnaval: faz um barulho danado (dentro do peito), arrepia os cabelos da nuca e faz o nosso coração sambar.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Das vantagens de sair caminhando por aí

Por Amilcar Neves*

 
Já estamos quase cansados de tanto exercício, ou melhor, de tanto ouvir falar que a atividade física é importante, talvez fundamental, para a manutenção de boas condições de saúde do corpo e da mente. Mexer-se em ritmo puxado ajudaria a combater a hipertensão arterial e a prevenir a (ou o) diabetes, a reduzir a obesidade e melhorar o sono, a tonificar os músculos e inflar a autoestima, a oxigenar o cérebro e destravar as juntas.
 
Para os que são da água, costuma-se prescrever a natação como santo remédio; para os da terra, a simples caminhada operaria milagres. O voo seria a atividade física ideal para os que fossem do ar, caso existissem entre os humanos gente com essa habilidade; acredita-se que não exista.
 
Houve tempo em que fazer exercício era matéria restrita às aulas de educação física nas escolas ou às obrigações dos atletas profissionais nos clubes. Homens adultos, velhos já de 30 anos, usariam terno escuro, camisa branca de colarinho, gravata preta, sapato social de couro e chapéu de abas em feltro também escuro a fim de se protegerem do sol ou do sereno, dependendo do período do dia em que tivessem que se expor às inclemências atmosféricas – e não fariam exercício de espécie alguma sob pena de serem malvistos e malfalados: coisa de desocupados, como os artistas e os escritores.
 
Às mulheres, então, nem se fala: inadmissível perder-se em exercícios físicos uma senhora casada, mãe de família com três ou quatro filhos paridos na fase da vida de maior rendimento das gestações, ou seja, entre os 20 e os 30 anos (antes de se tornarem balzaquianas, quando então, se não tivessem logrado o matrimônio, passavam automaticamente a contar entre a legião inconsolável e irremediável das solteironas, perdidos para sempre os gozos da vida – e geralmente ainda virgens).
 
Os tempos mudaram e percebeu-se que os infartos, derrames e tromboses, entre outros males, poderiam ser retardados ou amenizados pela atividade física regular e assistida. Foi quando explodiu a febre das academias e todo homem e cada mulher passou a se ver como atleta de alto rendimento – se não efetivo, pelo menos potencial. A história das autoajudas: você tudo pode se acreditar que pode. Profissionalizou-se o que era exercício banal, repleto de roupas, acessórios, cores e modismos.
 
Todo mundo começou a caminhar em marcha forçada. Os parques e vias públicas povoam-se cada vez mais de gente paramentada caminhando de um lado para outro, todos sorridentes em seus ares superiores.
 
Então, de repente, cai a bomba: caminhar não faz mais a cabeça do organismo, não dá mais conta da saúde mental e é preciso romper esse ciclo vicioso ao qual submetemos o nosso corpo que já anda quase sozinho, no piloto automático, sem beneficiar-se mais da imprescindível atividade física.
 
A ordem agora é correr – com novos equipamentos, com acessórios específicos, com consultores esportivos. Com custos crescentes.
 
No entanto, ainda é a caminhada, desinteressada do desempenho olímpico, a atividade que permite perceber que as pessoas têm olhos, e não endereços eletrônicos; que concede um tempo pessoal ao andante (quando ele caminha na rua e, não, parado sobre uma esteira mecânica à frente de uma televisão ligada); que revela os jacarés no Rio do Sertão; e que libera o escritor para gerar o seu conto, a sua crônica ou a solução para sua novela, textos que depois, no seu refúgio, é só passar para o papel ou a tela do computador. Com um pé nas costas.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 28.09.11

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Musa

Por Fabio Ramos




em
teus
braços
 

(acolha)
 

em tua
cama
 

(receba)
 

em
teus
meneios
 

(valia)
 

em tua
vida
 

(perceba)
 

você
é
amparo
 

mas ele
não
é 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

tremores

Por Ana Paula Perissé


 

                                         (renúncia de vento
                                         ouço pequenos tremores
                                         de folhas distantes)


                                         falta-me o quê deixei
                                         ou aquilo que me deixaram
                                         pois
                                         grita-me o deixado
                                         em fôrma de outra vida
                                         ainda tão vívida
                                         que páro de pulsar


                                         por instante híbrido


                                         deixo-me.


                                         sem
                                         1´alpendre
                                         1´pai
                                         1´família
                                         1´mato em casa


                                         assombro de abandono
                                         apenas:
                                         1´grão
                                         sem
                                         ampuleta


                                         mas ainda com vida
                                         .
                                         .
                                         .

                                         a parir.


                                         ( névoa verde
                                         ou húmus
                                         porvir)