terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Mil Anos

Por Denise Fernandes

 

         Mais perdida que cega em tiroteio, carrego meus mil anos confusa. Meu neto me ajuda: no seu tempo não tinha celular, vó... E o mundo funcionava sem celular, sem computador. O que tinha no meu tempo, pergunta meu neto num tom preocupado: tinha máquina de escrever e a televisão foi surgindo aos poucos. Lembro quando fui assistir televisão a cores na casa da vizinha. Ela não depilava a perna sempre. No dia de assistir, tinha os penicos da perna dela na minha. Nem sempre colo e tecnologia são tão legais. Não tinha controle remoto. Lembro que eu gostava de assistir tevê pulando. Pulei muito. Só percebi que minha infância acabou quando acabou essa pulação em mim. Comecei a pesar as toneladas de alguma coisa que eu não sei o que é.

          Passa pela cabeça do meu neto que viver não era tão legal sem celular, sem computador. Explico que era super bom: dava para namorar, ter amigos, tudo mesmo. Dava pra fazer tudo sem celular. Meu neto me olha com aquela cara de quem não põe muita fé em mim. Ou é uma fé diferente. Sorte que tenho em casa velhos papéis, a máquina de escrever a testemunhar um tempo que existiu para mim.

         Volto a velhos rascunhos da máquina de escrever. "Diário do sete momentos frágeis de vaguidão. As cores. Densas imagens. Eu sou antes de tudo, um organismo. feito de pele, carne, sangue, osso. Dores e alegrias. eu sou um pobre ser vivo. E sou um ser de transformação: uma metamorfose ambulante, um verme. Uma lagarta enorme, e ele achou que fosse uma lagartixa. Esperança... esperança, esperança, Esperança. Fico esperando que fluindo, leve-me a uma coisa boa: esse rio, essa cauda, esse curso de palavras. É, meu amor, minha sina: que o pesado se torne leve assim, como meu coração se abre aos poucos. Você penetra em mim. Teu cheiro vai sendo o meu. Tua respiração invade toda meu corpo. Meus poros são teus. Agora já é tão tarde, a lua está bem em cima do meu prédio, a rua ressente a lua, a janela ser quebrada, o apartamento ressente a noite. Vagante, errante. Do coração vêm aos olhos e se tornam lágrimas. Treme. Pulsação. De sangue, de vento, do coração. A palavra que eu queria dizer, não disse. Laranja, pera, maçã: abro uma porta, sou feita de coragem. Entrei pela porta que não abri. Desejava tanto sair por outra. Meu destino: as portas que abri, e as que não abri. Minha dúvida: faço ou não faço?" E anotei a mão: 23 a 25 de agosto de 1983.

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