Por Denise Fernandes
Mais perdida que cega em
tiroteio, carrego meus mil anos confusa. Meu neto me ajuda: no seu tempo não
tinha celular, vó... E o mundo funcionava sem celular, sem computador. O que
tinha no meu tempo, pergunta meu neto num tom preocupado: tinha máquina de
escrever e a televisão foi surgindo aos poucos. Lembro quando fui assistir
televisão a cores na casa da vizinha. Ela não depilava a perna sempre. No dia
de assistir, tinha os penicos da perna dela na minha. Nem sempre colo e
tecnologia são tão legais. Não tinha controle remoto. Lembro que eu gostava de
assistir tevê pulando. Pulei muito. Só percebi que minha infância acabou quando
acabou essa pulação em mim. Comecei a pesar as toneladas de alguma coisa que eu
não sei o que é.
Passa pela cabeça do meu neto que viver não
era tão legal sem celular, sem computador. Explico que era super bom: dava para
namorar, ter amigos, tudo mesmo. Dava pra fazer tudo sem celular. Meu neto me
olha com aquela cara de quem não põe muita fé em mim. Ou é uma fé diferente.
Sorte que tenho em casa velhos papéis, a máquina de escrever a testemunhar um
tempo que existiu para mim.
Volto
a velhos rascunhos da máquina de escrever. "Diário do sete momentos
frágeis de vaguidão. As cores. Densas imagens. Eu sou antes de tudo, um
organismo. feito de pele, carne, sangue, osso. Dores e alegrias. eu sou um
pobre ser vivo. E sou um ser de transformação: uma metamorfose ambulante, um
verme. Uma lagarta enorme, e ele achou que fosse uma lagartixa. Esperança... esperança,
esperança, Esperança. Fico esperando que fluindo, leve-me a uma coisa boa: esse
rio, essa cauda, esse curso de palavras. É, meu amor, minha sina: que o pesado
se torne leve assim, como meu coração se abre aos poucos. Você penetra em mim.
Teu cheiro vai sendo o meu. Tua respiração invade toda meu corpo. Meus poros
são teus. Agora já é tão tarde, a lua está bem em cima do meu prédio, a rua ressente
a lua, a janela ser quebrada, o apartamento ressente a noite. Vagante, errante.
Do coração vêm aos olhos e se tornam lágrimas. Treme. Pulsação. De sangue, de
vento, do coração. A palavra que eu queria dizer, não disse. Laranja, pera,
maçã: abro uma porta, sou feita de coragem. Entrei pela porta que não abri.
Desejava tanto sair por outra. Meu destino: as portas que abri, e as que não
abri. Minha dúvida: faço ou não faço?" E anotei a mão: 23 a 25 de agosto
de 1983.
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