Por Amilcar Neves*
Não vou negar: fiquei tentado a dar a esta crônica o título "Era para ser
esporte". Mas esporte pressupõe a prática de exercício, comumente
exercício físico (fecundo exercício intelectual, no caso do xadrez). Assim,
esporte é para os atletas.
Para os espectadores, que vão ao estádio assistir a uma partida de futebol, por
exemplo, trata-se de divertimento. Quer dizer, era para ser divertimento.
Pode-se argumentar que a paixão, exacerbada, altera um tanto o conceito de
diversão.
O argumento, porém, não se sustenta. Existe muita gente que se diverte
profundamente com a leitura de bons livros. Isto porque nutre profunda paixão
pelos bons livros e com eles passa horas inesquecíveis e fecundas como se
jogasse uma partida de xadrez. No caso, o espectador (leitor) é também o
atleta, pois se exercita intelectualmente com grande prazer e imensa paixão.
A paixão, pois, não transfigura a natureza do divertimento, antes lhe dá sabor
e graça.
Assim, no futebol, a paixão do torcedor significa envolvimento emocional, mas
não o autoriza a perder a razão, o bom senso, o equilíbrio e a consciência de
que aquilo que se desenrola ali à frente é apenas jogo – não é a vida. Para
assistir à partida, paga uma soma em dinheiro, outra em tempo e estamos
conversados.
Esporte também é negócio, claro, que movimenta enormes somas de dinheiro que
mudam de mãos em velocidade surpreendente. Para o espectador, para o torcedor,
isso não tem a menor influência porque ele não investe nem lucra com o esporte.
Era para ser apenas divertimento, mas começa a ser outra coisa quando um
torcedor do Avaí, sorteado para uma brincadeira no centro do gramado durante o
intervalo do jogo que ia num empate sem gols, caminha para a torcida do
Figueirense fazendo gestos obscenos. Foi imediatamente retirado de campo e
levado ao plantão judiciário. Em seguida, estoura uma briga no Setor D da
Ressacada: cinco ou seis avaianos enfurecidos partem para cima de um confrade.
Era para ser só divertimento, mas aos dois minutos do segundo tempo, de forma
orquestrada, um grupo de moleques (moleques no sentido tanto da pouca idade
como da velhacaria) colocados lado a lado em toda a largura ainda do Setor D,
acende sinalizadores, todos ao mesmo tempo. A fumaça densa toma conta da
arquibancada coberta, obriga os espectadores a inalar o fumo azul e se alastra
pelo gramado, interrompendo o jogo (coincidência ou não, amanheci no dia
seguinte com sangramento em ambas as narinas). Sem vento na noite de domingo, a
nuvem não se desfaz. Dezesseis minutos depois, o jogo recomeça e o Figueirense
marca o gol que definiria a partida.
Era para ser unicamente divertimento, mas, findo o jogo, as rádios entrevistam
pessoas denunciando que pedras, vindas de fora do estádio, foram arremessadas
sobre a torcida de preto e branco, retida nas arquibancadas descobertas para
evitar confrontos enquanto os outros saem. Crianças de seis a oito anos,
meninas e rapazes, teriam sido atingidas na cabeça, no rosto e nos braços.
Assustadíssimas, são atendidas nas ambulâncias do estádio, enquanto outras
levam pelas mãos os pais que sangram.
Era para ser divertimento, mas sobreveio a súbita ruptura da tranquilidade que
sempre foi assistir a jogos de futebol na Ressacada. E um sintoma preocupante
de que algo pode estar mudando radicalmente.
Mais uma dessas e prometo ignorar o futebol para me divertir e me emocionar,
com paixão e gosto, só com a leitura de bons livros – e outros prazeres
pertinentes.
*Crônica publicada no jornal
"Diário Catarinense" de 06.04.11
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