Por
Amilcar Neves*
Perdem-se textos - perdem-se
muitíssimos textos - por diversos motivos. Um deles tem a ver com o perecimento
do suporte sobre o qual eles foram escritos: a folha de papel inadvertidamente
jogada fora, o arquivo eletrônico que sofreu pane irrecuperável e não poderá
ser decodificado pelos tempos afora: quanto mais virtuais os meios de escrita,
mais reais e dolorosas as perdas que se verificam.
Perdem-se também os textos que
nunca foram nem jamais serão escritos: um sujeito ou uma sujeita de talento que
resolva partir para outra porque não encontra o mínimo reconhecimento ou não
recebe o menor apoio e incentivo para seguir persistindo, deixa de escrever
obras que, para nossa desgraça, jamais haveremos de ler. Por isso é que as
pessoas sérias clamam por políticas de Estado para privilegiar o talento das
letras, ao invés das habituais práticas de governo que favorecem os amigos
ineptos do reizete ou reizinho de plantão, mais realista do que o rei, a impor talentosatravés
de cartas de recomendação, articulações, cambalachos, indicações, imposições e
pedidos, tudo em nome da quantidade de votos, não da qualidade de letras que o
protegido tem o dom de oferecer.
Perdem-se textos quando não damos
crédito àquelas matérias brutas que surgem subitamente e, desajuizados, não
percebemos que aquilo é um texto talvez primoroso (claro que o primor textual
sempre estará associado ao talento do escritor que se dispuser a manusear os
elementos que desfilam perante seu olhar e sua imaginação). A verdade é que não
raro descartamos a potencialidade de texto na resposta de uma humilde servidora
de supermercado quando te diz que, "na verdade, a Empresa não fabrica nem
produz nada, apenas negocia com empresas que usarão a sua marca para
desenvolver determinado produto com a qualidade esperada e com um preço
supostamente mais baixo do que a concorrência. Quando isto - preço e qualidade
- não acontece, o contrato é rescindido e a Empresa busca novo fornecedor, num
processo que pode levar algumas semanas até que o novo produto, com as características
já conhecidas e apreciadas por nossos clientes, volte às prateleiras".
Mas perdem-se textos quando não
vamos ao encontro deles, posto que é da sua natureza intrínseca, mormente das
crônicas, insinuarem-se despudoradamente ao cronista, oferecendo-se à sua pena
sem qualquer rubor nas faces, procurando-o na intimidade do seu recolhimento
pessoal, visitando-o durante sua reclusão social, povoando-lhe os mais ardentes
sonhos, aterrorizando-o em seus pesadelos mais cruéis, sussurrando-lhe maliciosos
aos ouvidos sugestões impublicáveis, provocando-o como se testassem sua suposta
criatividade: quando o cronista não sai para sua habitual caminhada de uma hora
na manhã esturricante de domingo ele perde a oportunidade de ouro de encontrar
sua crônica sentada, digamos assim, à beira do caminho; quando abdica de ir à
Ressacada na tarde estivo-infernal de domingo, depois de anos sem perder uma
única partida no estádio estando na cidade, e mesmo acreditando piamente na
vitória, apesar da situação deprimente do seu time no campeonato, o cronista se
desencontra da crônica que, caprichosa, postava-se indolente nos degraus da
arquibancada.
Quando o cronista se omite assim,
por algum motivo justo ou não, a crônica não o visita - e o resultado pode ser
algo como isto que se lê nesta quarta-feira de uma anunciada frente fria que,
durante cinco horas, fará despencar os termômetros para amenos 32 a 33°C.
* Crônica publicada
no jornal "Diário Catarinense" de 12.02.14
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