domingo, 5 de agosto de 2012

Erudição

Por Érika Batista



“Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo. [1]

                                                                           
           
            O rapaz queria ser um erudito. Nascera pra isso. Até seu nome – Eugênio – parecia apontar-lhe esta sina. E ele tinha os dotes físicos e mentais com que a classe era estereotipada: magro, alto, levemente curvado, cabelos oleosos cobrindo a cabeça, dona de um cérebro prodigioso, com memória meticulosa e grande capacidade de concentração. Como toque final, uma bronquite leve e um belo par de óculos, arduamente adquirido no louvável hábito de ler as letrinhas miúdas.

            Mas Eugênio tinha um problema. Provavelmente com um nome científico pomposo interessante, em linguagem piegas era uma “alma de poeta”. Ele se interessava demais pelo belo, e o que era pior, não tinha coragem de dissecá-lo. Bem, ele ainda queria ser um erudito, e como tinha o apoio da família (que é o mais importante!) pensou que superaria sua fraqueza.

            Tentou primeiro aliar seus gostos com a pressuposta vocação. Começou pela música. Comprou um livro da mais pura teoria, 24 quilates. Leu-o de cabo a rabo (ou, como ele preferiria dizer, do título na lombada até as notas sobre o papel de impressão), e quando terminou sabia tudo sobre música. Quatro tempos, ligadura, Andantino (entre outros italianismos), colcheia – já podia encarar tudo isso de cabeça erguida. Um dia sentou-se ao piano, com uma partitura à frente e a família toda em volta. Seguiu as primeiras linhas sem erro – mas então fechou os olhos num frêmito de excitação e seus dedos começaram a correr pelas teclas quase aleatoriamente. Enquanto as palmas abalavam a sala, ele corou, perturbou-se e correu dali, com nojo de si mesmo. Falhara. Fora demasiadamente pessoal e espontâneo – sujeito a erros, portanto. Desistiu da música.

            Eugênio tomou fôlego e foi para a literatura. Engoliu toda a obra de Machado de Assis e ficou feliz por poder elogiá-lo – havia jurisprudência firmada para isso. E foi, e foi, e um dia chegou a Shakespeare. Separou Romeu e Julieta em fonemas, e arranjou palavrão mais feio que Capuleto – morfossintaxe – para pôr no tratado. Mas mesmo tendo-o feito in the original language, sentiu-se um assassino. Pegou todo o Dostoiévski e jogou-o no lixo. Era melhor esquecer a arte. Pelo menos por ora, não tinha frieza suficiente.

            Ele mergulhou no código Dewey. Nunca dormiu tanto em toda a sua vida, mas no fim sabia onde cada livro na biblioteca devia ficar. Só que Dewey acabou, e não havia possibilidade disso conferir-lhe um Nobel. Ele tentou então se especializar no ciclo das águas, com superávit de detalhes; porém outras pessoas já tinham se utilizado desse assunto para adormecer plateias. Estava muito abatido.

            Fez pesquisas na área da Física Nuclear. Entusiasmou-se bem, mas pouco antes de apresentar o trabalho lembrou-se de Einstein e da bomba H. Estremeceu e deixou cair café nas equações.

            Foi então para o deserto, escavar com escova de dentes à procura de fósseis. Depois de um tempo expulsaram-no da equipe, porque as histórias que inventava para os Australopithecus, a cujos crânios deviam pertencer os cacos encontrados, tinham um quê de sentimentalismo burguês.

            Eugênio ficou desalentado. Passou um mês em casa, na cadeira mais rígida, lendo só o Aurélião. Num momento de fraqueza, jogando a lógica de lado, fez como os dadaístas e abriu o dicionário a esmo. A palavra que saísse seria o tema da sua última pesquisa – e ele fingiu não ouvir os protestos do seu hábito científico, adquirido com tanto esforço.

            Saiu sapo. Eugênio mergulhou então num estudo profundo e complicado sobre as deficiências protéicas que uma dieta constituída somente da mosca Drosophila melanogaster poderia causar no ângulo do salto de um batráquio. Insuperável. Pôs logo mãos à obra (olhos aos livros e experiências seria mais correto), e como a avó deixou escapar umas pistas para a Academia Científica, ganhou alguns ajudantes e um convite para apresentar seu trabalho aos “caras”, quando concluído.

            No dia, chegou no prédio da Academia com seu termo mais bem amarrotado, cabelo duro de gel e óculos escorregando o tempo todo. Tinha tudo na ponta da língua, mas quando viu todos aqueles olhares sérios e meio arrogantes fixados nele, deu-lhe um ataque de agorafobia, ele arrancou as roupas e fugiu correndo.

            Não estava louco, não; era retirada estratégica. Tirou a ideia de um livro – O Seminarista, Bernardo Guimarães – que ninguém imaginaria que ele tinha lido.

            Assim que arranjasse roupas, ia procurar uma casa no interior mais isolado. E ia se chamar Carlos, nome simples, que podia virar Karl ou Charles quando ele começasse a pintar.


[1] Citação retirada do livro “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu.

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