Por Amilcar Neves*
Acordou e, como de hábito, saiu da cama e foi até o
banheiro, percurso conhecidíssimo, capaz de fazer no escuro, de olhos fechados.
Como, de fato, muitas vezes fez, naquelas de continuar dormindo quando se
acorda com urgências noturnas.
Não foi nada diferente, desta feita. De relance, percebeu
um par de pernas magníficas deixadas à mostra pelo lençol que escorregou para o
lado: pernas longas, elegantes, perfeitas, que muito lhe lembravam pernas
familiares, as pernas de Mônica quando se apresenta de "short"
curtinho na churrasqueira da casa deles, dela e de Eduardo, que ele amiúde
frequenta. Percebeu as pernas na cama de onde acabara de levantar e pensou
consigo, a continuação do meu sonho de agora mesmo, um sonho atribulado que lhe
vinha em fragmentos à consciência.
Por isso, por saber tratar-se de um sonho, não se deteve
por causa das cobiçadas pernas (não cobiçava propriamente a mulher do próximo,
apenas uma fração dela) e rumou para o banheiro. Apesar dos olhos turvos e do
peso que sentia na cabeça, o ar era tépido e perfumado na penumbra da alcova
habitual. Restos de lembranças da festa da véspera confundiam-se com retalhos
dos sonhos generosos que tivera, de tal sorte misturados uns com os outros que
não conseguia mais distinguir a realidade da fantasia. Talvez porque tudo
fosse, quem sabe, uma confusão só.
No banheiro, também num procedimento automático, pelas
tantas mirou o espelho, e era o espelho de Eduardo no banheiro de Eduardo.
Mirou o espelho porém era como se não estivesse exatamente mirando-se ao
espelho, pois havia uma incômoda defasagem entre seus gestos e as imagens que o
espelho devolvia. Como em certos filmes com falha de sincronia entre os
movimentos da boca e o som que se ouve: o sujeito começa a falar e o som
correspondente sai um pouco depois de os lábios se mexerem, de tal forma que,
terminada a imagem da fala, a voz ainda se demora completando a frase. Algo
muito incômodo, claro, todo mundo já viu isso.
Só que, no caso, o assincronismo se dava entre ele e o
espelho, o que é infinitamente mais terrível e assustador. Levantou a mão
direita e o espelho gastou alguns milésimos de segundo até levantar a mão
esquerda da imagem. Como um espelho lento, muito carregado.
Voltar para a cama de imediato, decidiu Manoel Osório.
Mas havia um sério problema a enfrentar: e se aquelas pernas não estiverem mais
lá?
*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 24.11.10
Nenhum comentário :
Postar um comentário