domingo, 18 de dezembro de 2016

Usinas

Por Oswaldo Antônio Begiato




Se eu tivesse por escudeiro
Pacífico, o anão
Gordo e desengonçado
E tivesse por Dulcinéia
Madalena dos pacotes,
A catadora de sonhos
Nos lixos da sociedade,
Seríamos
O orgasmo de Cervantes?


Mas como sou Dom sem dons
Em retalhos tupiniquins
Sem escudeiros
E sem Dulcinéias
E luto contra
Usinas de açúcar e álcool
Que me matam de diabetes,
De falta de ar
E me curvam o coração
Na direção da embriaguez
Que desperta minha lucidez,
Serei eu orgasmo?


De quem?

sábado, 17 de dezembro de 2016

Alice no País das Maravilhas

Por Meriam Lazaro




"Não acho que joguem nada limpo", começou Alice, num tom bastante queixoso. "E todos brigam tão horrivelmente que não se consegue ouvir a própria voz... e parecem não ter nenhuma regra em particular; pelo menos, se têm, ninguém segue... e depois todas as coisas são vivas, e você não faz ideia da confusão que isso dá".


Os adultos que se aventuram com Alice pelo País das Maravilhas abandonam a lógica (antes mesmo da queda no poço) ao ver o coelho branco – vestido a rigor, com um relógio na mão – dizer: "Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!"


A passagem pelo túnel, em si, já é uma aventura plena de alegorias; ao desconstruir a ideia de tempo e espaço. Alice toma poções e diminui de tamanho. Come bolinhos e cresce demais. Chora uma lagoa de lágrimas. Fala com animais e seres que, fora do túnel, seriam inanimados (como a rainha, o rei de copas e todas as cartas do baralho). Meu bicho preferido é o risonho Gato de Cheshire que, num diálogo com Alice, aponta o rumo a ser seguido:


– "Que caminho devo tomar para ir embora daqui?
– Depende bastante de para onde quer ir.
– Não importa muito para onde.
– Então, não importa muito que caminho tome".


É a chamada literatura "nonsense", muito em voga pelos ingleses da época; com enredo aparentemente disparatado, sem nexo, cheio de trocadilhos. Diante desse mundo maravilhoso, ficamos a pensar: o que é – ou não é – normal? Quem teria autoridade para ditar a normalidade? Ser mais velho é suficiente para impor algo sem significado aos demais? Bem, se não há um sentido objetivo no País das Maravilhas, o mundo de Alice também não é muito diferente.


Confesso que levei uma surra na leitura desse infantil, mas fiquei interessada na continuação da aventura ("Alice Através do Espelho"). Assim como Shakespeare e outros clássicos, sei que novas interpretações irão surgir a cada releitura. Lembrei-me das crianças "perguntadeiras", com seus porquês infindáveis, a embaraçar papai e mamãe. Pena que, ao final dos primeiros anos, a curiosidade silencia – por ser considerada bobagem.


Livro: Aventuras de Alice no País das Maravilhas
Autor: Lewis Carroll
Editora: Zahar

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Até

Por Mayanna Velame




É noite de nuvens ruborizadas no céu. Mansamente, um avião cruza o horizonte. Grilos cricrilam escondidos entre os matinhos umedecidos pelo orvalho. Enquanto isso, cães ladram nas esquinas vazias.


As horas derretem-se na calidez do tempo. A cada minuto que se rompe, a vida apresenta-se embarcada em sua própria fugacidade. Sabemos bem: os doze meses que recebemos são doze capítulos – e nem sempre teremos a autoridade de redigi-los como queremos.


Somos personagens de um romance chamado vida. Em certos momentos dessa epopeia, nos consideram heróis. Em outros, nos enxergam como vilões. O ano, paulatinamente, ensaia sua despedida. Um tétrico 2016 se desenhou (marcado por tragédias, perdas e desencantos; bem como pela crise política, moral e institucional da nação).


Na ventura de viver, um novo ano surgirá. Com expectativas, sonhos, amores, erros e acertos. A única certeza que temos é o agora. O “até” é apenas um “pode ser”. E, talvez, o amanhã nem aconteça. Viver é um risco.


Os dias que prosseguem são chances – oferecidas a cada um de nós. Por isso, não relutemos pelo beijo roubado. Não nos culpemos pelo prato de macarronada consumido. Honremos nossos pais e abracemos nossos irmãos. Vamos ouvir, com mais atenção, o gorjeio dos pássaros. Devemos lutar por justiça e nunca nos submetermos à corrupção (seja ela qual for).


Assim viveremos, meu caro! Ora em paz, ora sentindo cócegas. Até porque, nosso coração sempre irá pulsar. Afinal, como escreveu o saudoso Ferreira Gullar, “a vida bate”. Sim, ela bate à sua maneira: dentro de cada ser, de cada vontade, de cada amor. A vida bate serena ou frenética – contanto que bata dentro de nós.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Ciclos

Por Daniella Caruso Gandra




Tudo pode acontecer, as escolhas se exibem,
mas o tempo diverge de precípuos desejos,
procedentes do arfar primordial.


Atos pensados são desfeitos,
desmentidos pela má hora,
e vistos como rarefeitos.


Surge a contento certo desaprender,
pois é preciso o risco para bem saber,
sem interditar o acesso à própria via.


Já que a vida transcorre como tem que ser,
fatos e gente inspiram e evaporam-se,
nada é em vão, ecoam novos ares então.


E quanto aos queixumes pelo desencantamento?
Servem de relento para se admirar o desconhecido,
quando a sina muda a rotina e a roupagem da consciência.


Percorrem-se os taludes num sincretismo com o anímico,
em cada estágio, um despertar acometido por um naufrágio,
mas somos parte de um amarrilho comprometido por ciclos.


Talvez recuperáveis, ou findos.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Ímã

Por Fabio Ramos




tanto
fala
do seu pavor
por
lagartixa


que
ela se
materializa


(bem diante de vós)


e
isso
também sucede
com ratos


(...)


tanto
invoca
o mal pelo nome


que
ele vem bater
à
sua porta


(bem junto de vós)


pois
você
o convidou


(...)


mas
com José Francisco
é diferente


pois
(da sua boca)
ouvimos:


DEVO
SER UM ESPELHO
PARA
MEU FILHO


(...)


tais pensamentos
originaram
o quê?


por gentileza
DIGA


(nós queremos saber)

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Aqui

Por Denise Fernandes




Aqui,

do meu quarto com goteiras,

perplexa e meditando

sobre Tudo,

enquanto outros meditam sobre o Nada

sincronicamente estendida como palavras sobre a folha

alquimicamente gerando outra

forma-pensamento,

escrevendo.

Talvez seja por isso que eu prefira escrever a estar.

Enquanto escrevo, o sofrimento fica parado.

Estátua.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

quente e só

Por Ana Paula Perissé




                                        não me sou para o morno
                                        e se não te fazes
                                        ao inverso
                                        deixo-te à brisa sem ressaca
                                        à ausência mansa
                                        do que poderia ter sido
                                        MUITO.


                                        não me visto sem
                                        tormentas
                                        e se te queres assim
                                        sem suores ardentes
                                        muito me calo
                                        ressinto
                                        e fujo
                                        com minha força
                                        a mutilar-me
                                        as veias.


                                        ( deixa-me quente e
                                        só)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Hora do Angelus

Por Oswaldo Antônio Begiato




Quando eu me despertar
não me desejo sorrindo.


Quero antes
beber a tristeza
com minha boca gelada,
no momento em que o relógio
das catedrais anunciarem
a hora do angelus.


Quando eu me despertar
não me desejo colorido.


Quero me ver verde,
coberto de musgos
e cheio de vermes
por baixo
de minha pele falsa,
e voltar a ser pó.


Recuso-me a chorar,
no entanto.


Não tenho mais estômago.

sábado, 10 de dezembro de 2016

O apanhador no campo de centeio

Por Meriam Lazaro


"O Semeador", de Vincent van Gogh


Releitura vale por um livro novo – e torna um autor redivivo. No mundo das metas, do imediatismo para desfrutar novidades, como é bom destinar um tempo para refazer os passos, retomar as letras, por em revista (sob a mira de hoje) nossas impressões passadas. Em algum ponto da história, olhares atuais se encontram com a memória de outros olhos.


Holden é o personagem marco do adolescente, como hoje conhecemos, na literatura. Antes disso, não era bem pontuada a adolescência: meninos e meninas passavam direto de crianças a adultos. Pelo menos é o que diz Maria Elisa Cevasco no programa "Literatura Fundamental". Após a leitura, enriquece-me a experiência checar vídeos a respeito do livro; pesquisar sobre o autor e os bastidores da obra.


O guri é um revoltado. Seus dois amores são a irmãzinha e um irmão morto. O irmão mais velho é um babaca, que deixou de escrever boas histórias para ganhar dinheiro com roteiros cinematográficos. Os colegas do colégio são babacas, os professores são babacas, os pais são babacas. Enfim, Holden é "O Babaca" que enxerga o mal do mundo – mas jamais pensa em fazer algo para mudar as coisas. Na visão de muitos leitores, a aversão do desajustado ganha força quando sabemos que sociopatas foram encontrados de posse do livro (como o assassino de John Lennon e o atirador que tentou matar o presidente Reagan).


Quem se encanta são os leitores empáticos com a depressão de Holden, o luto sentido pela morte do irmão, a memória do suicídio de um colega e a vontade de fugir de casa – irresistível para muitos jovens. Vestir a roupa desconfortável do não querer crescer, nem ficar criança, é o passaporte para admirar a obra. Nessa vestimenta, não sabemos o limite da nossa pele (e nem da pele do personagem). Lembramo-nos de uma época distante, onde sonhávamos morar numa casa/barco, isolados de tudo, ou escaparíamos do tédio com uma viagem num disco voador.


Mais um livro que resistiu à releitura como um dos favoritos de todos os tempos. Inesquecível número 100 de 2016.


"Para ser franco, não sei o que eu acho disso tudo. Tenho pena de ter contado o negócio a tanta gente. Só sei mesmo é que sinto uma espécie de saudade de todo mundo que entra na estória".


Livro: O apanhador no campo de centeio
Autor: J. D. Salinger
Editora do Autor

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Farsa

Por Daniella Caruso Gandra




É brincadeira, um rompante pueril,
uma entrega de bandeja, um jogo arrematado.


Num súbito, atiçado, em acaso aparente,
cuja rasteira é previsivelmente sentida.


Mas todo e qualquer ato
só termina quando assim se determina.


Até o palhaço, em sua arena montada,
mesmo vaiado diante do mau espetáculo,
opta pelo número continuar.


Fará sempre da mesma maneira
e se revelará em sua maçante cena.


Não desperdice suas penas,
pois todo palhaço é traidor,
como todo poeta é fingidor.


Exceções podem haver,
sem ardilosas intenções,
sem egos a satisfazer.


Mas, caro leitor,
peças marcadas são fáceis de encaixar,
basta um segundo olhar pra desmascarar.


Au revoir!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Néctar

Por Fabio Ramos




se
fossem
espremê-la numa
taça


que gosto
teria
?


suas
gotas de
suor
administradas como
vacina


suas lágrimas
de
alegria
a controlar hipertensão


(tão naturais quanto leite do peito)


(...)


ele a desejava
em estado
líquido


e bebeu daquela fonte
até o fim


jamais
abrindo mão
da regalia adquirida 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

quando fui várias

Por Ana Paula Perissé




                                          fui-me tão
                                          várias.
                                          que de tantas
                                          fiz encontros de paixão
                                          e de vida
                                          e de morte.


                                          fui-me outras
                                          que do múltiplo
                                          de mim
                                          sofri em proporção
                                          à cada uma


                                          fui-me desconhecidas
                                          ora puta
                                          ora amiga
                                          mãe
                                          irmã e deusa
                                          amante
                                          pagã e teimosa


                                          fui-me
                                          que de tantos desencontros
                                          conheci algo
                                          de ser.


                                          Alguém em devir


                                          com tantas
                                          anas
                                          a rondar-me
                                          em mim
                                          deixo-me
                                          sem dor maior,
                                          sem muita vida
                                          ou clamor
                                          do muito.


                                          Deito.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Empastelamento

Por Oswaldo Antônio Begiato




tenho que escrever enquanto as palavras
vão me rasgando o ventre
e nascendo como água
que rompe pedras


não sei para quem escrevo
não sei porque escrevo
não sei onde escrevo


como é água jorrando brutalmente
de um desconsolado ventre
escondido entre pedras
nada posso garantir


não posso garantir sua liquidez
não posso garantir sua limpidez
não posso garantir sua frescura
não posso garantir sua verdade


nem mesmo garantir
se sou eu mesmo
esse eu que me vejo
nas coisas que escrevo

sábado, 3 de dezembro de 2016

Homens imprudentemente poéticos

Por Meriam Lazaro




Silêncio de três dias após a leitura. Nós não nos atrevemos a dizer o que sentimos diante de uma obra de arte que nos toca profundamente. Talvez a transcendência seja isso: o vazio pleno de respeito. Essa é uma história com jardins de flores belas, toque de flauta pela floresta, dança do vento no bambual, sofrimento, superação, mistério de morte tocando a vida adiante. E se passa no Japão. Tem a delicadeza da arte bonsai com o toque do mestre ocidental, que sabe extrair da língua portuguesa todo o significado, dignidade, imaginação. Lugar comum? Só se for a paixão unânime dos leitores por esse escritor imprudentemente poético. Meu livro predileto de 2016 já tem nome, autógrafo e beijo.


Livro: Homens imprudentemente poéticos
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Biblioteca Azul

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Transcendente

Por Mayanna Velame




Sou tua solidão
E teu vazio.
A tempestade e o caos.


Em mim, moram sonhos.
Por isso, detenho os pesadelos.
Desmorono muralhas
E resgato civis.


Recrio teu amor
E tempero teu ódio!


Recapitulo versos
E reponho vírgulas em
Vãs melodias.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Fotografias

Por Daniella Caruso Gandra




Fotos revelam?
Um pouco relevam?
Flashes momentâneos, idos de outros planos.


Registros de imagens recuperáveis,
provas de certas lenhas memoráveis,
outras, descartáveis.


Há lentes que já viram um pouco de tudo;
no quebra’mar, cardumes se desfazendo,
peixes pequenos botos virando,
e o canto da sereia se emendando.


Fotos não atestam estabilidade, nem evidenciam felicidade,
mas expõem o tempo, esse indomável engenho,
divino farfalhar, sempre disposto a sobre nós triunfar.


Em contraponto à captura da luz, reunindo pixels a nos representar.
Película luminosa descartável, onde nos reflete retos ou inclinados,
nítidos ou mascarados, confortáveis ou obstinados.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Não era filme do Hitchcock!

Por Fabio Ramos




um raio atingiu
o pássaro


em
pleno
voo noturno


(...)


RESULTADO?


a
queda
em 90 graus


e a pancada no solo


(...)


o urubu
viu
uma oportunidade e
abraçou:


QUE BANQUETE!


(...)


ao terminar a
refeição


ele
quase pairou
no ar


(como beija-flor)