terça-feira, 2 de junho de 2020

Louças

Por Denise Fernandes




(Para Bia, Cauê e Clodine)

Recebo convites para vários tipos de meditação. Temos cursos online, compras online, eventos online, paquera online. Mas a real meditação se faz na pia cheia de copos, pratos com molho, frigideiras onde algo se grudou. O real é o detergente, e a esponja de lavar louças (que fica suja rapidamente).

E lavando louças, a gente medita sobre a vida. Imagina se podia ter tido uma vida amorosa diferente, tomado outra decisão na vida profissional. Lavando louças a gente questiona a política, imagina uma economia suficiente.

Enquanto a gente lava uma boa pia de louças, dá tempo pra rezar um "pai-nosso", uma "ave-maria" e depois fazer uma jornada até Buda. De Buda, sai um caminho até o Islã, um tímido Bismillah, que me une ao sagrado.

Do outro lado do mundo, tem uma pia japonesa que vi na televisão. A mulher japonesa lava louças sem detergente, e os peixes comem os restos de comida dos pratos.

Aqui, vou trocando a cor dos detergentes e seus falsos aromas  com o único objetivo de arrumar a louça lavada no escorredor. Minha escultura diária de amor e esperança, minha mandala de areia. Só lavando a louça me aproximo do tao.

Antes de começar a pensar nas diferentes visões do mundo, já tenho a imagem da minha mãe lavando louças. E o barulho da água, dos talheres deitando no escorredor. Minha mãe disse: "Lava melhor a louça quem faz menos barulho". Por quê? "Você não precisa ter raiva da louça", ela disse.

Talvez um dia a gente perceba que não perdemos tempo lavando louças. Ganhamos com essa atividade um tempo que é força radical, porque é paciência e humildade. Se um dia você se sentir muito perdido, lave uma boa pia de louças. E se ache.

Lavar uma boa pia de louças é como subir uma montanha. É fácil e difícil ao mesmo tempo, árduo e prazeroso, individual e coletivo. Lavando louças você ganha consciência: da chuva, da água, do tempo, de você, dos seus amores. Enquanto você lava louças, descobre que pode mudar tudo, e que talvez não mude nada.

Assim como cresce o cabelo, mais forte que as ervas daninhas, está a louça se alastrando de novo na pia.

Enquanto lavo louças, uma árvore na floresta queima, e sinto daqui a sua dor; um bebê vem ao mundo, e sinto daqui a sua força. Vou lavando a louça, e percebendo que tenho uma vontade de correr, tipo "Forrest Gump". E sonho com um beijo imaginário. Viver é mais intenso quando a água escorre em outro prato, e o liquidificador me espera de molho, astuto, fazendo quarentena.

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