Por Rosimeire Soares
Em meio à miséria
urbana nítida, a multiplicação das células constituiu dois ao invés de um:
gêmeos morenos.
Agora eles eram dois
para dividir as desgraças, dissabores e desventuras daqueles que, mesmo sendo
dois, choravam as mesmas dores. A lama das chuvas de janeiro sufocou a vida de
quem lhes deu a vida.
Jogados à sorte,
criados pelos tios, os gêmeos precisavam admitir que eram dois quando dividiam o mesmo pão para, talvez, saciar a horrenda fome. Diante de humilhações
vividas, eles se chocam com a dura realidade: não são filhos de sangue, são
apenas duas bocas.
– São eles os culpados
das mazelas da família e do mundo – é o que esbravejam os tios, que assumiram
a guarda desses seres idênticos. Sempre
ouviram que eram o fracasso, a burrice aliada ao tormento. Eles nada são! Eles
tudo são! São incômodos dos ascendentes não “tão generosos” que os adotaram.
Naquele dia foram
enviados pelos tios ao centro da cidade para o trabalho de pedinte, mas se
depararam com mais uma agrura inesperada. Um numa direção e o outro na outra. O
desencontro. Eles se perderam um do outro. Um dos garotos procurou
desesperadamente o seu rosto projetado nas feições do outro. Procurou pelo
irmão, na certeza que, a qualquer momento, veria aquele sorriso inexpressivo sempre
despenteado e a cicatriz exposta no supercílio; resultado do caco de telha que
havia recebido há poucos dias durante a disputa por algumas latinhas para reciclagem.
Nada!
O horário de pico da
grande metrópole, ilustrado pela movimentação frenética de todos os seres que
disputavam espaço dentro dos metrôs, denunciava que o dia já findava. Mas o
outro eu – maneira como eles se referiam um ao outro, por notificar tamanha
semelhança física – não surgia.
Desanimado, resolveu voltar ao morro. Voltar para quê? Talvez o irmão tivesse
voltado antes, e assim o reencontraria e atenuaria a dor que lhe cortava o
peito. Subitamente atendeu a um impulso de seu cérebro. Ao invés de seguir por
mais quarenta minutos no metrô, desceu ali, rapidamente, sem antes se dar conta
com precisão de que região era aquela.
O outro eu poderia
não perdoá-lo por não voltar para casa, mas que penhor teria de que o irmão
voltara? Não queria saber, não poderia. Dividir os tormentos os amenizaria, mas
encarar os tios, sozinho, sem o dinheiro do “trabalho” do dia e ainda ser
submetido aos mesmos tratamentos, era tudo que ele não queria reviver. Já podia
imaginar o hálito que denunciava a embriaguez do tio, encarando-o bem próximo,
acusando-o de saltérios e proferindo-lhe xingamentos dos quais nem conhecia o
significado.
Nas calçadas e sob
pontes, sobreviveu. Viu a fisionomia da fome, do abandono, apresentaram-lhe a
droga mais acessível, pois sabia que a eterna e crescente dor já invalidava sua
condição de amar e sorrir. A solidão fez morada naquele coração que vivia entre
tantos corações. Dias que mais pareciam anos. Anos que mais pareciam décadas,
ou eram décadas? Perdera algumas noções, aprendeu a viver e conviver com a
escória da sociedade, com o lixo humano e ser um elemento desse sistema
excretor de seres.
Por várias vezes, sentia-se
humilhado, pulguento, leproso. Enquanto caminhava pelas calçadas, nas regiões
do pós-feira livre (principal fonte de alimento), se orgulhava de comer, sem
controle de qualidade, mas fresco.
Os anos chegaram. Uma
importante decisão: queria encontrar o
outro eu. E faria de tudo para fazer disso uma realidade. Ele, agora já homem,
queria rever o irmão. O que teria feito da vida? Teria voltado para casa?
Adquiriu maturidade para voltar ao morro e procurar pelos seus. – Eram seus? – ele
se perguntava, enquanto subia pelos becos. Podia rever alguns rostos conhecidos. Antes mesmo de chegar ao barraco de seus tios, já tinha a resposta:
– Não moram mais aqui. Faz
quinze anos que sumiram daqui.
Quinze anos? Esse era o
tempo – aproximadamente – que se perdera de seu irmão na praça. Teriam
desaparecido? Mas e seu irmão?
Ele se conscientizou de que
a rua, seu eterno lar, era para onde deveria voltar. Não tinha história, não tinha
origem. Os delitos a serem cometidos poderiam ser mais intensos, pois não tinha
que provar nada a ninguém. Precisava apenas viver, e manter seu vício. Uma
triste decisão!
O semáforo, lugar de
encontros. Ali, podia ver rostos bem maquiados e olhos que temiam sua presença.
Podia ver a ostentação do poder sob óculos escuros; atrás de vidros escuros. Ele
era visto. E se sentia como cocô de cachorro, aguardando para tornar-se esterco ali, sob aquele sol de
quarenta graus. Sentia-se a pior substância. Era o pior elemento. Precisava
sustentar seu vício...
Preparou-se para o “investimento”. Poupou
raciocínio, porque precisava agir e rápido. “Pode ser aquele”. Ao se jogar
armado sobre o vidro do carro que acabara de parar, em respeito à sinalização de
trânsito, foi enérgico. Anunciou suas intenções, mas estranhou, pois o homem
daquele carro o fitou corajosamente. Nada falou, mas permitiu-se chorar copiosamente. O infrator
possuía tom enfático, impactante e intimador. Porém, diante
da inércia do outro de tez morena e daquele urro de dor, decidiu olhá-lo. Que
face era aquela? Seria alucinação? Como poderia assaltar a si mesmo? O outro eu
em outra história...
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