Por Denise
Fernandes
Consegui,
com muito esforço, meu desejado disco do Chico Buarque: "Meus caros
amigos". Ouvia direto. Decorava lentamente todas as letras. Naquele tempo,
os álbuns mais legais vinham com encarte e letra das músicas. Adorava tais
encartes. Meus joelhos tinham uma dor desgraçada naquele tempo. O médico disse
que não havia remédio, era uma dor causada pelo crescimento. Fiquei com medo de
crescer demais nesse tempo, e ter muita dor.
De vez em
quando, tomava um melhoral infantil. Não tirava a dor, mas aliviava. Tomei
melhoral até um médico dizer que eu devia parar com isso, pois já era adulta.
Mesmo sem entender a lógica, eu parei. Odeio esse meu lado "pau
mandado". Vou obedecendo. Depois a testa franze e começo a me perguntar:
por quê? Pode ser que eu mude de ideia. Mas meu primeiro instinto é de capacho,
de dizer sim.
Só meus
cabelos dizem não. Chorei muito na infância ao descobrir que não ia ser loira.
Tinha uma teoria que, quando as pessoas cresciam, antes de se casar, ficavam
loiras. Quando soube que ia ser morena do cabelo enrolado para sempre, chorei.
Minha mãe informou que não adiantava chorar, e que estava cheio de mulher
morena bonita. Sabia que ela estava me consolando.
Cabelos e
postura. Não, eu agradeço muito a cabeleireira e digo, pela décima vez, que não
quero uma escova de chocolate para alisar meus cabelos. Vou aparar as sobrancelhas
porque está na moda, e escuto – com insistência – uma nova oferta dessa tal escova.
Será que ela fica incomodada com meu cabelo, ou pensa mesmo no dinheiro? Já não
ligo em parecer feia, pode ser engraçado.
Engraçado
como quando meu namorado brinca comigo de virar estátua, com meu olhar de
Medusa. Minha cabeleira transformada num ninho de serpentes. Invariavelmente
isso acontece quando estamos na praia. Entro no mar, depois bate o vento... Rio
muito, ele faz poses de estátua engraçadas. Juro que, da próxima vez, vou levar
um pote de creme para abaixar a juba.
Tem horas
que ele me chama de Bethânia, pois fico a cara da cantora brasileira (com seu
cabelo armado).
Quanto mais
creme para abaixar o cabelo passo, mais arrepiado ele fica. Não sei qual é a
lógica que me faz continuar passando o creme. Talvez seja o medo de não tentar
mais nada. De ser meu cabelo, o confuso do meu cabelo, o assustador do meu
cabelo.
Mesmo com
um aspecto terrível, ele é macio, é cheiroso. Medo de perder o cabelo.
Cabelos e
sonhos. Quando era jovem sonhava ir a Moçambique e, agora, já nem consigo
sonhar direito. Fica faltando uns pedaços. Tenho medos. Mais cabelos que medos,
ainda bem.
O único
alívio real para minha dor era esfregar os dois joelhos no tapete, bem peludo,
que havia em casa. Na realidade, eu imitava o cachorro – que fazia o mesmo. Talvez
ele sentisse prazer com aquela esfregada. Sabedoria animal.
Não sei o
que fazer. Tem horas que me dá vontade de pintar os cabelos de azul. Mas acho
que, com tantos olhares, cansaria. E a trabalheira que deve dar fazer um cabelo
azul. Quando era pequena, as mulheres usavam bobes no cabelo. Lembro que fiquei
super feliz quando consegui dois bobes para mim: um azul e outro verde. Eu
enrolava minha franja e dormia com aquilo. Meus irmãos riam de mim, falavam que
eu estava assustadora, que marido nenhum ficaria comigo quando me visse assim.
Nem ligava, pois achava o máximo participar do mundo encantado das mulheres, e
acabava rindo com meus irmãos menores. Também não queria casar, só queria ficar
com o cabelo bonito.
Dizem que, dependendo
do lugar, o cabelo muda. Não viajei o suficiente para saber, mas será possível
meu cabelo ficar ainda mais arrepiado e complicado do que já fica? Acho
difícil. Dessa perspectiva, só pode melhorar.
E como
seria em Moçambique? Seria um pouco melhor ou um pouco pior; mesmo isso
parecendo improvável. Teria saudades de tudo, ou saudades de muito pouco.
O que posso
dizer para você que já não deseja vir ao Brasil, pelas notícias que vê? Bem
diferente do noticiário, não posso dizer que está bom. Tudo ainda se parece com
a música do Chico Buarque que ouvia naquele tempo, e que ficou tocando na minha
cabeça depois que li suas mensagens falando de irmos a Moçambique, e de você
não querer vir mais ao país. Tudo mudou e nada mudou, o cenário é o mesmo da
letra: aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, choro, rock'n'roll,
a coisa aqui tá preta, muita mutreta para levar a situação, que a gente vai
levando de teimoso e de pirraça, é pirueta pra cavar o ganha-pão, que a gente cava
só de birra, só de sarro, que a gente engole cada sapo no caminho, e ninguém
segura esse rojão.
Ajeito o
cabelo, ninho de serpentes, e ele diz que não adianta, é meu olhar que o
petrifica.
Depois a
gente dorme abraçado. Ele com a mão no meu cabelo. Dá uma paz. Sempre lembro o que
o dermatologista disse: são células mortas, não se preocupe com seu cabelo. Mas
é que essas células mortas parecem tão vivas, expliquei a ele. Depois percebi:
apesar de mortas, são minhas células, partes da minha essência. E minha morte também
será minha, uma parte importante da minha vida.
Agarrada ao
cabelo morto-vivo, brancos vão surgindo e, se puxar, nascem dois fios novos
para cada um que se arranca.
Outro dia
tive um pesadelo que estava ficando careca. Acordei super assustada. Olhei no
espelho. Tenho muito menos cabelos do que antes. Menos sonhos também. Menos
tempo para sonhar. Já não há mais banhos de sol demorados, nem trajetos longos de
ônibus que me permitam sonhar. Meu tempo bem aproveitado está sem sonhos, só
agora percebo. E o sonho de Moçambique já está ficando amarelado, como o papel
branco há tempos guardado na gaveta. Meus cabelos branqueando, os problemas
crescendo. Resta-nos uma esperança crítica. Ela é como uma lua bem fininha, no
céu de nossos países. Resta-me esse cabelo atrapalhado, esses sonhos que sonhei
quando tinha tempo de sonhar. E isso é muito, sei que é.
Acho que, em
meus sonhos, já sonhei com você aqui, amiga, mas sem que isso fosse um castigo
para ti. É difícil imaginar o que poderia acontecer de bom para que você
sentisse ânimo de pisar em nossa terra, tal é o cenário político apresentado. Ao
pensar em mim, meus filhos e meus amigos aqui no Brasil, penso na tal esperança
crítica, mas não como uma alternativa. Lembro da música e, apesar dos meus
cabelos brancos, não faz tanto tempo que há sementes germinando, que há crianças e
jovens com tempo de sonhar. Nós ainda nem fomos para Moçambique, nessa missão
de paz que sonhamos.
Você já viu
que não posso te aconselhar com seu cabelo. Já fico com vontade de rir,
imaginando a moça me oferecendo a tal da escova de chocolate. Imagino eu bem
velhinha, ela também velhinha, continuando a oferecer o tratamento e eu
negando. Cabelos que não sabem de sonhos, nem de olhares, nem de tristezas.
Cabelos como raízes lunares, como anteninhas, como países. Cabelos políticos,
cabelos politizados. Cabelos como mensagem.
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