Por Amilcar Neves*
Há uns trinta anos, ou pouco
menos, alguém publicou uma estatística interessante. Tão interessante que
deveria ter sido repetida à exaustão ou, mesmo, contestada de forma acachapante
caso seus números estivessem incorretos. Talvez não haja acontecido nem uma
coisa nem outra, talvez ninguém tenha lido o resultado da pesquisa, talvez a
frase nem tenha sido dita, talvez a ideia fosse um bocado boba. Mas dizia mais
ou menos o seguinte: "uma criança de seis anos de idade nos dias de hoje
já terá escutado mais música do que Beethoven conseguiu ouvir em seus 56 anos
de vida" (apesar da surdez que o acometeu aos 46 anos mas se iniciara aos
26).
Àquela época - década de 80 do
século passado -, o telefone celular não existia na prática, televisores e
aparelhos de som custavam muito dinheiro, os computadores pessoais, caríssimos,
mal sabiam escrever, a internet simplesmente não existia no mundo em geral e
ninguém em sã consciência poderia conceber o que viria a ser uma tabuleta, um tablet.
Isto só para dizer que, hoje, as possibilidades de acesso à música são
imensamente maiores do que há trinta anos, o que, trocado em miúdos, significa
que a nossa criança alcançará a quantidade de música que o maior compositor da
História conseguiu desfrutar com idade ainda mais tenra do que o seu tio dos
anos 80.
O problema é que essa exposição
avassaladora aos sons organizados e ritmados não produziu mais um Beethoven que
fosse. O Gabriel, por exemplo, um garotinho de 4 anos, manipula como gente
pequena o iPad com tela de 7 polegadas que ganhou da bisavó no último
Natal, mas não tem muita paciência para ficar com os dedinhos parados a fim de
"curtir", digamos assim, uma musiquinha que dure mais do que 15
segundos.
Pode-se mesmo supor, com razoável
chance de sucesso, que o gosto musical médio das pessoas tem se deteriorado na
mesma velocidade dos avanços tecnológicos, apesar das amplas facilidades
disponíveis para se acessar e escutar o que houver de mais revolucionário, novo
e remoto em termos de música e técnicas musicais.
Entramos cada vez mais no império
dos barulhos e das melodias fáceis. Como diz Martinho da Vila, criticando os
sambas que atualmente tocam nas rádios, "Dessas
músicas que estão por aí eu faço umas dez todo dia. É mole!" Os barulhos -
estes, os eletrônicos, os sertanejos, os mais pedidos, mais vendidos e mais
ouvidos - mostram-se perfeitos para a boçalidade de atulhar o carro de potência
sonora e sair despejando mau gosto ao longo de ruas e avenidas, impondo a todos
a ignorância musical e a indigência intelectual do seu feliz proprietário.
Não nos restam mais
muitos resquícios de qualidade naquilo que, chamado de MPB, foi outrora um
motivo de justo orgulho nacional. Regredimos em letra, música e harmonia, em
poesia, sonoridade e ritmo.
A barulheira geral,
com música ou sem ela, tornou-se tão fluida e onipresente que não conseguimos
mais desfrutar de 30 segundos de silêncio absoluto para ficarmos um pouquinho
por conta dos ruídos: dos ruídos do vento nas folhas das árvores, dos ruídos da
natureza no meio do mangue, do ruído das águas - dos rios, do mar, da chuva -
em busca do seu destino, dos ruídos dos nossos pensamentos. Ao contrário, nos
assustamos com qualquer calmaria como se fosse a própria morte.
E isto é o mais
triste da história: irremediavelmente empobrecidos e soterrados pela
mediocridade, não conseguimos atingir a genialidade de Beethoven nem, tampouco,
tirar algum proveito da sua surdez.
* Crônica publicada no jornal
"Diário Catarinense" de 19.02.14
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