quinta-feira, 12 de março de 2015

Havia uma confusão por ali

Por Amilcar Neves*
 

Da última vez em que o feriado de 15 de Novembro caiu numa segunda-feira, Mônica fez o que gosta de fazer logo cedo em toda manhã ensolarada: abrir de par em par as janelas do seu quarto, na ampla e aconchegante casa em que mora com Eduardo, de quem está se separando depois de tantos e tantos anos de vida comum (embora planejem continuar a viver sob o mesmo teto, porém com vidas independentes e autônomas, a uni-los apenas os filhos, todos residindo no exterior), abrir as janelas do quarto que ainda divide com o quase ex-marido e fruir a beleza do quintal dividido, atrás da residência, em áreas harmônicas de jardim, horta, pomar e floresta, aspirar o perfume inebriante das flores multicoloridas enxameadas de abelhas diligentes a polinizá-las com fervor, apreciar o progresso rápido que sempre apresentam as hortaliças, legumes, verduras e especiarias que cultiva nos canteiros alinhados com capricho, gozar o alarido gentil dos pássaros entre as frutas maduras que lhes dão alimento e confiança em mais este dia todo em louvor de Maria e deixar-se acariciar pela brisa fresca intumescida de essências vegetais naturais que o vento matinal extrai delicadamente das árvores altaneiras que sombreiam a manhã resplandecente de luminosidade, esperança e calor, tudo isso sob as bênçãos generosas e perdulárias do sol magnífico que desponta na fímbria do horizonte logo ali à frente. É assim que Mônica inicia sua jornada cotidiana, é assim que inaugura cada dia da sua vida repleta de incontáveis satisfações pessoais.
 
Naquele dia específico, entretanto, o que Mônica viu no seu quintal foi um povaréu reunido como se houvesse ali uma festa em andamento. Pior: era uma gente miúda como pigmeus que chegava a ser verde de tão escura. Como se fosse uma assembleia de assustadores marcianos. Assustada, virou-se para o quarto sem despregar os olhos daquele povo cujas reais intenções ela desconhecia e gritou por Eduardo. No ato, lembrou-se que Eduardo viajara para Brasília há cinco dias.
 
Do interior da casa brotava o burburinho de gente se despedindo: o pessoal que sobrara da festa da véspera e que começava a ir embora.
 
Mônica alcançou o celular no criado-mudo e ligou para a única pessoa em quem podia efetivamente confiar, o amigão e vizinho Manoel Osório. Assustada, percebeu que o telefone dele chamava ali no banheiro da suíte do casal.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 17.11.10

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