terça-feira, 31 de março de 2015

Meus caros amigos

Por Denise Fernandes




Consegui, com muito esforço, meu desejado disco do Chico Buarque: "Meus caros amigos". Ouvia direto. Decorava lentamente todas as letras. Naquele tempo, os álbuns mais legais vinham com encarte e letra das músicas. Adorava tais encartes. Meus joelhos tinham uma dor desgraçada naquele tempo. O médico disse que não havia remédio, era uma dor causada pelo crescimento. Fiquei com medo de crescer demais nesse tempo, e ter muita dor.

De vez em quando, tomava um melhoral infantil. Não tirava a dor, mas aliviava. Tomei melhoral até um médico dizer que eu devia parar com isso, pois já era adulta. Mesmo sem entender a lógica, eu parei. Odeio esse meu lado "pau mandado". Vou obedecendo. Depois a testa franze e começo a me perguntar: por quê? Pode ser que eu mude de ideia. Mas meu primeiro instinto é de capacho, de dizer sim.

Só meus cabelos dizem não. Chorei muito na infância ao descobrir que não ia ser loira. Tinha uma teoria que, quando as pessoas cresciam, antes de se casar, ficavam loiras. Quando soube que ia ser morena do cabelo enrolado para sempre, chorei. Minha mãe informou que não adiantava chorar, e que estava cheio de mulher morena bonita. Sabia que ela estava me consolando.

Cabelos e postura. Não, eu agradeço muito a cabeleireira e digo, pela décima vez, que não quero uma escova de chocolate para alisar meus cabelos. Vou aparar as sobrancelhas porque está na moda, e escuto – com insistência – uma nova oferta dessa tal escova. Será que ela fica incomodada com meu cabelo, ou pensa mesmo no dinheiro? Já não ligo em parecer feia, pode ser engraçado.

Engraçado como quando meu namorado brinca comigo de virar estátua, com meu olhar de Medusa. Minha cabeleira transformada num ninho de serpentes. Invariavelmente isso acontece quando estamos na praia. Entro no mar, depois bate o vento... Rio muito, ele faz poses de estátua engraçadas. Juro que, da próxima vez, vou levar um pote de creme para abaixar a juba.

Tem horas que ele me chama de Bethânia, pois fico a cara da cantora brasileira (com seu cabelo armado).

Quanto mais creme para abaixar o cabelo passo, mais arrepiado ele fica. Não sei qual é a lógica que me faz continuar passando o creme. Talvez seja o medo de não tentar mais nada. De ser meu cabelo, o confuso do meu cabelo, o assustador do meu cabelo.

Mesmo com um aspecto terrível, ele é macio, é cheiroso. Medo de perder o cabelo.

Cabelos e sonhos. Quando era jovem sonhava ir a Moçambique e, agora, já nem consigo sonhar direito. Fica faltando uns pedaços. Tenho medos. Mais cabelos que medos, ainda bem.

O único alívio real para minha dor era esfregar os dois joelhos no tapete, bem peludo, que havia em casa. Na realidade, eu imitava o cachorro – que fazia o mesmo. Talvez ele sentisse prazer com aquela esfregada. Sabedoria animal.

Não sei o que fazer. Tem horas que me dá vontade de pintar os cabelos de azul. Mas acho que, com tantos olhares, cansaria. E a trabalheira que deve dar fazer um cabelo azul. Quando era pequena, as mulheres usavam bobes no cabelo. Lembro que fiquei super feliz quando consegui dois bobes para mim: um azul e outro verde. Eu enrolava minha franja e dormia com aquilo. Meus irmãos riam de mim, falavam que eu estava assustadora, que marido nenhum ficaria comigo quando me visse assim. Nem ligava, pois achava o máximo participar do mundo encantado das mulheres, e acabava rindo com meus irmãos menores. Também não queria casar, só queria ficar com o cabelo bonito.

Dizem que, dependendo do lugar, o cabelo muda. Não viajei o suficiente para saber, mas será possível meu cabelo ficar ainda mais arrepiado e complicado do que já fica? Acho difícil. Dessa perspectiva, só pode melhorar.

E como seria em Moçambique? Seria um pouco melhor ou um pouco pior; mesmo isso parecendo improvável. Teria saudades de tudo, ou saudades de muito pouco.

O que posso dizer para você que já não deseja vir ao Brasil, pelas notícias que vê? Bem diferente do noticiário, não posso dizer que está bom. Tudo ainda se parece com a música do Chico Buarque que ouvia naquele tempo, e que ficou tocando na minha cabeça depois que li suas mensagens falando de irmos a Moçambique, e de você não querer vir mais ao país. Tudo mudou e nada mudou, o cenário é o mesmo da letra: aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, choro, rock'n'roll, a coisa aqui tá preta, muita mutreta para levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça, é pirueta pra cavar o ganha-pão, que a gente cava só de birra, só de sarro, que a gente engole cada sapo no caminho, e ninguém segura esse rojão.

Ajeito o cabelo, ninho de serpentes, e ele diz que não adianta, é meu olhar que o petrifica.

Depois a gente dorme abraçado. Ele com a mão no meu cabelo. Dá uma paz. Sempre lembro o que o dermatologista disse: são células mortas, não se preocupe com seu cabelo. Mas é que essas células mortas parecem tão vivas, expliquei a ele. Depois percebi: apesar de mortas, são minhas células, partes da minha essência. E minha morte também será minha, uma parte importante da minha vida.

Agarrada ao cabelo morto-vivo, brancos vão surgindo e, se puxar, nascem dois fios novos para cada um que se arranca.

Outro dia tive um pesadelo que estava ficando careca. Acordei super assustada. Olhei no espelho. Tenho muito menos cabelos do que antes. Menos sonhos também. Menos tempo para sonhar. Já não há mais banhos de sol demorados, nem trajetos longos de ônibus que me permitam sonhar. Meu tempo bem aproveitado está sem sonhos, só agora percebo. E o sonho de Moçambique já está ficando amarelado, como o papel branco há tempos guardado na gaveta. Meus cabelos branqueando, os problemas crescendo. Resta-nos uma esperança crítica. Ela é como uma lua bem fininha, no céu de nossos países. Resta-me esse cabelo atrapalhado, esses sonhos que sonhei quando tinha tempo de sonhar. E isso é muito, sei que é.

Acho que, em meus sonhos, já sonhei com você aqui, amiga, mas sem que isso fosse um castigo para ti. É difícil imaginar o que poderia acontecer de bom para que você sentisse ânimo de pisar em nossa terra, tal é o cenário político apresentado. Ao pensar em mim, meus filhos e meus amigos aqui no Brasil, penso na tal esperança crítica, mas não como uma alternativa. Lembro da música e, apesar dos meus cabelos brancos, não faz tanto tempo que há sementes germinando, que há crianças e jovens com tempo de sonhar. Nós ainda nem fomos para Moçambique, nessa missão de paz que sonhamos.

Você já viu que não posso te aconselhar com seu cabelo. Já fico com vontade de rir, imaginando a moça me oferecendo a tal da escova de chocolate. Imagino eu bem velhinha, ela também velhinha, continuando a oferecer o tratamento e eu negando. Cabelos que não sabem de sonhos, nem de olhares, nem de tristezas. Cabelos como raízes lunares, como anteninhas, como países. Cabelos políticos, cabelos politizados. Cabelos como mensagem.

segunda-feira, 30 de março de 2015

intempestiva

Por Ana Paula Perissé



 
                                        ( a experiência
                                        da fronteira eterna)


                                        quando as palavras dançam
                                        sob um sentido
                                        oculto
                                        forte
                                        é porque não há
                                        acaso que
                                        limite
                                        os batimentos de
                                        ser
                                        totalmente sua


                                        depois do fulgor
                                        ainda
                                        há
                                        clarões
                                        repentinos
                                        de
                                        doce
                                        amargor
                                        esparso.


                                        há sorrisos
                                        tão singelos
                                        quanto
                                        o embrião
                                        que surge
                                        toda vez que
                                        há
                                        desejo
                                        amor de corpos
                                        em estrelas intempestivas
 

domingo, 29 de março de 2015

Menina

Por Oswaldo Antonio Begiato




Caia, ó pétala, no chão;
caia branca e translúcida.
 
 
Caia leve e demorada,
castidade rebelde e silenciosa.
 
 
Caia,
pois a melodia de tua queda
será anunciada pela voz rouca
de um anjo pequeno.
 
 
Caia
e o nosso mundo nunca mais
será de castigo.

sábado, 28 de março de 2015

Mentira ou verdade?

Por Meriam Lazaro




Quando duas pessoas moram numa casa, e alguma coisa desaparece, uma delas é a culpada. Verdade ou mentira? Aqui em casa é ela: que some com meu batom e aparece toda borrada; que abre a torneira para beber água corrente; que acende a luz para melhor pegar borboletinhas noturnas; que adora destruir papéis e papelões.


Sábado passado, após jejum de doze horas (forçado, é óbvio!), compareci ao laboratório para recolherem uma amostra de meu precioso sangue. Mão remexendo na bolsa, bolsa sendo esvaziada na cadeira... Procurei a requisição e nada. Foi ela! A danadinha deve ter derrubado o papel de cima da mesa, quando tentava afiar suas unhas no arranhador cor-de-rosa.


Voltei para casa fula da vida com a gata, só para encontrá-la enfurnada sob as cobertas da cama – o que é, decididamente, proibido. Procurei no armário, nas gavetas, na penúltima bolsa utilizada e nada. Hora de ligar para o médico e pedir uma nova solicitação. Mas, antes disso, lembrei que sempre tenho (dentro da bolsa) algum livrinho para enfrentar a fila de espera. Dito e feito! Lá estava a requisição, dobrada dentro das crônicas. Eis a mais pura verdade: quando alguma coisa desaparece, numa casa onde moram duas pessoas, a culpa é de uma delas.
 

quinta-feira, 26 de março de 2015

Detalhes

Por Amilcar Neves*

 
 
Gorda, frequentando já a alta meia-idade, a mulher fala ao telefone enquanto caminha pelas alamedas da Universidade Federal:
 
– Tenho os meus direitos! Não, mana, não vou sair da minha casa para embarcar na aventura de prestações por um apartamento.
 
Pronto. Só isso. Precisa de algum detalhe? Todo mundo já sabe que lhe coube a casa quitada na partilha do divórcio recente e que os filhos pressionam a tia para meterem a mão na grana da venda da casa.
 
Detalhes dificultam a vida, atrasam o ritmo da correria cotidiana e não acrescentam nada ao que já se sabe. Os detalhes de um caso apenas impedem que, no mesmo intervalo de tempo, se conheçam inúmeros outros casos.
 
Não é por menos, ou seja, pelo repúdio aos detalhes, que hoje se conta a história de toda uma vida em 140 caracteres (com espaços). Que se conta a História do Mundo em 140 toques. Sem que ninguém perca nada do essencial, que é o que verdadeiramente importa.
 
Tem gente que pega um assunto qualquer – um jacaré nadando no Rio do Sertão, por exemplo – e faz dele uma novela à custa de empilhar detalhes sobre detalhes a respeito do fato, quando seria bastante dizer simplesmente que havia um jacaré no riacho ao lado do "shopping".
 
Pronto. Só isso, e estaríamos todos entendidos – e satisfeitos – em relação ao assunto.
 
Essa gente, e escritores são teimosos e insistentes com essa irritante mania, faz uma novela, não uma telenovela, que é coisa totalmente distinta, consome páginas e páginas de papel quando uma sinopse diria tudo e muitas árvores seriam poupadas.
 
Só se dedica aos detalhes quem não tem pique para a ação, para a vida moderna, tocada ao estilo dos videoclipes: no texto, na música, nas conversas, nas decisões, nas imagens nervosas que se sucedem e se sobrepõem a cada dois segundos e meio, no máximo.
 
Assim é que se vive para aproveitar cada momento, cada instante. Assim são hoje os amores, vejam só, e isto já diz tudo: ninguém mais espera ficar gordo e velho como a mulher da universidade para trocar de parceiro. Até mesmo porque, em tais circunstâncias, consegue apenas ficar sozinho, não tem nem mais o que trocar.
 
E, também, já nem é o caso de falar em amor mas, objetivamente (quer dizer: sem detalhes), em sexo. O resto é encheção de linguiça. Pura perda de tempo, adiamento inútil do que em verdade conta.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 03.03.10

quarta-feira, 25 de março de 2015

TERÇA À TARDE

Por Fabio Ramos
 
 


o
nome
do meu avô
é
Joaquim
 

minha
neta fez
dois aninhos
 

mamãe fez
bolo
de
fubá
 

queria
uma
árvore
no quintal
 

eu
tenho um
bonsai
 

(hehehe)
 

o
senhor
viaja muito?
 

a
artrite
me impede
 

(...)
 

hora do cafééé
 

terça-feira, 24 de março de 2015

MATO NA AREIA

Por Denise Fernandes
 
 


Você viu: a gaivota fixou seus olhos nos meus em pleno voo.
 
Eu, que não tenho nenhuma esperança política,
 
leio romances em busca de possibilidades,
 
desligo a televisão para te ouvir melhor,
 
descanso meu corpo no seu.
 
 
 
Além de toda a luta de classes, de interesses
 
Há um oásis no sistema
 
e são essas dunas eternas onde tudo se move
 
nós, como esse mato nas areias
 
e esse consentimento das gaivotas
 
nossa presença podendo enfim nos surpreender
 

segunda-feira, 23 de março de 2015

dolor

Por Ana Paula Perissé




                                              ensimesmada
                                              aflita
                                              pausada em gestos
                                              desnudos de sentido.



                                              enforca-se
                                              à beira
                                              de vida
                                              à luz de teu próprio
                                              crepúsculo.



                                              eu, como
                                              sombra de tantos,
                                              quero mais
                                              é viver os mundos



                                              imensidão furiosa...


                                              (dai-me, então,
                                              a seiva vívida
                                              de vidas
                                              com mil cheiros
                                              de enseadas,
                                              a baía que reverbera
                                              loucura mansa
                                              de cada onda)


domingo, 22 de março de 2015

Medo

Por Oswaldo Antonio Begiato




Há vidas
e há vidas
havidas
ávidas.
 
 
Não se chegue
muito perto;
se chegar
fique em silêncio.
 
 
Posso apenas
prender firmemente
meus olhos desordenados
aos seus olhos
há neles um conforto,
um nível
e uma infinitude
só vistos
nos oceanos
serenos).
 
 
Nada mais posso.
Se eu for além,
ou vier do além
corro o risco de lhe invadir
rompendo seus vínculos.
 
 
É que o medo que me cerca
vem de dentro de mim.

sábado, 21 de março de 2015

Crônica sem pé nem cabeça

Por Meriam Lazaro




Sob o flamboyant, a rosa e a raposa confabulavam. “Faz dois dias que ela não aparece”, disse a rosa. “Creio que é falta de assunto”, acrescentou a raposa, olhando cobiçosa para o passarinho pousado logo acima. O passarinho, se fazendo de desentendido, exibiu-se em voo rasante e avisou: “Aí vem ela, a coroca metida à crônica”.


Dizem que tudo dá crônica. O assunto pode ser desde a falta de assunto até os acontecimentos diários. Dizem, também, que todo cronista tem pelo menos uma crônica para falar da própria crônica. Mas não se preocupem. Não falarei da vida efêmera da crônica. Muito menos que aquele “songa-monga”, com ares de desligado, na verdade está prestando atenção em tudo para depois, ao escrever, dar sua opinião... Opinião esta que muitas vezes parece a do sabe-tudo e/ou do “opiniático”, como se diz por aí.


Nada disso. Aqui entra a justificativa para os leitores saudosos dos minúsculos haicais, trovas e poetrix – que ora se deparam com estas e outras vinte linhas. Apenas me dediquei a aprender uma ou duas coisas novas a cada mês. Vale prendas do lar, artesanato, estudar outro idioma e ainda treinar as boas letras do nosso português. Tanto é que já tentei um cordel, as tais crônicas e a cozinhar.


“Mas você não tem receio de perder os leitores que gostam de entrar e sair correndo, sem perder tempo?” – perguntou a raposa, piscando os longos cílios.


Não. Os leitores de letras breves podem ficar à espreita, para ver se aparece um textinho maneiro. Creio que aqui vem quem gosta de vir. Há até os mais gentis, que se dizem saudosos quando a casa está vazia.
 

sexta-feira, 20 de março de 2015

Fantasma e estrelas

Por Mayanna Velame




Quando o sono se distrai em mim, penso e logo desisto de ficar exposto sobre a cama de lençóis surrados. Agito-me feito um animal selvagem, em busca da liberdade que me roubaram. Embora frágil, meus sentimentos são fortes. A noite sempre anseia pela solidão e eu sempre procuro exatamente aquilo que não sei procurar.


O relógio na parede conta, minucioso, as horas perdidas em que penso nessa vida sem sentido e sem entusiasmo. Isso são pensamentos mórbidos e circulantes; como nuvens negras em minha cabeça. Sim, sou oco por dentro, isso não nego. E, de fato, não me apavoro. Cabeça vazia permite ideias mirabolantes. Cabeça vazia permite imersão de pensamentos – que eu jamais poderia pensar.


Minhas noites são assim: chego do trabalho tétrico, desanimado. Apanho na geladeira presunto e cerveja. Ligo a televisão. O noticiário insiste em veicular tristeza, dor e desgraça. Não, a vida já é um desperdício.


No banheiro, minha imagem é refletida no espelho. Quando me olho, tenho medo. Pareço um fantasma, atarantado, em noites fúnebres. Meu castelo de areia se desfaz todos os dias.


Estou amuado. A água do chuveiro perfura cada poro imundo do corpo. Tenho frio intenso, sinto-me um gelo, minha alma morta quer viajar pelo mundo, enfrentar tempestades, destruir a solidão.


Deito-me. Não demoro muito e já estou de pé (feito um soldado). O silêncio me domina, meus ouvidos doem. Da janela, vejo o céu e os fantasmas que disputam espaço com as estrelas ofuscadas. Elas são assim: assombram, mutilam o rutilar da constelação. Eu gostaria de ajudá-las, mas não posso. O brilho mora dentro delas. A força, a majestade... tudo pertence a elas.


A fraqueza humana me dilacera. Eu já fui uma estrela! Uma estrela enorme, que iluminou muitas vidas. Hoje demonstro uma profunda hostilidade. Meu espaço foi cercado e possuído por fantasmas.


Eu me transformei. A vida me mostrou seu lado nada amistoso. Estou perdido. A vida é perdição; fragmentos de sonhos espalhados em nossos receios.


Chegou a hora de tentar dormir. A janela está aberta. Ouço os ruídos dos carros. Surgem passos, lentamente, ao meu redor. São fantasmas que crio para tolerar meus erros.


Prometi aceitar a vida da forma como ela se declara para mim. Percebi que estou enjaulado. A chave para a liberdade está dentro do coração e, talvez, eu não queira usá-la.


Vejo a dança das horas. A madrugada me beija. O vento sacode a cortina. Escuto sussurros. São eles, os fantasmas roubando minha alma. Lá fora, as estrelas. Noite solitária, coração pesado.


Não penso em dormir. Meu sono se esfarela como areia ao vento. Um cigarro não faz mal. E o vício é um fantasma que sustento há anos. Lembro-me de uma canção – resolvi cantar para as estrelas. Novamente estou diante delas. Agora, elas cintilam, parecendo fortes, robustas. Grito alto. Penso em nascer, em extinguir os fantasmas. Corro pela casa e abro a porta. Estou de braços abertos. Meu fim não é a derrota. Meu fim é seguir o caminho estrelar.


Deito-me no jardim. Formigas me presenteiam com ferroadas. Tudo bem, deixo a vida (por um segundo) sem mim. Porque, nesse momento, vivo apenas meus desejos.

quinta-feira, 19 de março de 2015

"Mímesis"

Por Amilcar Neves*

 
 
Acordou e, como de hábito, saiu da cama e foi até o banheiro, percurso conhecidíssimo, capaz de fazer no escuro, de olhos fechados. Como, de fato, muitas vezes fez, naquelas de continuar dormindo quando se acorda com urgências noturnas.
 
Não foi nada diferente, desta feita. De relance, percebeu um par de pernas magníficas deixadas à mostra pelo lençol que escorregou para o lado: pernas longas, elegantes, perfeitas, que muito lhe lembravam pernas familiares, as pernas de Mônica quando se apresenta de "short" curtinho na churrasqueira da casa deles, dela e de Eduardo, que ele amiúde frequenta. Percebeu as pernas na cama de onde acabara de levantar e pensou consigo, a continuação do meu sonho de agora mesmo, um sonho atribulado que lhe vinha em fragmentos à consciência.
 
Por isso, por saber tratar-se de um sonho, não se deteve por causa das cobiçadas pernas (não cobiçava propriamente a mulher do próximo, apenas uma fração dela) e rumou para o banheiro. Apesar dos olhos turvos e do peso que sentia na cabeça, o ar era tépido e perfumado na penumbra da alcova habitual. Restos de lembranças da festa da véspera confundiam-se com retalhos dos sonhos generosos que tivera, de tal sorte misturados uns com os outros que não conseguia mais distinguir a realidade da fantasia. Talvez porque tudo fosse, quem sabe, uma confusão só.
 
No banheiro, também num procedimento automático, pelas tantas mirou o espelho, e era o espelho de Eduardo no banheiro de Eduardo. Mirou o espelho porém era como se não estivesse exatamente mirando-se ao espelho, pois havia uma incômoda defasagem entre seus gestos e as imagens que o espelho devolvia. Como em certos filmes com falha de sincronia entre os movimentos da boca e o som que se ouve: o sujeito começa a falar e o som correspondente sai um pouco depois de os lábios se mexerem, de tal forma que, terminada a imagem da fala, a voz ainda se demora completando a frase. Algo muito incômodo, claro, todo mundo já viu isso.
 
Só que, no caso, o assincronismo se dava entre ele e o espelho, o que é infinitamente mais terrível e assustador. Levantou a mão direita e o espelho gastou alguns milésimos de segundo até levantar a mão esquerda da imagem. Como um espelho lento, muito carregado.
 
Voltar para a cama de imediato, decidiu Manoel Osório. Mas havia um sério problema a enfrentar: e se aquelas pernas não estiverem mais lá?

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 24.11.10