quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Conversa Franca

Por Fabio Ramos


Norma acabara de pegar Juquinha, seu filho de oito anos, no colégio. A dupla caminhava por uma rua silenciosa. Em frente a um sobrado imponente, de muros altos, ela toca a campainha. A porta range ao ser aberta. Era o cunhado Deoclécio.

– A Consuelo está? – pergunta Norma.
– Ela foi no mercado, mas já está voltando – informa Deoclécio. – Vocês querem entrar?
– Eu não posso. Tô com horário marcado no cabeleireiro! Estive pensando... Será que você poderia ficar com o Juquinha, enquanto eu vou no salão?
– Sem problemas, Norma! Vai ser um prazer ficar com ele.

A mãe beija o filho na testa e distancia-se, apressada. Ao entrarem, os dois tomam seus lugares no confortável sofá da sala de estar.

– Me diz como foi a aula hoje.
– O mesmo de ontem – contou o sobrinho. – Antes eu não gostava de ir pra escola. Só que eu conheci a Marieta e tudo mudou.
– Sei – respondeu, laconicamente, o tio.

Juquinha tira um caderno de dentro da mochila. Voltando-se para Deoclécio, pergunta:
– Tio Déo, você me ajuda a fazer a lição de casa?
– É claro... se eu souber, eu digo.
– Hoje a professora tava falando de D. Pedro. Você sabe o que ele fez em 7 de setembro de 1822?
– Deu um grito, abaixou as calças e cagou – sentenciou Deoclécio.
– E a Guerra Fria, quando começou?
– No dia em que eu me casei com a Consuelo.

Não satisfeito, o garoto continuou a sabatina.
– O que é Liberalismo?
– É a coisa mais divertida que já inventaram!
– Como assim?!
– Imagina todo mundo liberando geral, bebendo a noite inteira e se divertindo sem parar...

Por um instante, Juquinha refletiu sobre o que Deoclécio lhe dissera. O silêncio foi quebrado com mais um questionamento:
– Então você é um liberal, tio?
– Entre quatro paredes, sim! Mas não vai contar pra sua tia, moleque... Isso é segredo de Estado!

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Caretice da Contracultura



A contracultura surgiu na década de 60 do século passado como um movimento que manifestava inconformismo com a realidade social e cultural da época. Seu principal objetivo era contestar o status quo e romper com todos os hábitos, pensamentos e comportamentos da cultura dominante.

Como movimento teve sua importância histórica, mas uma existência datada. Todavia, pode ser tomada de forma mais geral como um espírito crítico que se opõe à ordem social e/ou cultural vigente.

Se pensarmos que nos dias de hoje a realidade social está cada vez mais próxima de consolidar os valores defendidos naquela época como o respeito às minorias, à liberdade sexual e amorosa, conscientização ambiental, cultivo da paz e bem-estar comunitário, parece que, atualmente, ser adepto da contracultura é contestar todos esses avanços sociais.

Portanto, contestar o pensamento dominante (ainda que não seja a prática dominante), hoje, significa, por exemplo, ser intolerante às recentes decisões judiciais quanto as relações homoafetivas e homoparentais. É negar a existência e legitimidade da multiplicidade de projetos de vida, querendo impor apenas um como o correto.

Soa até estranho, mas adotar uma posição contracultural nestes dias é um ato de grande conservadorismo e, porque não, bem careta.


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Desmemoriado

Por Fabio Ramos


Contornando os lapsos cerebrais,
Anotei na palma da mão:
 – A tempestade vem com horário marcado!

Enquanto caminho distraído,
Tento ordenar
A profusão de ideias.

1 – Não sei o que significa “restrugir”.
Talvez seja algum método
Para castigar criança birrenta.

2 – Quem inventou a vergonha
Deve ser o mesmo sujeito
Criador das roupas.

3 – Por que relutamos
Em aceitar
A finitude da matéria?

Estou esquecendo-me de algo?
Ah, sim! Taí o motivo
Pelo qual os óculos embaçam:

...
...
...

Dessa vez,
Até o pensamento molhou!

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Bom, o Ruim e a Arte


Estava escutando o episódio nº 33 do podcast Papo na Estante, cujo tema é a literatura de entretenimento. Em dado momento, um dos participantes, o escritor Luis Eduardo Matta, disse que para ele não havia livros bons ou ruins, mas aqueles que gostava e os que não gostava.

Tenho que concordar com ele e acredito que esse pensamento pode se estender para qualquer espécie de manifestação artística.

Se tomarmos como parâmetro que a arte, assim como a religião e a filosofia, é uma manifestação humana da busca por significados e dentre elas é aquela que tenta encontrar essa significação na expressão dos próprios sentimentos humanos, fica difícil acreditar que ela tenha um só valor para todos.

Ser bom ou ruim transmite a falsa impressão de que se pode atribuir um valor universal à uma determinada obra de arte, com alguém tendo a suposta autoridade de fazer predominar o seu significado como um veredito absoluto.

Todavia, a arte só atinge seu verdadeiro potencial (de ser transformadora e transcendente) ao encontrar um valor em cada um com quem tem contato. E cada significado é soberano no reino de quem o proferiu. E legítimo, porque levou em conta o impacto que ela causou em seu mundo.

A arte não quer ficar aprisionada num único e ditatorial significado, mas se libertar com vários deles. Nesse sentido, uma obra de arte só será justiçada quando julgada com parcialidade e, longe de critérios técnico-formais, ficará lisonjeada com um simples gosto ou não gosto.

Como bem sintetizou Emile Zola: “uma obra de arte é um ângulo visto através de um temperamento”.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Um Parafuso Fora de Lugar

Por Fabio Ramos


“O caráter de um homem é formado pelas pessoas
 que escolheu para conviver” (Sigmund Freud).

Não vou entediar o leitor com esclarecimentos ou justificativas. Excluído? Vítima da sociedade? Nada disso... O que me trouxe às ruas é assunto meu.

A turba apressa o passo. Enquanto os raios solares da manhã dissipam os fantasmas noturnos, eu permaneço deitado sobre a pilha de papelão (meu colchão rústico). O desassossego da madrugada não permitiu sequer um cochilo! É necessário prestar atenção ao entorno. Saiba que qualquer sombra pode ser uma ameaça. Lugares movimentados, durante o dia, são mais seguros. Estou sob a marquise de um prédio abandonado.

Aos olhos da multidão, somos invisíveis. Muitos seguem em frente e não nos enxergam: pisam quando estamos na calçada; cospem no chapéu onde depositamos as esmolas. Em se tratando de invisibilidade, podemos ser comparados aos garis. A diferença é que, pelo menos, os espectros sociais da limpeza desempenham uma tarefa em prol do coletivo. Nós não. Puxar uma carroça nunca me garantirá auxílio médico, direito à educação, carteira de trabalho assinada etc.

O cabelo desgrenhado e a barba por fazer causam repulsa nos transeuntes. Se nossa existência é despercebida, o mesmo não ocorre com o odor de nossos corpos... Os cidadãos de bem reclamam do cheiro desagradável. Mas o que é a falta de higiene perante a falta de dignidade?

Os alimentos descartados no Mercado Municipal me alimentam. Somos agredidos pela Guarda Civil e os albergues estão sendo fechados, um a um. Nós representamos a sombra e as sobras; uma espécie de lixo ambulante. A grande maioria dos que entraram nessa vida enlouqueceram. Literalmente. Sem casa, sem família, sem carinho. O que resta além da loucura? Qual o segredo para manter a sanidade? As poucas almas benevolentes – que distribuem sopa e vestimentas usadas – não dão conta do vazio que nos aflige. O álcool e as drogas também não apontam uma direção.

Ponha-se no meu lugar: quem trocaria sua vidinha confortável, seus pequenos dramas cotidianos, por uma noite na rua? Você é capaz de imaginar a cena? Sentindo na própria pele o que vivenciamos, você aprenderia a ser grato. Aprenderia a desconfiar das aparências. Só que isso não acontecerá (nem em pensamento) porque eu sou invisível e você não me enxerga.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

GIANECCHINI

Por Denise Fernandes


No dia seguinte da notícia do câncer do ator Reinaldo Gianecchini, encontrei S. e ela estava triste com o fato. Disse que também tinha me envolvido muito já que devido aos sonhos eróticos que tenho com o ator, me sinto “íntima” dele, realmente próxima. A vida dele me importa. Dele e do Rodrigo Santoro, para ser mais precisa nesses assuntos.

        Sei lá se por falta de assunto mental, comecei a imaginar que começaríamos um relacionamento, eu, tipo enfermeira do Gianecchini. Ia fazer tanta comida pra ele que ele ia engordar e peidar o dia inteiro. Tudo ia ficar mais agradável em nossas vidas. Dormiríamos exaustos de tanto fazer amor e acordaríamos aos poucos, espreguiçando, encontrando ainda na cama tempo para mais um pouco. Seríamos ainda mais felizes do que já somos, inteiramente tomados por nosso louco e calmo amor. Acho que um amor pode ser louco e calmo ao mesmo tempo, nunca vivi isso, por isso mesmo estou criando essa fantasia.

        Já vem as más línguas dizendo que não adianta eu fantasiar que ele é gay. Fantasia é fantasia e ele pode ser gay e de repente ficar a fim de experimentar algo diferente, já expliquei que o amor é louco. E tem a opinião da minha mãe que acha que ele não é gay. A opinião da minha mãe sempre conta e acho que a opinião da mãe de cada um conta, mesmo que seja inconscientemente.

        Além de lindo, imagino o Gianecchini super boa pessoa. Muito diferente de várias pessoas que conheço e com quem infelizmente também sonho. Meus filhos também reclamam, às vezes, de seus sonhos, mas há quem não se recorde dos seus sonhos, já que todos sonhamos. Sou sempre perturbada pelos meus sonhos. Eles me levaram à psicologia e a sentimentos mais profundos pelos atores Gianecchini e Santoro. Freud explica.

        Os exames que fiz para detecção do câncer em mim mesma me revelaram: a vida que mais importa para mim no momento tem caráter secundário. Chorei muito ante a ideia de ficar careca. A morte já me conformei, dela ninguém escapa, mas a ideia de ficar careca foi assustadora, e eu não sabia que era capaz de chorar de soluçar pensando que podia perder meus cabelos que nem são tão bonitos assim. O dermatologista explicou que são células mortas e que eu não deveria me importar tanto com células mortas. Mas ligo. Descobri que ligo, melhor assumir. Ligo também para as pequenas coisas que faço: cafés, comidinhas, liberdades. Gosto de passear pela rua perdendo meu tempo com as vitrines, pessoas, plantas, meus próprios passos, pensamentos. Pequenas aventuras. Se eu tivesse câncer, teria que preservar toda essa parte das pequenas aventuras de alguma forma, mesmo que meu corpo me traísse. Foi por essa razão das pequenas aventuras que levei pra Heliana que conhece bem o câncer e o hospital da Beneficiência Portuguesa uma coxinha engordurada e recém saída da frigideira. Ela aprovou deliciada porque entendeu que no pequeno presente, nesse bem pequeno de dois reais e cinquenta centavos tem toda a sorte do mundo. Tem o momento que vale, que fica. E das nossas risadas no hospital, da felicidade da amizade nos momentos de dor nasce um prazer que fica. Nessa corrente de amor que sinto que você também está, Gianecchini, permaneça. Com o pé no coração que é semente, honra e bondade, muito além de qualquer lei, aparência ou escolha. E permanecendo continue a criar em mim esse tesão de descobrir no seu sorriso, um sorriso meu também. Como sempre escreve a Heliana: amor, saúde, alegria! Para você, para nós, para todos nós !

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Beijo ou Abraço?


O beijo é amor sólido. Preso. Diluído. Previsível em formas e possibilidades, cada uma com seu protocolo e regras de etiqueta bem rígidas, todas elas forjadas no seio de uma sociedade mononuclear patriarcal heterocentrista.

Tem um tipo de beijo para as mães e outro para os filhos. Tem um para os irmãos e outro para os amigos. Todos eles são bem diferentes daquele reservado para os casais.

Tem até mesmo o beijo heterossexual e o beijo homossexual. Este último pode ser o beijo homoafetivo (casais) e homoparental (família), com nome de remédio tarja preta e, como este, com tolerância restrita de uso.

Já o abraço é amor líquido, fluindo livre sem formas, rótulos ou regras. É um só e muitos, porque a criatividade é o limite e, em qualquer alternativa em que se apresenta, expressa o amor em toda sua intensidade.

Não tem um abraço apropriado para mães, filhos, irmãos, amigos, casais. Não tem um abraço heterossexual e outro homossexual. Existe simplesmente o abraço.

Eu gosto mais do abraço. E você?


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pegue e Pague

Por Fabio Ramos


                         No supermercado dos deuses,
                         qualquer produto exposto
                         possui código de barras.

                         Veja a prateleira dos seres humanos:
                         quanta variedade, quantas promoções,
                         quanta rotatividade, quantas...

                         Como em todo ajuntamento social,
                         a falação impera no setor.
                         – O meu rótulo é mais vistoso!
                         – Você custa muito barato!
                         – O seu prazo de validade venceu!

                         As mercadorias
                         de maior valor agregado
                         não se misturam
                         com aquelas mais populares.
                         Elas exigem o topo das prateleiras
                         (para ficarem na altura dos olhos
                         dos deuses consumidores).

                         Ansiando status, alguns produtos
                         apostam em estratégias para ascender:
                         bajulam, dissimulam e manipulam
                         os que estão na parte elevada.
                         Quem sabe casam
                         com um colega “superior”.
                         Já os demais necessitados,
                         sonham em ganhar na loteria.

                         Independente da altura
                         em que se encontra
                         (ou dos laços que estabeleceu),
                         a consequência é uma só:
                         depois de abertas e consumidas,
                         as embalagens serão descartadas
                         na lata do lixo.
                         E a mercadoria será reposta por outra.

                         Nada pode deter
                         a produção em série.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Puta Falta de Sacanagem

Por Alex Constantino



Reportagem recente menciona que os policiais civis de Goiás estão em greve, reivindicando melhoria salarial e, principalmente, das condições de trabalho. Um representante da categoria denuncia que falta coletes à prova de bala e os policiais são obrigados a se comunicar utilizando seus celulares particulares. Além disso, menciona que mais de 10.000 inquéritos estão parados por falta de pessoal.

Enquanto isso, não muito longe dali, numa votação secreta a Câmara dos Deputados arquivou o pedido de cassação da deputada Jaqueline Roriz. Ela foi acusada de quebra do decoro parlamentar porque foi flagrada num vídeo recebendo dinheiro do delator do esquema do mensalão dos Democratas de Brasília.

O motivo do arquivamento? Na época em que recebeu o dinheiro ela não era deputada, portanto, não estava submetida ao código de ética do parlamento.

O Brasil tem melhorado seus índices econômicos e sociais, mas nota-se que ainda há uma escassez de muitas coisas. Para uns falta colete à prova de bala e para outros falta uma palavrinha com v... (e não é verba), ambos gêneros de primeira necessidade.