Por Amilcar Neves*
Era o seu grito de guerra quando voltava para casa algumas vezes por
mês, nos dias em que estaria de folga à noite do seu trabalho de
vigilância na Universidade: "Maria Amélia, eu te amo!" A vizinhança
chegava às janelas, abria as portas, debruçava-se sobre o muro baixo,
apoiava-se ao portão, ou melhor, à porteira que dava para o caminho de
terra batida pomposamente chamado Estrada Geral do Córrego Grande, pelo
qual o trânsito era escasso e as pessoas gastavam muita sola quando não
chovia. Não havia calçadas, apenas um capim que crescia onde o gado não
alcançava pastar.
"Maria Amélia, eu te amo!", e as pessoas riam
dentro das casas, e diziam: "O Moacir hoje não trabalha de noite!" E
vinham à rua para vê-lo passar alegre e feliz, tão leve e desoprimido
que até se diria que os pés não tocavam a poeira do chão, o que dava a
sensação de que cambaleasse quando, na verdade, ele flutuava.
Antes de, por fim, abrigar-se em casa, uma construção despretensiosa, porém
ampla, ventilada e iluminada erguida na parte da frente do terreno que
era um sítio, praticamente uma fazendola, havia que transpor a entrada,
um longo bambu atravessado a meia altura entre dois moirões da cerca com
o fim único de impedir suas vaquinhas de saírem para os campos em volta
e o gado alheio de apropriar-se do sustento da sua criação, comendo-o,
ou de servir-se das suas reses, cobrindo-as. Na hora de enfrentar o
obstáculo, soltava de novo: "Maria Amélia, eu te amo!" Jamais invertia a
ordem entre o vocativo e o afirmativo.
Em casa, Maria Amélia o
esperava com um chá de losna bem forte e a inevitável sopa de galinha
caipira proveniente das crias do quintal. No forno, o pão caseiro
fumegava, ávido por receber, nas fatias, camadas de nata batida ou de
manteiga fresca que não davam conta de consumir. "Maria Amélia, eu te
amo!" Não fossem a dedicação e o recato da mulher, poder-se-ia pensar
que o Moacir fizesse, por via das dúvidas, o que fazem hoje os
funcionários das empresas de segurança que, no cumprimento dos contratos
que elas mantêm com seus clientes, patrulham de motocicleta as suas
casas, apitando porém desde a esquina, com seu apito inconfundível, como
a dizer que não querem complicações com malfeitores de qualquer
espécie.
Havia sempre uma dificuldade considerável com o demônio
daquele bambu, nem tão alto que lhe permitisse transpô-lo por baixo e
nem tão baixo que o deixasse vencê-lo por cima. Mas, uma hora, sempre
havia de conquistar o acesso ao território sagrado: "Maria Amélia! Eu te
amo, viste, mulher?"
Em pouco tempo o progresso chegou: com
asfalto, carros, buracos, prédios e um mundo de pessoas estranhas que,
ele via, riam dele de uma maneira muito diferente da carinhosa saudação
dos seus vizinhos de toda vida. Ao lado da sua casa brotou de súbito um
monstruoso edifício apinhado de apartamentos amontoados. E seu grito de
guerra agora incomodava muita gente a um tempo só.
Para piorar as
coisas, há as comemorações, horas a fio, em dias de futebol. Torcedor
do Avaí de hastear bandeira, nas vitórias azuis a casa de Moacir se
enche com gente trazendo uma carninha, uma cervejinha, um foguetinho;
nas derrotas, o povo do Figueirense não para de passar com buzinas e
fogos. Um inferno! Será que esse pessoal não podia torcer por times de
verdade, do Rio, de São Paulo ou de Porto Alegre?
Por três vezes
chamaram a polícia para recolher aquele bêbado inconveniente que chegava
aos berros pelas ruas do bairro, que agora é residencial.
*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.10.11
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