quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um cheiro de vaca que vem do mangue

Por Amilcar Neves*
 


Que fique bem claro desde o início, pois não tolero ambiguidades: o que vem do mangue não é a vaca (que, aliás, continua por lá, na pacífica companhia de éguas, bois, cavalos, outras vacas, aves de quintal e mais bichos domesticados), mas o seu cheiro; quer dizer, o cheiro dela, da vaca, não o seu, aí, bem longe do mangue. A vaca, pois, está no mangue, embora, no caso, não tenha ido para o brejo. Nós é que, vez por outra, vamos para o brejo ou damos com os burros n'água. Coisas de uma natureza animal, talvez. Registre-se, a bem da verdade, que não escrevi "coisas de uma natureza, animal", o que teria conotação absolutamente diversa daquilo que efetivamente quis dizer.

Como é árduo escrever com precisão, amáveis criaturas!

Posta a vaca no mangue, e lá deixada por tempo suficiente, ela lá fará tudo o que faz qualquer vaca durante as sonolentas horas do seu dia: comerá, ruminará, caminhará sem pressa, espantará moscas e insetos que habitam as regiões pantanosas à beira do mar, olhará coisas sem foco (sem foco os olhos da vaca, não as coisas por eles, olhos vacuns, olhadas - os bois farão tudo isso, quase exatamente igual às vacas, porém com olhos bovinos) e, claro - vaca também é gente -, obrará suas incontroláveis necessidades fisiológicas. Sendo um animal, de tais necessidades se libertará ao ar livre, sem o menor pudor. De vez em quando vejo animais com camisas de time de futebol fazendo o mesmo despudoradamente.

Mas às vacas, que são o objeto da nossa presente análise: ao assim procederem, elas liberam um odor penetrante e característico. Trata-se do cheiro de bosta de vaca, e é justo esse que se desprende de um certo mangue e toma a avenida ao lado. No início era uma vaquinha aqui, um boizinho ali, mas agora a fazendola vai assumindo contornos nítidos: há um portão rústico, de madeira tosca, sem cerca, mais além um pedaço de cerca de tímidos mourões, sem portão, há baldes, cochos com ração, vasilhames de plástico branco, gente esquiva tratando o gado, uns cães de guarda, uma discreta cobertura contra as intempéries. O sítio avança sobre o mangue valendo-se dos depósitos de terra que as dragas que limpam os córregos locais periodicamente acumulam às suas margens, gerando plataformas cada vez maiores e mais secas onde o gado pasta imperturbável.

Daí o cheiro de vaca que hoje vem do mangue. Daqui a uns poucos anos alguém dirá que aquilo há muito já era uma fazenda, publicará nos jornais uma foto aérea datada, de página dupla em cromo brilhante, provando essa "verdade", o que justificará plantar ali uma revenda de carros e, depois, um shopping center pleno de grifes, coca-colas e hambúrgueres.

Não posso aqui dar nomes aos bois, isto é, dizer que manguezal, que fazendola, que shopping e que investidores são esses porque alguém poderá alegar judicialmente que estou esboçando uma biografia não autorizada e as consequências serão desastrosas (mas apenas para mim, não para os leitores nem para as vacas que produzem seu odor animal).

Aliás, tal odor em muito se parece ao cheiro que emana das ideias defendidas pelo grupo Procure Saber, que batalha abertamente contra o exercício de cidadania que são as biografias de figuras públicas, grupo em que, lamentavelmente, dissolvem suas brilhantes histórias os músicos Caetano Veloso, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Djavan. Não é o caso de Roberto Carlos: este, faz tempo, já escancarara sua intolerância obscurantista.

* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 16.10.13

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