segunda-feira, 31 de março de 2014

mkt

Por Ana Paula Perissé
 
 
Imagem: Thor Lindeneg


                                           ninguém
                                           quer
                                           nada
                                           longo

                                           por breve
                                           instante
                                                                         kairós
                                           1´poema
                                           nasce

                                           no dorso
                                           de teu
                                           alvorecer

                                           .
                                           .
                                           .
                                           logos

 

domingo, 30 de março de 2014

sábado, 29 de março de 2014

Meu coração, rosa leviana...

Por Meriam Lazaro
 
 

 
"Se o coração tem mais razões do que a própria razão", desconheço, mas que tem seu capricho, ah, isto tem! Volúvel, ele se apaixona, perdida e irremediavelmente, nem sempre querendo ser correspondido. Meu coração não sabe morrer de amor e continuar vivendo, à moda Quintana, mas sabe da paixonite instantânea que tece letras, canta silenciosamente e faz suspirar...


Se você está duvidando, deixe-me exemplificar. Este bobo coração, anos atrás, apaixonou-se loucamente por um professor, como fazem todos os bobos corações em qualquer escola do mundo. Tinha certeza de que era correspondido, afinal, o professor ficava a lhe dar sinais de também estar enamorado. Quinze anos depois, chegou o dia em que a rosa e o jardineiro ficaram frente a frente! Não é que o jardineiro não tinha a mínima lembrança da sua rosa?! Assim, hoje mesmo, voltou em frangalhos, fingindo se matar.


Se isto for traição, que me perdoe meu companheiro de caminhada, pois em cada passo, necessita o coração de um toque de paixão! Antes de ser condenado, se diga em seu favor que nele reside um só amor, fiel como garça à margem de poluído rio urbano. Meu coração não é flor que se cheire, mas é rosa leviana que se deixa levar, não só por carência, mas por leveza de inspiração!
 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Anjinhos de pata

Por Mayanna Velame
 
 
 
Adoro animais de estimação. A presença desses anjinhos de pata deixa a nossa rotina mais alegre, divertida e colorida.

Quem não gosta de ser recebido com uma lambida amistosa nas mãos ou no rosto, após um dia cansativo e estressante? Ou, então, quem não gosta de sentir um felino manhoso roçando seu bigode longo e pontudo entre as pernas? Uma casa com animais se torna extremamente mais afetiva.

Acontece que o amor por nossos companheiros nem sempre é compartilhado. Nas redes sociais, e em outros meios de comunicação, são recorrentes os relatos de abandono e violência contra esses seres tão inocentes.

Eu, por exemplo, já retirei da rua dezenas de filhotes de gato, que são desprezados pelos ex-donos aqui perto de casa. É lamentável ver até que ponto a crueldade humana pode chegar. No entanto, não houve episódio tão marcante e impactante como o que ocorreu com essa cronista, num certo entardecer de domingo.

Depois de ouvir alguns gemidos, que mais pareciam um pedido de socorro, eu e meu irmão encontramos – num terreno baldio próximo à minha residência – um cachorrinho de médio porte, abandonado em uma caixa de papelão. O cãozinho encontrava-se agonizando; e com o corpo literalmente trêmulo.

Pensei e ponderei: por mais que aquele animal não fosse meu, ele não merecia continuar sofrendo daquele jeito. E assim, ao chegar à clínica, a veterinária proferiu seu diagnóstico. O cachorrinho estava com um vírus incurável no sistema neurológico. Além disso, o risco de transmissão para os outros cães agravava a situação. Não havia chance de vida. O que restava era a eutanásia ou esperar, dia após dia, pela sua morte. Senti-me desolada naquele momento, a ponto de decidir entre o sofrimento do animal e o cessar de toda sua perecível vida. Descobriu-se então que, na verdade, o cachorrinho era uma cadelinha. E mesmo diante da circunstância, ela foi batizada como Vitória.

Minutos depois, a injeção letal foi aplicada na patinha direita. Vitória, paulatinamente, já não respirava mais ofegante. Seus gemidos cederam lugar ao silêncio. Apenas seus olhos lacrimejavam. Reluziam da mesma forma que o olhar marejado da veterinária.
 

quarta-feira, 26 de março de 2014

Realidade

Por Fabio Ramos
 
 


atravessou
a rua
 

palmas ao
chegar
na
empresa
onde
trabalhava
 

motivo?
aquela esperada
promoção
que
iria
alavancar sua
carreira
saiu
 

o chefe
ri
desde
quando?
 

voltou
para casa sem
pegar
trânsito
 

recebido com
lambidas
pelo
cachorro
 

da
mulher
um beijo de
cinema
à
porta
 

velas
no
candelabro
iluminam o jantar
do casal
 

logo
foi
arrastado
pro
quarto
 

a
beldade
se
encontrava
nua e
ele
(miseravelmente)
do
sonho
acordou
 

terça-feira, 25 de março de 2014

Por isso

Por Denise Fernandes
 
 

 
Harmonia e consistência, você disse. Entendo, entendo perfeitamente. Entendo também como é sempre se importar porque eu sempre me importo. No alto da montanha ou no ônibus lotado. Entendo que é necessário uma dose de sofrimento para criar. Mas, muitas vezes, não entendo porque tem de doer tanto, porque tudo tem que ser tão difícil. E fico mesmo sem entender. Logo amanhece. A gente espera a padaria abrir, escuta o despertador do vizinho e ele dando a descarga. Sei porque fico. Fico porque amo. Porque amo as pessoas que amo, porque às vezes fico feliz só de olhar para o sol. Por isso.
 

segunda-feira, 24 de março de 2014

fricção

Por Ana Paula Perissé
 
 
Imagem: Anke Merzabach


                                           tem um clarão
                                           de corpos
                                           que perfazem
                                           os dias
                                           de tal intensidade
                                           tal como a fricção
                                           de rochas
                                           em fogo que renasce
                                           sem ao certo
                                           reconhecer seu paradeiro

                                           (tem muito de calor
                                           nos teus olhos
                                           em minha pele)

                                           tem muito
                                           tão intenso
                                           em cada dia

                                           passado.

domingo, 23 de março de 2014

Cândido

Por Oswaldo Antônio Begiato
 
 


                         O Mestiço, moço, negro, sem camisa e belo,
                         veio, candidamente, me visitar no museu que construí,
                         com as coisas recolhidas no sótão de minhas anamneses.

                         Trouxe-me um cacho de lichias
                         maduras, docinhas e geladinhas.
                         Trouxe-o dentro de uma vasta cesta de vime
                         forrada com um pano de prato prata, bordado à mão.
                         Tudo interioranamente paulista.

                         No cartão de visita uma dedicatória e uma lição:
                         “Não perca seu tempo com santidades nem com sanidades;
                         as coisas mundanas e insanas é que são inolvidáveis.”

                         Trouxe-me, pois, essas réstias de esperança
                         só encontradas no sol e no solo de Brodowski.
 

sábado, 22 de março de 2014

Por falar em saudade...

Por Meriam Lazaro
 
 

 
Saudade. Tema perene. Assim como o amor. Saudade de um amor, então!... Povoa o universo das letras e do cinema e nos encanta desde sempre. Entre os mais velhos, comum é ouvirmos da saudade da infância. Aquele pé de manacá florido na esquina de casa. O bolinho-de-chuva feito com carinho pela tia. Os banhos no igarapé. As borboletas 88. E por aí vai!

Para quem perdeu pai, mãe, irmãos nos primeiros anos... Onde moraria a saudade? Sem falar dos que sobreviveram nas ruas ou nem tiveram tempo para serem hóspedes da dama da poesia.

Por outro lado, invocando Milan Kundera e sua “Insustentável Leveza...”, chega o tempo em que sentimos saudade até de tempos de guerra. Tempos difíceis, mas que nos constituíram, por sermos parte desse mesmo tempo. Alegrias? Ainda que diminutas aos olhos alheios, sua recordação por vezes nos embaraça a visão.

Seria a virtude da saudade mais abrangente que a graça do amor? Se o amor é árvore da qual tudo provém, a saudade é fruto maduro. Talvez a saudade mais doída seja aquela de quem fomos ou saudade do vir a ser. Sentimos saudade do tempo em que ter sonhos era nossa maior riqueza. Havia tanta vida naquele sonhar que amigos mais pobres arrebatavam para seu próprio cumprimento uma parte daqueles sonhos. Louvável!

Porém a saudade que faz parte do indivíduo também permeia um continente. Para aqueles que cresceram sem gostar de futebol e carnaval, no país do futebol e do carnaval, havia uma paixão alternativa. Assim, fomos Emerson, Nelson e Ayrton na afunilada Fórmula Um. A quem nos deu tanta emoção e que no pódio, enquanto segurava a bandeira do Brasil, agitava a mão em V de vitória, vai hoje minha saudade.
 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Ele

Por Mayanna Velame
 

Fazia tempo que eu não o via. E toda vez que o encontro, meu coração acelera, pulsa, sacoleja de forma intensa e diferente.

Ele continua imponente, majestoso, bravo e infinito. Sinto-me encantada por seus mistérios. Sinto-me encantada por sua voz retumbante, que ecoa, estronda pelos quatro cantos.

É muito bom reencontrá-lo. Vivenciá-lo e tocá-lo, mesmo que o sinta gélido entre os meus dedos. Difícil não se embriagar com tua beleza. Sua perfeição é singular. Sua dança é envolvente, compassada e ritmada.

Se eu pudesse, sempre estaria ali, contemplando-o, sem me importar com as horas, os dias e a vida.

Passaria momentos infindáveis esquadrinhando seus movimentos, que levam e trazem lembranças, sonhos, objetos, comidas, existências. Perco-me em seus caminhos, estremeço na sua fúria. Meus olhos permanecem desnorteados pela imensidão que se projeta para mim.

Existe um mundo oculto dentro dele, e pouco me esforço em desvendá-lo. Afinal, teus segredos atiçam a minha imaginação. A verdade é que muitos o adoram. E a poesia está na sua cor, na saudade daqueles que partiram ao seu chamado.

Ele sempre estará lá. Ora sendo cenário, ora sendo protagonista notável. Que seu beijo, áspero e frio, fique impregnado em meus lábios (e nos poros da minha pele). Sei que, mansamente, sua aparência crispada cede espaço para a lisura cristalina que o forma. Tê-lo em minhas pequenas mãos é impossível. Ele é imensurável. Reflete o cintilar das estrelas, namora a lua. De dia, recolhe os raios do Sol para se tornar mais belo. Ele é inspiração para os apaixonados. Ele é a estrada viva dos homens desbravadores. Ele é... O mar.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Sons, barulhos e ruídos

Por Amilcar Neves*

 
Há uns trinta anos, ou pouco menos, alguém publicou uma estatística interessante. Tão interessante que deveria ter sido repetida à exaustão ou, mesmo, contestada de forma acachapante caso seus números estivessem incorretos. Talvez não haja acontecido nem uma coisa nem outra, talvez ninguém tenha lido o resultado da pesquisa, talvez a frase nem tenha sido dita, talvez a ideia fosse um bocado boba. Mas dizia mais ou menos o seguinte: "uma criança de seis anos de idade nos dias de hoje já terá escutado mais música do que Beethoven conseguiu ouvir em seus 56 anos de vida" (apesar da surdez que o acometeu aos 46 anos mas se iniciara aos 26).
 
Àquela época - década de 80 do século passado -, o telefone celular não existia na prática, televisores e aparelhos de som custavam muito dinheiro, os computadores pessoais, caríssimos, mal sabiam escrever, a internet simplesmente não existia no mundo em geral e ninguém em sã consciência poderia conceber o que viria a ser uma tabuleta, um tablet. Isto só para dizer que, hoje, as possibilidades de acesso à música são imensamente maiores do que há trinta anos, o que, trocado em miúdos, significa que a nossa criança alcançará a quantidade de música que o maior compositor da História conseguiu desfrutar com idade ainda mais tenra do que o seu tio dos anos 80.
 
O problema é que essa exposição avassaladora aos sons organizados e ritmados não produziu mais um Beethoven que fosse. O Gabriel, por exemplo, um garotinho de 4 anos, manipula como gente pequena o iPad com tela de 7 polegadas que ganhou da bisavó no último Natal, mas não tem muita paciência para ficar com os dedinhos parados a fim de "curtir", digamos assim, uma musiquinha que dure mais do que 15 segundos.
 
Pode-se mesmo supor, com razoável chance de sucesso, que o gosto musical médio das pessoas tem se deteriorado na mesma velocidade dos avanços tecnológicos, apesar das amplas facilidades disponíveis para se acessar e escutar o que houver de mais revolucionário, novo e remoto em termos de música e técnicas musicais.
 
Entramos cada vez mais no império dos barulhos e das melodias fáceis. Como diz Martinho da Vila, criticando os sambas que atualmente tocam nas rádios, "Dessas músicas que estão por aí eu faço umas dez todo dia. É mole!" Os barulhos - estes, os eletrônicos, os sertanejos, os mais pedidos, mais vendidos e mais ouvidos - mostram-se perfeitos para a boçalidade de atulhar o carro de potência sonora e sair despejando mau gosto ao longo de ruas e avenidas, impondo a todos a ignorância musical e a indigência intelectual do seu feliz proprietário.
 
Não nos restam mais muitos resquícios de qualidade naquilo que, chamado de MPB, foi outrora um motivo de justo orgulho nacional. Regredimos em letra, música e harmonia, em poesia, sonoridade e ritmo.
 
A barulheira geral, com música ou sem ela, tornou-se tão fluida e onipresente que não conseguimos mais desfrutar de 30 segundos de silêncio absoluto para ficarmos um pouquinho por conta dos ruídos: dos ruídos do vento nas folhas das árvores, dos ruídos da natureza no meio do mangue, do ruído das águas - dos rios, do mar, da chuva - em busca do seu destino, dos ruídos dos nossos pensamentos. Ao contrário, nos assustamos com qualquer calmaria como se fosse a própria morte.
 
E isto é o mais triste da história: irremediavelmente empobrecidos e soterrados pela mediocridade, não conseguimos atingir a genialidade de Beethoven nem, tampouco, tirar algum proveito da sua surdez.

* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 19.02.14

quarta-feira, 19 de março de 2014

Trevas

Por Fabio Ramos
 
 
 

relampeia &
troveja
 

para
completar
não há
eletricidade
em sua residência
 

e
nem vê
um palmo a
frente
 

recorreu ao
lampião
 

quando
findou o gás
lembrou
da
churrasqueira
 

quando
acabou o carvão
utilizou
a lanterna
 

quando
a
pilha
descarregou
tinha uma
vela
 

quando o pavio
apagou
apelou
aos
fósforos
 

e
mesmo
com a energia
de volta
ele
no
escuro
permaneceu
 

terça-feira, 18 de março de 2014

Amor

Por Denise Fernandes
 
 


Hoje eu já sabia
que você não vinha
Não sei como sabia
já que tão pouco sei
de você e de mim
 
Espero peito aberto
o beija-flor adivinha
Não sei como queria
um pouco de você se sei
o amor como rio em mim
 

segunda-feira, 17 de março de 2014

B.O. d`Amour I

Por Ana Paula Perissé
 
 
Imagem: Philippe Loubat
 
 
                                          (cala-te
                                          diante de tanta intensidade
                                          ébria.)

                                          lua que dantes fazia
                                          poesia de sopro
                                          em fá menor
                                          arrasta-se
                                          para lágrimas escondidas
                                          ao lado de 1´sobrado
                                          sem vinho
                                          apenas gota pequena
                                          e sem nome.

                                          agradecei
                                          à penumbra
                                          o vinho que te trouxe
                                          outrora
                                          dor temperada
                                          a germinar
                                          como num clarão
                                          de tempestade vulgar

                                          adormecei
                                          na grama
                                          junto ao exílio
                                          da terra
                                          à beira de mulheres
                                          errantes.


domingo, 16 de março de 2014

sábado, 15 de março de 2014

Cuidado com a gentileza

Por Meriam Lazaro
 
 


Um bebê indefeso tem em si um quê de ternura que atrai a muitos para protegê-lo, mimá-lo, atender-lhe as necessidades. O mesmo se dá no reino animal com os filhotes passíveis de docilidade e graça. O crescimento, inevitável, traz a independência de atos, de vontades e pode substituir a ternura pela desconfiança do outro.

Há alguns anos, uma amiga levou para doar no parque um pedaço de presunto que sobrara da ceia de Ano Novo. Os primeiros mendigos recusaram porque não havia pão! Mães são veementemente repreendidas pelos filhos adolescentes depois da terceira ou quarta vez que não ouvem a recusa para a oferta de um lanche, suco ou outra iguaria. Com a chamada terceira idade, os papéis se invertem. São os filhos que cercam os pais com oferta de cuidados não solicitados.

As limitações da idade e as circunstâncias debilitantes que algumas doenças trazem despertam em muitos de nós a ânsia pela prática de uma gentileza que pode ser afrontosa. Vejo uma mãe se exceder em cuidados com a filha que sofre de mal de Parkinson. Ou o filho, que completa as frases do pai em recuperação de um acidente vascular cerebral. Uma senhora, que caminha com dificuldade, ser lembrada do uso de bengala para se locomover mais rapidamente. Na maioria dos casos, a reprimenda vem carregada da raiva de quem sofre, mas não quer ser tomado como incapaz de fazer suas atividades rotineiras, forçar o uso da memória, escolher andar com uso ou não de bengala.

Será que ao impormos ajuda mostramos gentileza ou apenas cerceamento das ações e da vontade daqueles a quem queremos ajudar? Diante da raiva da recusa devemos endurecer-nos e não mais oferecer ajuda a ninguém? Será a nossa ajuda bem intencionada um modo de redenção, como se com isto pudéssemos evitar futuras limitações para nós mesmos?

O pedido de pão pelo mendigo pode não significar desconhecimento do preço maior do presunto no supermercado, mas carrega o simbolismo mais antigo da fraternidade. Na ordem de ajuda, ao distribuir os ramos ante a passagem do Cristo, nos posicionemos como um irmão, e não aquele que pode mais. Ao oferecermos os lírios, devemos observar que algumas mãos ainda sangram pelos espinhos impostos pela vida.
 

sexta-feira, 14 de março de 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

Textos perdidos

Por Amilcar Neves*

 
Perdem-se textos - perdem-se muitíssimos textos - por diversos motivos. Um deles tem a ver com o perecimento do suporte sobre o qual eles foram escritos: a folha de papel inadvertidamente jogada fora, o arquivo eletrônico que sofreu pane irrecuperável e não poderá ser decodificado pelos tempos afora: quanto mais virtuais os meios de escrita, mais reais e dolorosas as perdas que se verificam.
 
Perdem-se também os textos que nunca foram nem jamais serão escritos: um sujeito ou uma sujeita de talento que resolva partir para outra porque não encontra o mínimo reconhecimento ou não recebe o menor apoio e incentivo para seguir persistindo, deixa de escrever obras que, para nossa desgraça, jamais haveremos de ler. Por isso é que as pessoas sérias clamam por políticas de Estado para privilegiar o talento das letras, ao invés das habituais práticas de governo que favorecem os amigos ineptos do reizete ou reizinho de plantão, mais realista do que o rei, a impor talentosatravés de cartas de recomendação, articulações, cambalachos, indicações, imposições e pedidos, tudo em nome da quantidade de votos, não da qualidade de letras que o protegido tem o dom de oferecer.
 
Perdem-se textos quando não damos crédito àquelas matérias brutas que surgem subitamente e, desajuizados, não percebemos que aquilo é um texto talvez primoroso (claro que o primor textual sempre estará associado ao talento do escritor que se dispuser a manusear os elementos que desfilam perante seu olhar e sua imaginação). A verdade é que não raro descartamos a potencialidade de texto na resposta de uma humilde servidora de supermercado quando te diz que, "na verdade, a Empresa não fabrica nem produz nada, apenas negocia com empresas que usarão a sua marca para desenvolver determinado produto com a qualidade esperada e com um preço supostamente mais baixo do que a concorrência. Quando isto - preço e qualidade - não acontece, o contrato é rescindido e a Empresa busca novo fornecedor, num processo que pode levar algumas semanas até que o novo produto, com as características já conhecidas e apreciadas por nossos clientes, volte às prateleiras".
 
Mas perdem-se textos quando não vamos ao encontro deles, posto que é da sua natureza intrínseca, mormente das crônicas, insinuarem-se despudoradamente ao cronista, oferecendo-se à sua pena sem qualquer rubor nas faces, procurando-o na intimidade do seu recolhimento pessoal, visitando-o durante sua reclusão social, povoando-lhe os mais ardentes sonhos, aterrorizando-o em seus pesadelos mais cruéis, sussurrando-lhe maliciosos aos ouvidos sugestões impublicáveis, provocando-o como se testassem sua suposta criatividade: quando o cronista não sai para sua habitual caminhada de uma hora na manhã esturricante de domingo ele perde a oportunidade de ouro de encontrar sua crônica sentada, digamos assim, à beira do caminho; quando abdica de ir à Ressacada na tarde estivo-infernal de domingo, depois de anos sem perder uma única partida no estádio estando na cidade, e mesmo acreditando piamente na vitória, apesar da situação deprimente do seu time no campeonato, o cronista se desencontra da crônica que, caprichosa, postava-se indolente nos degraus da arquibancada.
 
Quando o cronista se omite assim, por algum motivo justo ou não, a crônica não o visita - e o resultado pode ser algo como isto que se lê nesta quarta-feira de uma anunciada frente fria que, durante cinco horas, fará despencar os termômetros para amenos 32 a 33°C.
 
* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 12.02.14