quinta-feira, 5 de março de 2015

Uma aventura assustadora

Por Amilcar Neves*

 
Foi parar dentro de uma biblioteca, coisa inimaginável para ele. Não tinha nada o que fazer ali, não tinha o menor interesse pelas coisas guardadas naquele prédio enorme nem, menos ainda, pelo conteúdo daquelas coisas, sempre louvado, esse infindável conteúdo, como o sumo da sabedoria, do conhecimento e da vida, vejam lá se isso é possível, condensar a vida nas páginas dos livros. Nem que fossem livros eletrônicos.
 
E era exatamente isso que debatiam naquele momento: o futuro das obras literárias num cenário de confronto surdo entre o livro impresso e sua versão já vitoriosa em "bits & bytes". Curioso é que nunca ouvi ninguém combater o livro em papel, considerava Manoel Osório com seus botões, nem aqui, hoje, agora, nem em qualquer outro lugar, pelos prejuízos que causa à natureza, grande responsável, o livro juntamente com os jornais impressos, pelo desmatamento do planeta e da Amazônia.
 
Não, o pessoal só tem elogios para essas resmas de folhas grampeadas, costuradas, coladas ou o que seja. Nunca me interessei por livros e, sinceramente, jamais precisei deles nem me fizeram eles falta alguma.
 
Assim divagava Manoel Osório durante a mesa-redonda na Biblioteca Universitária enquanto professores doutores, sentados a uma comprida mesa retangular, discutiam apaixonadamente o sexo dos anjos. Mais produtivo e útil, talvez, se discutissem o sexo entre anjos.
 
Nunca poderia supor que um dia se encontraria em tal situação, dentro de uma biblioteca, circunstância que devia debitar a Mônica, sua gostosa amiga e apetitosa vizinha cujo casamento com Eduardo vinha se desfazendo a olhos vistos. Estava ali pelas fabulosas pernas de Mônica, por nada mais.
 
Interessada em Literatura e seus meios de suporte, Mônica teve o desprazer de receber uma negativa de Eduardo, que se recusou a acompanhá-la pelas alamedas escuras e cada vez mais perigosas da Universidade (pelos perigos das alamedas da vida, em verdade). Com isso, Manoel Osório gozou o prazer de lhe fazer companhia naquele evento cultural de caráter tão erudito.
 
Encurtando a conversa: ao final da discussão, e fazia calor no recinto, Manoel Osório levantou-se entusiasmado com as agradáveis e estimulantes perspectivas sugeridas pelo retorno através das aleias escurecidas ao lado de Mônica e esqueceu o blusão de fibra sintética e marca famosa no encosto da cadeira que ocupava, perda que somente foi perceber horas mais tarde.
 
Como era final de semana, só pôde ir atrás do seu agasalho na segunda-feira, ocasião em que o encontrou bem de saúde e bem disposto no lugar mesmo em que o largara. Vestiu-o, pois já fazia frio na rua, para horrorizar-se na hora: tinha a nítida e incômoda sensação de que sabia tudo sobre escritores e seus livros.
 
Aquela imersão da blusa por dois dias em um ambiente que destilava Literatura por todos os lados...
 
Antes que o mal se propagasse, Manoel Osório tratou de mandar lavar a peça de roupa contaminada. Na quarta-feira tudo estava resolvido e a vida voltava aos trilhos, à rotina habitual, a salvo de sobressaltos.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 01.06.11

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