domingo, 16 de dezembro de 2012

O Exterminador do Aquecimento Global

Por Érika Batista




                Se essa história é verídica não temos como saber, pois ela aconteceu antes e depois do nosso tempo.

            Daqui a cem anos a ciência vai estar no auge do progresso. Isso deve acontecer porque não haverá água (e consequentemente comida) bastante para permitir a prática saudável de exercícios físicos e, como opção, todos terão o exercício mental. É isso ou o ócio. E vão se interessar pelas explorações dos mundos menores existentes em cada célula e em cada chip – e descobrir as coisas mais incríveis.

            Descobrirão o funcionamento da dimensão tempo, e começarão a tentar mover-se nela. Então surgirá um Visionário.

            O Visionário gostará muito de História, e será nostálgico com relação ao que ele nem mesmo viverá. Também terá muita raiva daqueles que acabaram com a natureza antes que ele pudesse aproveitá-la (nós e nossos pais, avós, etc.).

            Como as notícias correrão na velocidade da luz (e com a precisão da luz, também), o Visionário saberá quase imediatamente quando descobrirem essa questão do tempo, e começará a ter ideias. Depois da ideia amadurecida, ele apresentará um projeto às autoridades e, após as providências burocráticas (que não acontecerão na velocidade da luz, porque isso só tem piorado ao longo do tempo), seu projeto será aprovado.


            Um dia o reverendo Cartwright ouviu uma batida na porta. Abriu. Em meio ao fog viu um homenzinho com chispas nos olhos, que carregava alguma coisa enorme. Ele suspeitou, por qualquer motivo, que não gostaria de ver funcionar.

            – Mr. Cartwright, precisamos ter uma conversa – disse o Visionário, com o ar mais severo e ameaçador de que foi capaz.

            O homem mandou o Visionário entrar. Este ficou em dúvida: a tradição mandava dar cabo dele sem deixá-lo fazer perguntas. Mas o Visionário tinha a consciência cheia dos direitos humanos. Ninguém deve ser executado sem direito a defender-se. Ele entrou.

            O clérigo serviu um chá feito na hora (sem desperdício de água, conforme notou o Visionário) para seu visitante, e enquanto este saboreava a iguaria, tão rara em seu tempo, perguntou que bons ventos traziam o rapaz. E de onde o traziam.

            – Daqui a alguns anos o senhor inventará o tear mecânico. Isso dará um impulso brutal ao “progresso”, na produção e no consumo de coisas, e vão tirar tanta, mas tanta coisa da natureza que em menos de meio milênio não restará praticamente mais nada. Eu vim evitar que isso aconteça – explicou o Visionário, articulando muito bem seu discurso ensaiado, apesar da língua queimada pelo chá.

            Uma coisa gelada parecia estar descendo pelas costas de Cartwright. Cheirava a loucura. Logo agora que não tinha ninguém em casa. Dia ruim para uma partida de bridge na aldeia! Mas ele era um vigário, já lidara com casos difíceis antes. O principal era não contrariar. E dar corda pra ele falar até que chegasse alguém.

            – Mas não há chance de que isso aconteça! – ele protestou. – É verdade que tenho estudos sobre máquinas e faço minhas experiências. Contudo, não tenho realmente muita esperança. É mais um hobby.

            O Visionário, como de costume, não perdia a chance de impor suas ideias em uma discussão, e começou a dar argumentos, explicar tudo o que sabia sobre os princípios das primeiras máquinas, as descobertas de outras pessoas, enfim, o que seus estudos históricos lhe tinham revelado.

            A conversa estendeu-se por um bom tempo. Por fim, Cartwright disse calmamente:
            – Olhe, não é a mim que você quer. Já fizeram melhoramentos nos teares antes. Com o combustível de carvão mineral de Derby aí a disposição, era improvável que isso não acontecesse, em todos os ramos da indústria. De que adiantaria você fazer algo contra mim se logo pode aparecer outra pessoa que fez os mesmos raciocínios científicos que você me atribui e chegou à mesma conclusão? – o homem entrara na história do outro. “Não se pode convencer um louco a não ser usando seu próprio raciocínio”, pensava.

            O Visionário pareceu em dúvida. Pensou um pouco, tomou mais uma caneca de chá, deu um suspiro resignado e despediu-se cordialmente de Cartwright. Em seguida, saiu e sumiu na névoa.

            O jovem Derby voltava das minas quando foi abordado por um homem estranho.

            – Mr. Derby, poderia me acompanhar num passeio pelas redondezas? – ele pediu, mais gentilmente que fizera a Cartwright, embora ainda solene.
            – Tudo bem... – esse disse, pensando que ele era da guarda.

            Enquanto caminhavam pelo fundo do vale, o Visionário expôs a questão a Derby de forma sucinta, concluindo com:
            – E é por isso que, pelo bem das gerações futuras, eu vou te matar.

            Derby olhou em volta, calculando suas chances de fuga. Apesar da beleza dos penhascos íngremes que os cercavam, Derby naquele momento odiou-os. Mediu o homem que lhe dizia aquelas palavras, e que hesitava com a mão no gatilho de uma arma muito esquisita – não era muito grande, mas a juventude de Derby e suas pernas trêmulas o fizeram insuperável. O jeito era enrolar.

            – Bem, eu tenho muitos colegas que sabem tanto quanto eu, podem descobrir esse tal coque também. Afinal, todos fomos à escola – e ele riu, nervoso. – Se você tem que matar alguém é o meu professor – disse, passando o pepino adiante. Depois ficou com pena do velho.
            – Se bem que não adiantaria. Ele já ensinou muita gente.
            Seu inimigo parecia confuso. O pobre Derby suava frio.
            Assim são os professores – acrescentou, com a consciência já pesando, acusando-o de assassinar o professor.

            O Visionário coçou a cabeça. “Vá”, disse para Derby, e antes de partir foi molhar-se num riacho próximo. Tinha direito a esse regalo.

            Monsieur Diderot voltava de um agradável sarau, quando encontrou um visitante a esperá-lo, comendo deliciosos pãezinhos. Arregalou os olhos para aquela figura estranha.

            – Grunf! – exclamou o rapaz, engolindo rapidamente. Tinha o pé sobre um objeto bizarro. Diderot anotou mentalmente que devia inquiri-lo a respeito daquela coisa para incluí-la nas páginas da sua Enciclopédia. – Bonjour, monsieur. Eu gostaria de falar-lhe sobre a Enciclopédia que pretende publicar. E dissuadi-lo da ideia de fazê-lo.

            Julgando tratar-se de algum editor aristocrático bem informado (porque a ideia ainda era secreta), Diderot assumiu uma expressão de fria polidez.

            – Pois, sim? – assim estimulou o estranho a explicar-se.
            – Não acho que deveria haver uma popularização do conhecimento. É uma arma muito perigosa na mão de qualquer um, e geralmente usada para o mal. Não sabe o que poderá acontecer se cometer essa temeridade. Se as pessoas apenas continuarem vivendo como fazem hoje, sem mais inventos, talvez sobre mundo para as gerações futuras – experimentado das altercações anteriores, o Visionário não queria explicar muito dessa vez. Diderot, porém, interpretou isso como uma ameaça. Encheu-se de brios.

            – Acontece que não é nosso foco inventar, mon ami – disse, irônico. – Pra mim basta que as pessoas saibam usar aquilo que já nos foi deixado pelos nossos pais gregos. Meu objetivo é reunir aquilo que já sabemos, para que não se perca, colocar ao acesso de todos e assim melhorar a vida das pessoas. Eu não preciso de inventos. Deixo-os para as gerações futuras a que se refere – concluiu o outro, ofendido, em tom sarcástico.

            O Visionário não reagia bem à ironia. Paralisava-se. Quis fugir da presença daquele homem ferino e achou em sua mente, em que as palavras de Diderot ecoavam, ensurdecedoras, a escapatória perfeita. Foi para os pais gregos.

            O mar da Grécia fora mesmo lindo. Infelizmente, o Visionário não achou Aristóteles perto dele. Estava em sua cabana, imerso em contemplação interna. Só depois de ter sido chamado durante uns dez minutos apercebeu-se do Visionário.

            – Que deseja, rapaz? – perguntou, com a complacência do mestre que viria a ser.

            O Visionário disse que aquela história de “Organon” (Lógica) era besteira. Ninguém precisava saber como pensar, sequer precisavam pensar, na verdade! Aristóteles tinha mais era que rasgar aqueles pergaminhos e arrumar uma família e um cargo público. Como homem inteligente que era, não teria dificuldade. Se não naquela cidade-estado, quem sabe em outra, sua fama era grande!...

            Ele quase apanhou de Aristóteles. O homem passou-lhe uma descompostura, falando sobre os valores tão puros da razão. Sem a razão, como a sociedade, como a vida poderia progredir?

            – Mas se é desse progresso que eu tenho medo... – suspirou o Visionário, cansado. Estava exasperado com Aristóteles. Pretendia não usar sua arma, mas agora a pegou de novo. – Encosta aí nessa parede, homem, que você vai virar churrasquinho, pro bem do planeta!

            – Mate-me se quiser, mas outros virão! – Aristóteles exclamou, heróico. O Visionário não aguentava mais ouvir essa história de “outros”; será que ninguém queria assumir a culpa?! – Não pode deter o avanço da razão, da humanidade – continuou o grego. – Ninguém nunca será capaz disso! Nosso destino glorioso está traçado desde que o primeiro homem tirou uma chama de dois gravetos!

            O Visionário baixou a arma e coçou o queixo. Era uma ideia. E tinha a vantagem de não haver fala inteligível pra ele, argumento racional.

            Quando Aristóteles, depois de ter esperado em vão por uma pedra incandescente que lhe arrancasse a cabeça, abriu os olhos, não havia mais nem sinal do rapaz vestido de modo estranho que lhe ameaçara.

            A paisagem era a coisa mais linda, mais exuberante, selvagem e verde que o Visionário já vira. Tudo valia a pena para preservar aquilo. Animais (vivos!) os mais diversos voavam, rastejavam, caminhavam e nadavam por aí, e o moço teve alguma dificuldade em localizar o grupo humano que devia seguir, distraído e amedrontado pela fauna. Por fim conseguiu, e conseguiu também localizar no grupo aquele que devia manter sob estrita vigilância.

            Ele era um rapaz magro, um tanto frágil, que por isso não saía para as caçadas. Não parecia amado pelo resto do grupo. Eles simplesmente o deixavam ficar. Nas noites de tempestade, observava os raios com delícia, e quando achavam as madeiras queimadas, podia passar horas acariciando-as, fascinado.

            Um dia ele afastou-se do grupo, seguido disfarçadamente pelo Visionário. Apanhou dois gravetos e ficou a brincar com eles. O Visionário devia ter atirado nele então, mas a expectativa de presenciar a descoberta do fogo foi tanta que ele adiou o projeto um pouco. Eles ficaram horas ali, o rapaz a esfregar os gravetos, distraído, e o Visionário emocionado a observá-lo. E então saltou uma chama. O rapaz começou a pular, dando gritos, e o Visionário pegou na arma com decisão, avançando e apontando-a para o moço.

            Então o moço o olhou. Assustado de início, mas, como que reconhecendo nele um semelhante, sorriu-lhe e mostrou o fogo. Seus olhos brilhavam. O Visionário nunca vira alegria tão livre de orgulho.

            Pensou que aquele podia ser um seu antepassado – se o matasse, ele não existiria, e não estaria ali para matá-lo, então todo o trabalho se anulava. Além do quê, o rapaz não tinha culpa, não sabia o que fariam seus descendentes com a sua descoberta. Aquele foguinho de miséria não aqueceria o globo. E depois, havia como decidir o que valia mais, se a natureza exuberante ou o olhar satisfeito?

            Enquanto os gritos do rapaz atraíam gente do grupo para ver o que acontecera, o Visionário foi embora. Tinha o aspecto mais saudável, a compleição mais robusta do que quando dera início ao projeto, e ganhara alguma coisa mais que não sabia explicar na sua parte interior.

            Ele voltou para casa – e então começará a trabalhar num projeto para recompor sinteticamente a camada de Ozônio.

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