Por Amilcar Neves*
Numa noite quente qualquer, o futuro escritor escrevia um dos seus
primeiros contos. Sentava-se à mesa de jantar numa sala do casarão
talvez já centenário na ocasião. Como ainda era apenas projeto de
ficcionista, não tinha espaço próprio na casa velha: era, ainda, um
escritor sem escritório. Mas já tinha de seu uma biblioteca. Modesta e
bem sortida, uma biblioteca para chamar de sua. Os livros integravam-se
ao ambiente, de meio a vasos, enfeites, crianças, fotografias e, claro,
móveis e louças. Animais não eram admitidos no interior da residência.
A
casa fora construída junto à calçada, como era hábito na época da sua
ereção (consulte antes o dicionário, por obséquio, quem pretender
esboçar um sorriso malicioso, aqui inconveniente), com porta e janelas
debruçando-se sobre os passantes que traziam notícias e levavam
informações. Dessas aberturas – ponto estratégico – controlava-se a
entrada e saída de gentes, cavalos e veículos que procuravam a praça
central da cidade. Para trás, virado para o nascente e para a Ilha, o
terreno abrigava dois coqueiros carregados de cachos de butiá, um
campinho de futebol, muita árvore e gramado, e terminava nas areias da
Baía Sul, que limitavam sua continuação; hoje, é um aterro com avenida
por cima que o reprime, com bem menos poesia e encanto do que o mar.
De
um lado morava o Jayro Schmidt, do outro havia um palacete sinistro
onde teria ocorrido há tempos um crime passional com o emparedamento da
jovem e bela dona da casa; atravessando a rua, subia-se o morro quase à
frente do casarão para encontrar de súbito o cemitério da cidade,
povoado de vetustos cidadãos do lugar.
O casarão: vinha com porão
alto e frequentável, com um vasto sótão infestado de cupins, com ruídos
noturnos inesperados e suspeitos, com um razoável elenco de fantasmas.
Destes, o mais notável leva o nome de Germano, cujo túmulo,
perfeitamente identificável, o espera no cemitério próximo. Germano tem
por hábito perseguir senhoras idosas dentro da casa, obrigando-as a
correr mesmo incapacitadas para a celeridade dos deslocamentos.
Alcançando-as, vampiresco, ele as morde nas costas. Nunca se soube com
precisão o que acontece depois desse abraço por trás: talvez o terror e o
pudor – ou o prazer – impeçam essas senhoras, pobres vítimas, de
detalhar os fatos posteriores. Lá, dormia-se com a luz acesa.
As
pessoas nascidas ao tempo deste alvorecer para a literatura acima
referido estarão em final de carreira se forem jogadores de futebol,
terão completado o doutorado caso hajam enveredado pela pesquisa e o
magistério, ainda não se terão casado, e muitas viverão com os seus
filhos na casa dos pais, desobrigadas de compromissos mais sérios em sua
vida particular: não faz tanto tempo assim, portanto. Um escritor
escrevia à mão ou com máquina de escrever manual, pois as elétricas,
caríssimas, eram para as firmas de sucesso e os computadores,
exclusividade de raríssimas empresas de grande porte. A música e o mundo
lhe chegavam pelas ondas hertzianas, como proclamavam os locutores, em
radinhos de pilha japoneses. O Japão era a China de hoje.
O conto
que falava do casarão, da sua vizinhança e do seu morador mais ilustre,
o Germano, foi bruscamente interrompido naquela noite quente que já
avançava bem porque algo queimou e inchou dolorosamente, de imediato, o
pé esquerdo do escritor, obrigando-o a correr para a emergência do
hospital, que ficava longe – obra, talvez, dum inseto. Que jamais foi
localizado.
*Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 19.10.11
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