quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Casa velha, coisas velhas

Por Amilcar Neves*

 
Numa noite quente qualquer, o futuro escritor escrevia um dos seus primeiros contos. Sentava-se à mesa de jantar numa sala do casarão talvez já centenário na ocasião. Como ainda era apenas projeto de ficcionista, não tinha espaço próprio na casa velha: era, ainda, um escritor sem escritório. Mas já tinha de seu uma biblioteca. Modesta e bem sortida, uma biblioteca para chamar de sua. Os livros integravam-se ao ambiente, de meio a vasos, enfeites, crianças, fotografias e, claro, móveis e louças. Animais não eram admitidos no interior da residência.
 
A casa fora construída junto à calçada, como era hábito na época da sua ereção (consulte antes o dicionário, por obséquio, quem pretender esboçar um sorriso malicioso, aqui inconveniente), com porta e janelas debruçando-se sobre os passantes que traziam notícias e levavam informações. Dessas aberturas – ponto estratégico – controlava-se a entrada e saída de gentes, cavalos e veículos que procuravam a praça central da cidade. Para trás, virado para o nascente e para a Ilha, o terreno abrigava dois coqueiros carregados de cachos de butiá, um campinho de futebol, muita árvore e gramado, e terminava nas areias da Baía Sul, que limitavam sua continuação; hoje, é um aterro com avenida por cima que o reprime, com bem menos poesia e encanto do que o mar.
 
De um lado morava o Jayro Schmidt, do outro havia um palacete sinistro onde teria ocorrido há tempos um crime passional com o emparedamento da jovem e bela dona da casa; atravessando a rua, subia-se o morro quase à frente do casarão para encontrar de súbito o cemitério da cidade, povoado de vetustos cidadãos do lugar.
 
O casarão: vinha com porão alto e frequentável, com um vasto sótão infestado de cupins, com ruídos noturnos inesperados e suspeitos, com um razoável elenco de fantasmas. Destes, o mais notável leva o nome de Germano, cujo túmulo, perfeitamente identificável, o espera no cemitério próximo. Germano tem por hábito perseguir senhoras idosas dentro da casa, obrigando-as a correr mesmo incapacitadas para a celeridade dos deslocamentos. Alcançando-as, vampiresco, ele as morde nas costas. Nunca se soube com precisão o que acontece depois desse abraço por trás: talvez o terror e o pudor – ou o prazer – impeçam essas senhoras, pobres vítimas, de detalhar os fatos posteriores. Lá, dormia-se com a luz acesa.
 
As pessoas nascidas ao tempo deste alvorecer para a literatura acima referido estarão em final de carreira se forem jogadores de futebol, terão completado o doutorado caso hajam enveredado pela pesquisa e o magistério, ainda não se terão casado, e muitas viverão com os seus filhos na casa dos pais, desobrigadas de compromissos mais sérios em sua vida particular: não faz tanto tempo assim, portanto. Um escritor escrevia à mão ou com máquina de escrever manual, pois as elétricas, caríssimas, eram para as firmas de sucesso e os computadores, exclusividade de raríssimas empresas de grande porte. A música e o mundo lhe chegavam pelas ondas hertzianas, como proclamavam os locutores, em radinhos de pilha japoneses. O Japão era a China de hoje.
 
O conto que falava do casarão, da sua vizinhança e do seu morador mais ilustre, o Germano, foi bruscamente interrompido naquela noite quente que já avançava bem porque algo queimou e inchou dolorosamente, de imediato, o pé esquerdo do escritor, obrigando-o a correr para a emergência do hospital, que ficava longe – obra, talvez, dum inseto. Que jamais foi localizado.

*Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 19.10.11

Nenhum comentário :

Postar um comentário