quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ingênuo, eu pensava que a verdade bastasse

Por Amilcar Neves*



Estimada Leitora, caro Leitor,

Precedendo a minha crônica habitual, tomo a liberdade de reproduzir uma mensagem, que me pareceu pertinente ao assunto de hoje, despachada outro dia pelo escritor Domingos Pellegrini, a qual me foi repassada pela Maria Alice, minha filha, londrinenses ambos. O anexo - o livro - do Pellegrini igualmente segue pendurado no meu texto.

Perdoem-me os que já viram, leram e receberam tudo isso: é que suponho que um ou outro de nós não viu, não leu ou não recebeu o livro digital.
 
Grato pela sua prestimosa atenção, que muito me honra e envaidece.
 

 

15.10.2013
Olá, sou Domingos Pellegrini e, enviando o livro em anexo, Passeando por Paulo Leminski, espero contribuir para que o Brasil não seja o país das biografias chapa-branca.
Em junho fui convidado pela Editora Nossa Cultura para escrever a biografia de Leminski, de quem fui amigo. O editor me afirmou que fui escolhido de comum acordo por ele e pelas herdeiras de Leminski, com quem seriam divididos os direitos autorais e a quem os originais seriam submetidos.
Inicialmente aceitei, honrado, mas logo me dei conta de que a tarefa me privaria de duas condições essenciais para uma escrita criativa condizente com Leminski: a paixão e a liberdade. Além disso, já havia uma biografia sua, e eu teria ou de sugar informações dela ou buscar penosamente novas informações talvez não tão relevantes ou interessantes.
Assim, resolvi desistir da empreitada antes de assinar contrato - mas continuei a ter lembranças de Leminski, tantas que resolvi escrever não exatamente uma biografia, mas uma mistura de minhas memórias com ele e necessárias observações críticas.
Escrevi em poucas semanas, apaixonado, e a Editora Record se interessou em publicar - desde que com autorização das herdeiras, pois, sem isso, toda editora brasileira hoje teme ter prejuízo com a publicação embargada judicialmente.
Como as herdeiras negaram autorização, resolvi colocar o livro na internet, esperando honrar a memória e a obra de meu amigo.
E desde já autorizo que o livro seja reproduzido e divulgado de qualquer forma.
Grato!
Domingos Pellegrini
 

Ingênuo, eu pensava que a verdade bastasse


Suponhamos que, certo dia em 1919, alguém tenha comprado um exemplar do jornal O Estado, de Florianópolis. A folhas tais, terá encontrado um texto não assinado, misto de crônica, crítica de arte e matéria jornalística, que o interessou a ponto de fazê-lo recortar e colar o artigo em um caderno escolar. Esse texto, de suposto título A exposição do sr. Hantz, poderia terminar assim, na ortografia da época:

"Ha aqui, em Florianopolis, um pintor modesto e pobre que, pela sua maneira candida e simples merece uma referencia especial: o sr. Eduardo Dias. Este artista nosso, mau grado os sarcasmos do sr. Guttmann Bicho, tem uma linda e commovente virtude: pinta scenas, recantos ilhèos com tão santa e pura sinceridade, que, por isto mesmo, ninguem lhe da o apreço que devia."

Os dois personagens citados foram e são figuras públicas por suas notórias atividades nas artes plásticas: Dias local, Bicho um pintor nacional. Pois se você pinçasse do artigo essa característica comportamental do Guttmann, cruzasse a informação com outras disponíveis e fizesse disso um texto de ficção, provavelmente seria processado por algum Bichinho, neto do Bicho pintor, que alegaria danos morais insuportáveis, pelos quais pediria "justa indenização", ou seja, grana mesmo. O meritíssimo juiz possivelmente escreveria na severa sentença condenatória coisas como "Apesar da intransmissibilidade dos direitos da personalidade, evidente que os descendentes podem defender a imagem do ente querido já falecido, pois, quem ainda vive, sofre os efeitos das boas ou más qualidades atribuídas aos que já se foram" e, mais adiante, tornando transparente a essência do julgamento, "O fato é que, independente da veracidade das informações e das respectivas fontes, houve excesso por parte do réu na forma como Galdino Guttmann Bicho foi descrito".

Ao final, você ainda poderia ser abatido por uma negação pretensamente axiomática: "Não se pode aceitar, pois, que um livro de ficção contenha palavras de desrespeito a cidadão que, de fato, existiu."

Em resumo: os vivos sofrem se forem atribuídas más qualidades aos seus mortos, o que autoriza os primeiros a defender a imagem dos segundos independente da veracidade das informações e das fontes, pois não será dado a um livro de ficção conter palavras de desrespeito a gente que de fato existiu.

O exemplo acima (hipotético?) foi desenvolvido para obras de ficção histórica, mas está sendo exaustivamente aplicado às biografias - e, o que é pior, como no caso de um livro sobre Paulo Leminski, aplicado a novas edições de biografias anteriormente autorizadas. De repente, os herdeiros, como se fossem donos da vida do falecido, ou o próprio biografado, deixam de gostar do que gostaram e suprimem do patrimônio nacional parte da memória coletiva, parte da nossa História. Proíbem biografias que não sejam previamente censuradas ou exigem participação nas vendas. Aplaudem a hipocrisia.

Agora, enfim assoma à cena a ministra da Cultura, Marta Suplicy, declarando-se contrária à autorização para biografar figuras públicas (como já o fizera sua antecessora no cargo, Ana de Hollanda, irmã do Chico que quer a censura). Diz ela: "Minha opinião caminha para o apoio à liberdade de expressão, com multas mais vultosas aos autores que infringirem a verdade e a imagem do biografado". E aqui mora, de novo, o grande perigo: qual imagem do biografado? A que ele faz de si? Verdade e imagem em geral serão antagônicas.
 
'Passeando por Paulo Leminski', Domingos Pellegrini - DOWNLOAD
'A exposição do sr. Hantz', O Estado, 1919 (Imagem) - CLIQUE AQUI
 
* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 23.10.13

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Barulhos da Casa

Por Fabio Ramos
 
 
 
 
porta
rangendo
 
vibrações da
janela
 
sino
dos ventos
em ação
 
torneira
que
pinga
 
tique-taque
do relógio cuco
 
bruxismo da
esposa
enquanto dorme
 
chinelo
se movendo de
madrugada
(sozinho)
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Pássaro Azul

Por Denise Fernandes
 
 



Quando chego ao fundo do meu poço, ele voa.
Magnífico elefante da minha angústia e risonho;
o pássaro azul não conhece tristeza.
 

Sempre só, ele só sonha
e o mundo é para ele
a vertigem do sonho.
 

Ele é uma mina de ouro
azul plácida.
 

Pleno de encantos,
não canta,
não agride,
não impele.
Vinte anos são para ele o mesmo que
um segundo.
 

Lilás ou verde,
não importam.
 

Ele não tem passado,
é só futuro,
pássaro da imaginação.
 

Sem aura, sem risco
um só tom dissonante e agudo.
 

espelho de mim e buraco.
 

nem livre, nem absoluto.
 

Apenas um pássaro sem pensamento,
sem destino.
Um louco oco oportuno
amigo pássaro

 
sagrado azul.
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

interpretação de sonho

Por Ana Paula Perissé
 

Imagem: "Díade ou Vagalumes",
de Ana Paula Perissé


                                          têm dias
                                          que o futuro
                                          sonha o mundo
                                          como o menino
                                          de todas as guerras

                                          e entre o morto
                                          e o ideal
                                          não há face
                                          que desvele mais
                                          do que o simples
                                          existir-mos

                                          (à procura de sermos)

                                          1´sonho
                                          ou a utopia esquecida
                                          é o insuficiente do excesso
                                          em brutal aparição
                                          (desconhecida)

                                          coxia de zumbis
                                          .
                                          .
                                          .
                                          açucarados.


 


                                          Desacordem!

domingo, 27 de outubro de 2013

Anis e Alcaçuz

Por Oswaldo Antônio Begiato
 

 
 
                                                           Há palavras bem ditas.
                                                           Há palavras mal ditas.
                                                           Há palavras não ditas;
                                                           essas são as sensatas.
 

                                                           Ora, a mulher que amo
                                                           tem beijos com gosto
                                                           de anis-estrelado:
                                                           - Quando me beija
                                                           viro céu fragrante;
                                                           tem beijos com gosto
                                                           de raiz de alcaçuz:
                                                           - Quando me beija
                                                           lacra-nos insanos.
 

                                                           Coerentes, guardamos
                                                           as palavras medidas
                                                           sem nossas pronúncias.
 

                                                           Tiramos a palavra
                                                           da boca, um do outro.

sábado, 26 de outubro de 2013

Casa Caiada

Por Meriam Lazaro
 

Imagem: Bia Moreira


                      Nasci velho, carregando a memória do mundo.
 
                      Manto roto, riso sério. Lanterna de papel descendo pelo rio.
 
                      Entre pião e redemoinho, aprendi a ser menino.
 
                      Não guardei saudade da terra natal, sonhos de liberdade,
 
                      Nem a salvação danada.
 
                      Mais que nada, fui tropeço em carnavais.
 
                      Boia-fria em canaviais e facas!
 
                      Para me perder do que não fui não conto mais os anos.
 
                      Já não sofro.
 
                      Também não morro.
 
                      Nem espero palmas à porta.
 
                      Camisetas numeradas, fogos de artifício, 
 
                      Rostos informes desfilam diante de olhos de quem pouco vê.
 
                      Ouvidos moucos, gritos de gol. 
 
                      Filhos partidos. Sirvo à morte da casa caiada...
 
                      Na mesa, jarra sem girassóis.
 
                      Fuligem no teto, paredes altas.
 
                      Fantasmas obesos e censores:
 
                      –  Olha ele ali! Fez xixi nas calças.
 
                      Eu era um velho.
 
                      Hoje já nem sei.
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O Banho

Por Mayanna Velame
 


Tarde efervescente de sexta feira. O sol majestoso e único espalha seus raios entre as poucas nuvens no céu. O asfalto empoeirado abriga dezenas de carros, que tentam cruzar as ruas – todos de uma só vez.
 

Trânsito inerte, buzinas, motores, sirenes, vozes, calor. A cidade enlouquecida também enlouquece Elisa. Ela não suporta mais: está a bordo de um ônibus apinhado de homens e mulheres, vítimas da exorbitante quentura que resolvera castigar a terra.

Impaciente, Elisa tenta enxugar a nuca com um lenço bordado. De olho no relógio cingido, no pulso esquerdo, a moça vê os ponteiros sendo cúmplices das horas.

A temperatura aumenta, quarenta graus, e daqui a pouco todos estarão em chamas (inclusive Elisa). Pouco a pouco, ela sente o suor escorrer em suas costas, desespera-se, suspende cada vez mais as mangas de sua blusa branca, estilo social. Um passageiro gordo e bigodudo a imita.

De repente, o motorista acelera, o ônibus sofregamente volta a percorrer as ruas. Um vento morno e tímido faz suas mechas castanhas esvoaçarem no ar. Duas paradas a separam de sua casa. Feliz, levanta-se do assento, gentilmente pede licença. Seu corpo robusto e suado sente dificuldades em encontrar a porta de saída do coletivo.

O sufoco termina e, para andar ligeiramente, Elisa retira o par de sapatos de salto alto. Tempos depois, ela sobe uma ladeira íngreme, desabotoando a camisa. Uma das alças do sutiã branco é exibida. Passantes a observam com olhares maliciosos e diabólicos.

Já em casa, Elisa se despe rápida. O corpo nu procura o banheiro. Logo o chuveiro é ligado, gotas gélidas começam a umedecer os cabelos castanhos lisos. A água escorrida inicia seu passeio. Primeiramente, percorre o rosto corado, depois, banha o nariz arrebitado, para em seguida beijar a boca entreaberta, de lábios tentadores e carnudos.

Elisa se sente mais leve, suas mãos deslizam o sabonete com vontade: desde as costas até as nádegas rechonchudas, explora com ardor cada extensão de sua pele vistosa. O rêgo que se forma entre os seios volumosos serve como canal para o líquido transparente visitar outras partes do corpo.
 
O banho continua... Até que finalmente Elisa, agora regozijada, alcança uma toalha sobre a pia. E, andando, segue pelos corredores da casa com os pés molhados e descalços.
  

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um cheiro de vaca que vem do mangue

Por Amilcar Neves*
 


Que fique bem claro desde o início, pois não tolero ambiguidades: o que vem do mangue não é a vaca (que, aliás, continua por lá, na pacífica companhia de éguas, bois, cavalos, outras vacas, aves de quintal e mais bichos domesticados), mas o seu cheiro; quer dizer, o cheiro dela, da vaca, não o seu, aí, bem longe do mangue. A vaca, pois, está no mangue, embora, no caso, não tenha ido para o brejo. Nós é que, vez por outra, vamos para o brejo ou damos com os burros n'água. Coisas de uma natureza animal, talvez. Registre-se, a bem da verdade, que não escrevi "coisas de uma natureza, animal", o que teria conotação absolutamente diversa daquilo que efetivamente quis dizer.

Como é árduo escrever com precisão, amáveis criaturas!

Posta a vaca no mangue, e lá deixada por tempo suficiente, ela lá fará tudo o que faz qualquer vaca durante as sonolentas horas do seu dia: comerá, ruminará, caminhará sem pressa, espantará moscas e insetos que habitam as regiões pantanosas à beira do mar, olhará coisas sem foco (sem foco os olhos da vaca, não as coisas por eles, olhos vacuns, olhadas - os bois farão tudo isso, quase exatamente igual às vacas, porém com olhos bovinos) e, claro - vaca também é gente -, obrará suas incontroláveis necessidades fisiológicas. Sendo um animal, de tais necessidades se libertará ao ar livre, sem o menor pudor. De vez em quando vejo animais com camisas de time de futebol fazendo o mesmo despudoradamente.

Mas às vacas, que são o objeto da nossa presente análise: ao assim procederem, elas liberam um odor penetrante e característico. Trata-se do cheiro de bosta de vaca, e é justo esse que se desprende de um certo mangue e toma a avenida ao lado. No início era uma vaquinha aqui, um boizinho ali, mas agora a fazendola vai assumindo contornos nítidos: há um portão rústico, de madeira tosca, sem cerca, mais além um pedaço de cerca de tímidos mourões, sem portão, há baldes, cochos com ração, vasilhames de plástico branco, gente esquiva tratando o gado, uns cães de guarda, uma discreta cobertura contra as intempéries. O sítio avança sobre o mangue valendo-se dos depósitos de terra que as dragas que limpam os córregos locais periodicamente acumulam às suas margens, gerando plataformas cada vez maiores e mais secas onde o gado pasta imperturbável.

Daí o cheiro de vaca que hoje vem do mangue. Daqui a uns poucos anos alguém dirá que aquilo há muito já era uma fazenda, publicará nos jornais uma foto aérea datada, de página dupla em cromo brilhante, provando essa "verdade", o que justificará plantar ali uma revenda de carros e, depois, um shopping center pleno de grifes, coca-colas e hambúrgueres.

Não posso aqui dar nomes aos bois, isto é, dizer que manguezal, que fazendola, que shopping e que investidores são esses porque alguém poderá alegar judicialmente que estou esboçando uma biografia não autorizada e as consequências serão desastrosas (mas apenas para mim, não para os leitores nem para as vacas que produzem seu odor animal).

Aliás, tal odor em muito se parece ao cheiro que emana das ideias defendidas pelo grupo Procure Saber, que batalha abertamente contra o exercício de cidadania que são as biografias de figuras públicas, grupo em que, lamentavelmente, dissolvem suas brilhantes histórias os músicos Caetano Veloso, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Djavan. Não é o caso de Roberto Carlos: este, faz tempo, já escancarara sua intolerância obscurantista.

* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 16.10.13

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Os Opostos

Por Fabio Ramos
 
 


Bárbara
Paz
e
Ruy Guerra
 

Eufrásia Teixeira
Leite
e
Eliane Caffé
 

José
Lins do Rego
e
Claudia
Roquette-Pinto
 

Clodomiro Amazonas
e João Pernambuco
 

Nara
Leão e Edson
Cordeiro
 

Frederico
Porta
e
Juca
Chaves
 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Ecos

Por Denise Fernandes
 
 


Fecha-se a porta.
 
Pensando bem, ver a lua brilhando nos fez melhores.
 
Já não temos esperança política. Só nos resta um pouco de floresta. E minha fé, no caso sem Bíblia, sem evangelho.
 
Me parece que de alguma forma cada dia teremos menos, porque somos ecos de todos.
 
O tempo congelado nos nossos bons momentos nos expande. Inútil tentar prender a quantidade do tempo. Estamos com a qualidade de nós, não estamos sós quando estamos. A memória é esse chão de vidro. E meu amor é a possibilidade, ar, aéreo ar, água de rio, água de mar.
 

domingo, 20 de outubro de 2013

Altivez

Por Oswaldo Antônio Begiato
 

 

                                   Depois de percorrer
                                   meus pensamentos confusos,
                                   rebentado e escasso,
                                   termino de escrever
                                   a poesia nova,
                                   rebento indócil
                                   que me rasga todo dia.
                                   Olho pra ela e dela rio. Sem muita razão.
 
 
                                   E quando vou repousar
                                   deixando-a no livro aberto
                                   de quem a lê sem sofrimentos
                                   com os olhos gordos,
                                   ela livre e de ninguém,
                                   fica toda cheia de zombas.
                                   Olha para mim e de mim ri também. Com razão.
 
 
                                   Deixamos assim
                                   os pratos da balança  
                                   no mesmo nível. E o fiel com ciúmes.