terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Penélope

Por Denise Fernandes




Cinco horas da manhã. Ele caminhava – na madrugada um pouco fria – com a mochila preta. Dentro, o cadáver da cachorra. Pra lá, pra cá, andou ele como um cachorro perdido, pelo dia clareando. Começou a chover e ele lembrou que, quando as pessoas boas morrem, chove. Quando seu avô morreu, choveu. Agora que Penélope morria, chovia. Porque Penélope era muito boa e se igualou às pessoas na sua forma de amar. E ele ousou pensar que amou Penélope mais do que muitas mulheres.

Sentou num banco e chorou. Chorou pensando que ela era rosa. A Penélope, charmosa, toda rosa (com seu pelo preto e barriga branca). E quando punha a patinha no rosto, fingindo vergonha, ela era puro rosa.

Cento e noventa e oito reais custou na clínica o total para ficar com o corpo. A prefeitura incinera e cobra por isso. Ele pensou em enterrar na praça, mas teve medo de ser preso por tanto amor. E ficou vazio. Sem corpo, sem cinzas, sem cruzinha para fincar em qualquer lugar. A mochila preta? Deixou na clínica também. Não queria mais tocar naquele túmulo. E ficou oco. Pagaria mais para não ficar tão oco. Sem seus latidos, sem seus olhos doces. Agora esse luto. Essa tristeza triste. Não vão fazer sabão dela. Antes faziam sabão de cachorros? Ou era mito? Lembro-me de chorar, pensando na carrocinha cheia de cães que virariam sabão.

E ele me ligou para dizer que estava triste, que passara a noite com o corpo e agora não queria mais carnaval. Catorze anos foram ela e ele, ela e ele, ela e ele. Tudo virou quarta-feira de cinzas.

Me ofereci para tirar os objetos dela. Ele agradeceu. Perder dói demais.

Vejo o fantasma da cachorra pela casa. De certa forma, ela está gostando de viver mais livre. Agora ela passeia muito, sai quando quer. E não guardou mágoa de eu ter ficado puta quando ela fez xixi no meio da sala.

No carnaval, nosso luto é maior que a avenida, mesmo ela sendo uma cachorra pequena, vira-lata, do tipo que rouba comida de cima da mesa, faz xixi no tapete por pirraça, demonstra ciúme das visitas, e tem alguns pesadelos à noite, chegando a chorar de susto. Uma verdadeira praguinha a cachorra, que nos faz tanta falta. Não que haja revolta de nossa parte com a perda. Há apenas um medo onde agora há o silêncio que ela preenchia com sua existência. Até o buraco onde havia sua respiração tão canina nos perturba.

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