sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

25/12

Por Sérgio Bernardo



                                   Para a palavra natal
                                   traduzir nascimento
                                   devo entrar no seu sentido
                                   — não o etimológico —
                                   o sentido real

                                   Devo fazer do dia algo mais
                                   que a distribuição de caixas
                                   ao pé de um verde imaginário
                                   ou de um cadáver vegetal

                                   Devo entranhá-lo na carne
                                   encher dele as veias
                                   devo bebê-lo e comê-lo
                                   muito mais que vinho e nozes

                                   Para o natal ser feliz
                                   e feliz desejá-lo ao outro
                                   existe uma cláusula:
                                   que em mim se transforme
                                   o não-homem destruído

                                   Só assim haverá natal:
                                   repaginando-me a cada
                                   vinte e cinco do doze

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Dessas, Daquelas,
De Todas que Afogam Suas Amélias

Por Rayane Medeiros
 

“Eu quero mais é me abrir
E que essa vida entre assim
Como se fosse o sol
Desvirginando a madrugada”
(Não Dá Mais Pra Segurar [Explode Coração], Gonzaguinha)

 
 

          Ela é dessas de vida fácil. Não se vende. Entrega-se por paixão às aventuras; aos amores impossíveis; às carências incuráveis. Nunca a viram chorar. Nunca. Não porque a tristeza não tenha lhe visitado alguma vez. Em verdade, mente para si mesma o quanto é inquebrantável. Em noites de solidão, engole as amarguras num copo com gelo e Rum. É dessas que se apega aos vícios para preencher vazios. 
 
          Enquanto criança, foram os livros os únicos amigos que a timidez a permitiu ter. Não falava, não sorria, sequer piscava os olhos. Suspeito que em momentos de sociabilidade, não tenha respirado. Era daquelas que passavam despercebidas, sem nada acrescentar
 
          Chegou na juventude como foi em toda sua vida: invisível. Foi num desses dias em que se é preferível não levantar, que ela o conheceu. Deu com ele na segunda esquina, quando ia à padaria, como todos os dias fazia logo bem cedo. Poderia ser mais um, entretanto, ele esbarrou, parou, pediu desculpas, ofereceu um café. Ela desnorteada, piscou, tentou um sorriso que insistia não querer sair. Disse sim com as feições que lhe foram cabíveis. Finalmente respirou.  
 
          Ele é daqueles que, mesmo se a beleza não o tivesse abraçado, seria igualmente irresistível. Voz de sussurro ao acordar; dentes à mostra tão alinhados e despidos de vergonha quanto os olhos deixando a alma saltar em euforia.  
 
          Ele a viu, a desejou, a conquistou, mas nunca a amou. É desses homens que têm o coração impenetrável. Não duvide se eu disser que ele sofre. Sim, meus caros, ele sofre! Sofre por nunca conseguir amar. E não há sofrimento igual, ao de nunca alcançar o maior de todos os deuses. E quando viu aquela jovem que o medo a impedia até mesmo de sorrir, acreditou que podiam salvar um ao outro. Em vão.  
 
          Entregaram-se. Corromperam-se. Mas não se amaram. O amor era aquele bicho selvagem que quanto mais o perseguiam, mais ele se embrenhava no mato. Amor é bicho esperto. E, mesmo se capturado, não há cabresto que o consiga prender no peito. 
 
          Cansaram-se. Como tudo que não nos basta, nos cansa irreversivelmente. Ele partiu assim como veio. Pegou um novo rumo logo que chegou na esquina onde o acaso topou com eles. Ganhou o mundo. Nunca volta. Por que voltaria?
 
          Ela, dessas que nunca choram. Procurou nos homens a felicidade que nunca foi capaz de encontrar em si mesma. Mas, quem sabe um dia? Enquanto isso esbarra em bares; noites frias; bocas doentias; mãos frívolas infiéis; amores que nunca serão seus. Nunca.  

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Retrospectiva Literária 2012

Por Fabio Ramos


A tradição natalina não fica completa sem as inúmeras listas de melhores e piores do ano! Vou seguir o caminho da correnteza (e dos jornalistas com falta de boas pautas) e bombardeá-los com a minha retrospectiva literária de 2012. Logo abaixo, eu selecionei alguns livros lidos nos últimos 12 meses e teci comentários sobre os mesmos.
 
 
1- O Chefe, de Ivo Patarra
A obra colossal de Ivo Patarra investiga Lula, centrando-se no escândalo do mensalão. O autor embasa seus argumentos com números e evidências consistentes. Ele até assume – em determinado trecho do livro – que a citação de tantas cifras tornava a leitura cansativa (mas pede paciência ao leitor e continua elencando os números). Na abertura, Patarra questiona porque o então presidente nomeou Mangabeira Unger como ministro após este afirmar num artigo que "o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional". A pergunta é respondida no final da obra.

 
2- Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento,
de Paulo Emílio Sales Gomes
Rápido panorama do cinema brasileiro desde os primórdios.
Aqui, a tese defendida por Paulo Emílio sustenta que o subdesenvolvimento no Brasil também é refletido em nosso cinema (como exemplo disso, ele afirma que nós atingimos o ápice do cinema mudo quando o mundo inteiro já tinha aderido ao cinema falado). Ou seja: estamos sempre na vanguarda do atraso! O clássico "Limite", de Mário Peixoto, é citado en passant e faz-se uma equivocada associação entre Luiz Sergio Person e o Cinema Novo. Apesar disso, é uma excelente
reflexão sobre o cinema brasileiro.
 
 
3- Deus Foi Almoçar, de Ferréz
Isso é um esboço de livro! Ao contrário dos trabalhos anteriores de Ferréz, agora a história foca em apenas um personagem. Segue-se uma profusão de ideias mal trabalhadas e situações que levam a lugar nenhum. Esse protagonista desinteressante (que lava o rosto o tempo inteiro!) contamina o leitor com tamanho marasmo. Não fosse o bastante, ainda é mal escrito. Nem mesmo a revisora foi capaz de consertar erros grosseiros como "sessente" (pg. 28, ao invés de "sessenta"), "em todos o capítulos" (pg. 222) ou definir se a forma correta é "buceta" (pg. 177) ou "boceta" (pg. 201). Esse é, disparado, o pior livro do ano!
  
 
4- Cine Galante – o Bilhete Azul,
Passaporte para a Liberdade, de Manuela Galante
Em depoimento à esposa Manuela, Antonio Polo Galante rememora sua vida. Mas o foco da obra não são os filmes produzidos na Boca do Lixo, e sim a trajetória pessoal de Galante. O livro conta como o órfão criado no Juizado de Menores – onde seu nome era apenas um número – tornou-se produtor cinematográfico. Essa e outras histórias maravilhosas fazem parte de "Cine Galante", que é leitura obrigatória a todos os entusiastas do cinema brasileiro.
 
5- O Brasil Tem Jeito?, de Arthur Ituassu e Rodrigo de Almeida (org.)
A partir da pergunta que dá nome ao livro, alguns pensadores escrevem sobre os problemas crônicos do país (como corrupção, concentração de renda, privilégios, violência). Os ensaios giram em torno dessas questões; exceto o de Fabiano Santos. Seu texto é um amontoado de lugares comuns e argumentações torpes. Além de fugir do tema proposto, ele desenvolve suas ideias usando termos como "verdade nua e crua", "fato incontestável" e reitera afirmações com um simplório "isso é óbvio".
Já não bastasse possuir um claro viés pró-PT, o ensaio afirma que uma terceira via para a dicotomia PT-PSDB é "tão frágil quanto perigosa" e ainda chega ao cúmulo de justificar os desvios de ética do governo petista; afirmando que a corrupção no país é histórica e "de difícil solução no curto prazo". Quanta bobagem... A publicação ganharia muito com a exclusão desse artigo tendencioso e mal escrito.
  
 
6- Figurinha Difícil: Pornografando e Subvertendo, de Plínio Marcos
O livro "Figurinha Difícil - Pornografando e Subvertendo" é uma compilação de crônicas escritas por Plínio Marcos. Ele descreve o convívio ao lado de figuras como Procópio Ferreira, Cacilda Becker, Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro... Sem esquecer os anônimos com quem conviveu (e que retratava em suas obras):
macumbeiros, malandros, bichas etc.
Em um de seus arroubos verbais, Plínio dispara:
"Sabe, não é fácil vender livro em terra de analfabeto com fome".
  
 
 
 
7- A Travessia Dourada, de Sirdar Ikbal Ali Shah
As viagens pelo Oriente costuram as diversas narrativas presentes no livro. Os valores religiosos estão sempre ali. No capítulo sobre a chegada à Meca, por exemplo, temos apenas uma descrição do que os viajantes presenciam no local sagrado (e as histórias são retomadas após esse relato). Os melhores contos são, realmente, os primeiros. Entre os meus favoritos, recomendo "Alimento do Paraíso" e "O Homem que Fazia Ouro". Em "O Pulso da Princesa Banu", o autor faz referência ao clássico "As Mil e Uma Noites".
  
 
8- Trilha Estreita ao Confim, de Basho
Nessa edição, são reunidos os três principais relatos de viagem do poeta japonês: "Visita ao Santuário de Kashima", "Visita ao Sarashina" e "Trilha Estreita ao Confim" (que dá título ao livro). Seguindo os preceitos do zen budismo, Basho percorre lugares longínquos a pé. Cada paisagem/pessoa que conhece inspira uma série de haikais. Os textos foram traduzidos diretamente do japonês por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano (ele mesmo, o sitarista discípulo de Ravi Shankar). Ainda conta com uma biografia do poeta e um panorama do haikai no Brasil.
 
 
9- Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke
Nesse livro, temos a correspondência trocada entre Rilke e Franz Kappus (o tal jovem poeta mencionado no título). Kappus pedia conselhos ao já famoso poeta sobre seus versos. Rilke foi de uma generosidade extrema: além de responder aos questionamentos do rapaz, ele expôs sua visão de mundo sobre os mais diversos assuntos, entre os quais: solidão, Deus, relacionamentos, a poesia, o ato de escrever... Eu recomendo a leitura!


 
10- Quando Meu Pai se Encontrou com o ET,
Fazia um Dia Quente, de Lourenço Mutarelli
É o retorno de Mutarelli ao universo dos quadrinhos. Com um desenho por página, o livro ilustrado retrata a vida de um velho aposentado (cuja história é contada em flashback por seu filho). É bem menos incendiário que outros títulos do autor. A obra é dedicada a Marçal Aquino.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Meu Coração Alvinegro e Verde

Por Denise Fernandes

 
          Um lado meu é corintiano, o outro palmeirense. Sinto a desarmonia dessa união fatal, verde, branca, preta, culpa preta – branca – verde.

          Sentimentos tão esverdeados, não vou a nenhuma comemoração. E vou a todas. Sou muito povão, tão povão que é difícil eu me achar. E todas as vezes que me sinto perdida, e são tantas, me sinto tão perdida que assisto jogos de futebol. Não é que eu entenda porque estou tentando entender há 46 anos. Ainda acho impedimento algo super esotérico. É que nem bola que bate na trave, acho o máximo. A dúvida para que lado a bola foi e porquê. Esses porquês que matam a gente. Não sei se é nessa parte que o futebol vira o ópio do povo, mas que futebol dá barato, isso dá mesmo. Ninguém se incomoda de medir, mas acabo de encontrar um amigo que ficou anos numa autoproibição em relação ao futebol: ele percebeu que ficava tão louco que só se proibindo.
          Não sei se já inventaram clínica para esse tipo de situação, mas aos especialistas (que há sempre em algum lugar, acho que tem mais especialistas que moscas em São Paulo), gostaria de saber o que pode ser usado contra essa paixão doente. E por que o futebol dá tanto barato? É porque a bolinha é pequenina e o homem se sente grande e bom diante da bolinha? É por que o entra e sai da bolinha parece sexo, a bola é falo e a gente gosta da bola porque gosta do falo? Freud, Jung, Reich, Lacan: me ajudem!!! O que vocês acham do futebol? Será que algum deles foi viciado em futebol? Será que gostar de time da segunda divisão tem algum significado, compromete o Édipo, o dinamismo da psique humana? Será que é "complexo" ser corintiana, palmeirense...
 
           Ou será que os jogadores que nos animam? Porque tem horas que parece que os jogadores esqueceram da bola... Será que a gente também esquece a bola e fica só curtindo os jogadores, a coxa, a meia, a personalidade de cada um, a fofoca geral que construímos sobre a História? Tem horas que me sinto quase da família dos jogadores. Estou com raiva do Dunga até agora. Tenho uma implicância com ele que Freud não explica porque terapia é muito caro para eu perder tempo com meus sentimentos pelo Dunga. Deus que me perdoe porque ainda não o perdoei. Já pensou se ele ressurge no Corinthians ou no Palmeiras? Por mim, ele pode ir para o São Paulo, embora eu acho que nem o São Paulo merece.
 
           Meu sonho é ser comentarista esportiva desses programas pós-futebol. Fica aquela discussão quase filosófica sobre a bola, a família dos jogadores, a história do futebol.
 
           O que sei da história do futebol – e encontrei num livro – diz que a origem do esporte foi na China, e veio dos soldados comemorarem suas vitórias chutando o crânio dos inimigos. Que nojo! Mas agora que não são crânios inimigos, sinto ainda um ódio que salta no futebol, uma raiva e um "ópio". E tenho as mais doces memórias além de toda essa raiva. Do amor dos meus avôs pelo futebol, da constância deles nesse amor. Se meus avôs não tivessem o amor pelo futebol que tinham, nem sei se eu gostaria e respeitaria tanto eles. O amor pelo time abriu neles a porta do amor pela Vida. Só através desse Amor soube que aqueles homens grandes e maciços que foram meus avôs foram crianças também. Eles me contavam como o futebol entrou na vida deles cedo.

           Também olhar os jogos de futebol do meu filho fazem parte dos melhores momentos da minha vida.
           Talvez seja um gol, talvez seja porque tudo que rola sobre a terra cria um desenho, um poder ser, talvez porque seja absolutamente lindo ver um ser humano brincar com uma bola. Salvem-se todos os times, a bola, as traves, as brincadeiras e até o juiz!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Final de Ano

Por Rosimeire Soares

  

         Final de ano. Sempre vêm aquelas reflexões. Ainda bem que o ano se encerra, pois ao contrário disso, quando pararíamos para pensar, concluir, pensar?

         A educação no país. As guerras. A paz. A violência. Caos nos aeroportos. A inflação do ano. A corrupção perene. As músicas que marcaram. Os artistas que sobressaíram. A política, suas mazelas, seus acertos (poucos). As chuvas. Os tsunamis. O amor...

         É hora de refletir. Como foi esse ano? Retrospectiva.  O que fazer para um ano novo melhor? Chavão necessário! Os ciclos precisam ser fechados para que novas portas sejam abertas.

         Logo o novo ano se inicia. A brancura das festas de fim de ano volta ter as manchas corriqueiras. A educação no país continua nua. As guerras, sem trégua. A paz falada, mas não praticada. Índices de violência a serem discutidos. Novas músicas. Artistas desaparecem, outros surgem brilhantes e eternos em sua efemeridade. A política troca a roupagem, mas não mudam os estilistas e assim, os modelos são sempre os mesmos. Chuvas mais intensas para uns e escassas para outros.  Tsunamis...  mais um e outro. O amor? Novas paixões... Fim de ano!

         Hora de reflexão!
         A Educação no país... As guerras... A violência urbana...

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Exterminador do Aquecimento Global

Por Érika Batista




                Se essa história é verídica não temos como saber, pois ela aconteceu antes e depois do nosso tempo.

            Daqui a cem anos a ciência vai estar no auge do progresso. Isso deve acontecer porque não haverá água (e consequentemente comida) bastante para permitir a prática saudável de exercícios físicos e, como opção, todos terão o exercício mental. É isso ou o ócio. E vão se interessar pelas explorações dos mundos menores existentes em cada célula e em cada chip – e descobrir as coisas mais incríveis.

            Descobrirão o funcionamento da dimensão tempo, e começarão a tentar mover-se nela. Então surgirá um Visionário.

            O Visionário gostará muito de História, e será nostálgico com relação ao que ele nem mesmo viverá. Também terá muita raiva daqueles que acabaram com a natureza antes que ele pudesse aproveitá-la (nós e nossos pais, avós, etc.).

            Como as notícias correrão na velocidade da luz (e com a precisão da luz, também), o Visionário saberá quase imediatamente quando descobrirem essa questão do tempo, e começará a ter ideias. Depois da ideia amadurecida, ele apresentará um projeto às autoridades e, após as providências burocráticas (que não acontecerão na velocidade da luz, porque isso só tem piorado ao longo do tempo), seu projeto será aprovado.


            Um dia o reverendo Cartwright ouviu uma batida na porta. Abriu. Em meio ao fog viu um homenzinho com chispas nos olhos, que carregava alguma coisa enorme. Ele suspeitou, por qualquer motivo, que não gostaria de ver funcionar.

            – Mr. Cartwright, precisamos ter uma conversa – disse o Visionário, com o ar mais severo e ameaçador de que foi capaz.

            O homem mandou o Visionário entrar. Este ficou em dúvida: a tradição mandava dar cabo dele sem deixá-lo fazer perguntas. Mas o Visionário tinha a consciência cheia dos direitos humanos. Ninguém deve ser executado sem direito a defender-se. Ele entrou.

            O clérigo serviu um chá feito na hora (sem desperdício de água, conforme notou o Visionário) para seu visitante, e enquanto este saboreava a iguaria, tão rara em seu tempo, perguntou que bons ventos traziam o rapaz. E de onde o traziam.

            – Daqui a alguns anos o senhor inventará o tear mecânico. Isso dará um impulso brutal ao “progresso”, na produção e no consumo de coisas, e vão tirar tanta, mas tanta coisa da natureza que em menos de meio milênio não restará praticamente mais nada. Eu vim evitar que isso aconteça – explicou o Visionário, articulando muito bem seu discurso ensaiado, apesar da língua queimada pelo chá.

            Uma coisa gelada parecia estar descendo pelas costas de Cartwright. Cheirava a loucura. Logo agora que não tinha ninguém em casa. Dia ruim para uma partida de bridge na aldeia! Mas ele era um vigário, já lidara com casos difíceis antes. O principal era não contrariar. E dar corda pra ele falar até que chegasse alguém.

            – Mas não há chance de que isso aconteça! – ele protestou. – É verdade que tenho estudos sobre máquinas e faço minhas experiências. Contudo, não tenho realmente muita esperança. É mais um hobby.

            O Visionário, como de costume, não perdia a chance de impor suas ideias em uma discussão, e começou a dar argumentos, explicar tudo o que sabia sobre os princípios das primeiras máquinas, as descobertas de outras pessoas, enfim, o que seus estudos históricos lhe tinham revelado.

            A conversa estendeu-se por um bom tempo. Por fim, Cartwright disse calmamente:
            – Olhe, não é a mim que você quer. Já fizeram melhoramentos nos teares antes. Com o combustível de carvão mineral de Derby aí a disposição, era improvável que isso não acontecesse, em todos os ramos da indústria. De que adiantaria você fazer algo contra mim se logo pode aparecer outra pessoa que fez os mesmos raciocínios científicos que você me atribui e chegou à mesma conclusão? – o homem entrara na história do outro. “Não se pode convencer um louco a não ser usando seu próprio raciocínio”, pensava.

            O Visionário pareceu em dúvida. Pensou um pouco, tomou mais uma caneca de chá, deu um suspiro resignado e despediu-se cordialmente de Cartwright. Em seguida, saiu e sumiu na névoa.

            O jovem Derby voltava das minas quando foi abordado por um homem estranho.

            – Mr. Derby, poderia me acompanhar num passeio pelas redondezas? – ele pediu, mais gentilmente que fizera a Cartwright, embora ainda solene.
            – Tudo bem... – esse disse, pensando que ele era da guarda.

            Enquanto caminhavam pelo fundo do vale, o Visionário expôs a questão a Derby de forma sucinta, concluindo com:
            – E é por isso que, pelo bem das gerações futuras, eu vou te matar.

            Derby olhou em volta, calculando suas chances de fuga. Apesar da beleza dos penhascos íngremes que os cercavam, Derby naquele momento odiou-os. Mediu o homem que lhe dizia aquelas palavras, e que hesitava com a mão no gatilho de uma arma muito esquisita – não era muito grande, mas a juventude de Derby e suas pernas trêmulas o fizeram insuperável. O jeito era enrolar.

            – Bem, eu tenho muitos colegas que sabem tanto quanto eu, podem descobrir esse tal coque também. Afinal, todos fomos à escola – e ele riu, nervoso. – Se você tem que matar alguém é o meu professor – disse, passando o pepino adiante. Depois ficou com pena do velho.
            – Se bem que não adiantaria. Ele já ensinou muita gente.
            Seu inimigo parecia confuso. O pobre Derby suava frio.
            Assim são os professores – acrescentou, com a consciência já pesando, acusando-o de assassinar o professor.

            O Visionário coçou a cabeça. “Vá”, disse para Derby, e antes de partir foi molhar-se num riacho próximo. Tinha direito a esse regalo.

            Monsieur Diderot voltava de um agradável sarau, quando encontrou um visitante a esperá-lo, comendo deliciosos pãezinhos. Arregalou os olhos para aquela figura estranha.

            – Grunf! – exclamou o rapaz, engolindo rapidamente. Tinha o pé sobre um objeto bizarro. Diderot anotou mentalmente que devia inquiri-lo a respeito daquela coisa para incluí-la nas páginas da sua Enciclopédia. – Bonjour, monsieur. Eu gostaria de falar-lhe sobre a Enciclopédia que pretende publicar. E dissuadi-lo da ideia de fazê-lo.

            Julgando tratar-se de algum editor aristocrático bem informado (porque a ideia ainda era secreta), Diderot assumiu uma expressão de fria polidez.

            – Pois, sim? – assim estimulou o estranho a explicar-se.
            – Não acho que deveria haver uma popularização do conhecimento. É uma arma muito perigosa na mão de qualquer um, e geralmente usada para o mal. Não sabe o que poderá acontecer se cometer essa temeridade. Se as pessoas apenas continuarem vivendo como fazem hoje, sem mais inventos, talvez sobre mundo para as gerações futuras – experimentado das altercações anteriores, o Visionário não queria explicar muito dessa vez. Diderot, porém, interpretou isso como uma ameaça. Encheu-se de brios.

            – Acontece que não é nosso foco inventar, mon ami – disse, irônico. – Pra mim basta que as pessoas saibam usar aquilo que já nos foi deixado pelos nossos pais gregos. Meu objetivo é reunir aquilo que já sabemos, para que não se perca, colocar ao acesso de todos e assim melhorar a vida das pessoas. Eu não preciso de inventos. Deixo-os para as gerações futuras a que se refere – concluiu o outro, ofendido, em tom sarcástico.

            O Visionário não reagia bem à ironia. Paralisava-se. Quis fugir da presença daquele homem ferino e achou em sua mente, em que as palavras de Diderot ecoavam, ensurdecedoras, a escapatória perfeita. Foi para os pais gregos.

            O mar da Grécia fora mesmo lindo. Infelizmente, o Visionário não achou Aristóteles perto dele. Estava em sua cabana, imerso em contemplação interna. Só depois de ter sido chamado durante uns dez minutos apercebeu-se do Visionário.

            – Que deseja, rapaz? – perguntou, com a complacência do mestre que viria a ser.

            O Visionário disse que aquela história de “Organon” (Lógica) era besteira. Ninguém precisava saber como pensar, sequer precisavam pensar, na verdade! Aristóteles tinha mais era que rasgar aqueles pergaminhos e arrumar uma família e um cargo público. Como homem inteligente que era, não teria dificuldade. Se não naquela cidade-estado, quem sabe em outra, sua fama era grande!...

            Ele quase apanhou de Aristóteles. O homem passou-lhe uma descompostura, falando sobre os valores tão puros da razão. Sem a razão, como a sociedade, como a vida poderia progredir?

            – Mas se é desse progresso que eu tenho medo... – suspirou o Visionário, cansado. Estava exasperado com Aristóteles. Pretendia não usar sua arma, mas agora a pegou de novo. – Encosta aí nessa parede, homem, que você vai virar churrasquinho, pro bem do planeta!

            – Mate-me se quiser, mas outros virão! – Aristóteles exclamou, heróico. O Visionário não aguentava mais ouvir essa história de “outros”; será que ninguém queria assumir a culpa?! – Não pode deter o avanço da razão, da humanidade – continuou o grego. – Ninguém nunca será capaz disso! Nosso destino glorioso está traçado desde que o primeiro homem tirou uma chama de dois gravetos!

            O Visionário baixou a arma e coçou o queixo. Era uma ideia. E tinha a vantagem de não haver fala inteligível pra ele, argumento racional.

            Quando Aristóteles, depois de ter esperado em vão por uma pedra incandescente que lhe arrancasse a cabeça, abriu os olhos, não havia mais nem sinal do rapaz vestido de modo estranho que lhe ameaçara.

            A paisagem era a coisa mais linda, mais exuberante, selvagem e verde que o Visionário já vira. Tudo valia a pena para preservar aquilo. Animais (vivos!) os mais diversos voavam, rastejavam, caminhavam e nadavam por aí, e o moço teve alguma dificuldade em localizar o grupo humano que devia seguir, distraído e amedrontado pela fauna. Por fim conseguiu, e conseguiu também localizar no grupo aquele que devia manter sob estrita vigilância.

            Ele era um rapaz magro, um tanto frágil, que por isso não saía para as caçadas. Não parecia amado pelo resto do grupo. Eles simplesmente o deixavam ficar. Nas noites de tempestade, observava os raios com delícia, e quando achavam as madeiras queimadas, podia passar horas acariciando-as, fascinado.

            Um dia ele afastou-se do grupo, seguido disfarçadamente pelo Visionário. Apanhou dois gravetos e ficou a brincar com eles. O Visionário devia ter atirado nele então, mas a expectativa de presenciar a descoberta do fogo foi tanta que ele adiou o projeto um pouco. Eles ficaram horas ali, o rapaz a esfregar os gravetos, distraído, e o Visionário emocionado a observá-lo. E então saltou uma chama. O rapaz começou a pular, dando gritos, e o Visionário pegou na arma com decisão, avançando e apontando-a para o moço.

            Então o moço o olhou. Assustado de início, mas, como que reconhecendo nele um semelhante, sorriu-lhe e mostrou o fogo. Seus olhos brilhavam. O Visionário nunca vira alegria tão livre de orgulho.

            Pensou que aquele podia ser um seu antepassado – se o matasse, ele não existiria, e não estaria ali para matá-lo, então todo o trabalho se anulava. Além do quê, o rapaz não tinha culpa, não sabia o que fariam seus descendentes com a sua descoberta. Aquele foguinho de miséria não aqueceria o globo. E depois, havia como decidir o que valia mais, se a natureza exuberante ou o olhar satisfeito?

            Enquanto os gritos do rapaz atraíam gente do grupo para ver o que acontecera, o Visionário foi embora. Tinha o aspecto mais saudável, a compleição mais robusta do que quando dera início ao projeto, e ganhara alguma coisa mais que não sabia explicar na sua parte interior.

            Ele voltou para casa – e então começará a trabalhar num projeto para recompor sinteticamente a camada de Ozônio.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Sílaba

Por Sérgio Bernardo



                                   A sílaba que falta te descompleta,
                                   espalha, afasta.
                                   Fica suspenso o beijo, vazia
                                   a mão que não te toca.
                                   Abarroto-me de incompletude
                                   como poço sem água.
                                   Temo que a língua não reencontre
                                   a sílaba que falta.
                                   Minha pronúncia não a soletra
                                   e dentro a procuro
                                   com o silêncio me cegando.
                                   Houvesse ao menos o eco
                                   de um pedaço de som na memória,
                                   saberia o início do caminho,
                                   mas não: nada escuto que indique
                                   a sílaba perdida
                                   que em mim te desintegra.