Por Érika Batista
“Não, você não sabe, você não sabe como
tentei me interessar pelo desinteressantíssimo”. [1]
O rapaz queria ser um
erudito. Nascera pra isso. Até seu nome – Eugênio – parecia apontar-lhe esta
sina. E ele tinha os dotes físicos e mentais com que a classe era
estereotipada: magro, alto, levemente curvado, cabelos oleosos cobrindo a
cabeça, dona de um cérebro prodigioso, com memória meticulosa e grande
capacidade de concentração. Como toque final, uma bronquite leve e um belo par
de óculos, arduamente adquirido no louvável hábito de ler as letrinhas miúdas.
Mas Eugênio tinha um problema. Provavelmente com um nome
científico pomposo interessante, em linguagem piegas era uma “alma de poeta”.
Ele se interessava demais pelo belo, e o que era pior, não tinha coragem de
dissecá-lo. Bem, ele ainda queria ser um erudito, e como tinha o apoio da
família (que é o mais importante!) pensou que superaria sua fraqueza.
Tentou primeiro aliar seus gostos com a pressuposta
vocação. Começou pela música. Comprou um livro da mais pura teoria, 24
quilates. Leu-o de cabo a rabo (ou, como ele preferiria dizer, do título na
lombada até as notas sobre o papel de impressão), e quando terminou sabia tudo
sobre música. Quatro tempos, ligadura, Andantino
(entre outros italianismos), colcheia – já podia encarar tudo isso de cabeça
erguida. Um dia sentou-se ao piano, com uma partitura à frente e a família toda
em volta. Seguiu as primeiras linhas sem erro – mas então fechou os olhos num
frêmito de excitação e seus dedos começaram a correr pelas teclas quase
aleatoriamente. Enquanto as palmas abalavam a sala, ele corou, perturbou-se e
correu dali, com nojo de si mesmo. Falhara. Fora demasiadamente pessoal e
espontâneo – sujeito a erros, portanto. Desistiu da música.
Eugênio tomou fôlego e foi para a literatura. Engoliu
toda a obra de Machado de Assis e ficou feliz por poder elogiá-lo – havia
jurisprudência firmada para isso. E foi, e foi, e um dia chegou a Shakespeare.
Separou Romeu e Julieta em fonemas, e arranjou palavrão mais feio que Capuleto
– morfossintaxe – para pôr no tratado. Mas mesmo tendo-o feito in the original language,
sentiu-se um assassino. Pegou todo o Dostoiévski e jogou-o no lixo. Era melhor
esquecer a arte. Pelo menos por ora, não tinha frieza suficiente.
Ele mergulhou no código Dewey. Nunca dormiu tanto em toda
a sua vida, mas no fim sabia onde cada livro na biblioteca devia ficar. Só que
Dewey acabou, e não havia possibilidade disso conferir-lhe um Nobel. Ele tentou
então se especializar no ciclo das águas, com superávit de detalhes; porém outras pessoas já tinham se utilizado
desse assunto para adormecer plateias. Estava muito abatido.
Fez pesquisas na área da Física Nuclear. Entusiasmou-se
bem, mas pouco antes de apresentar o trabalho lembrou-se de Einstein e da bomba
H. Estremeceu e deixou cair café nas equações.
Foi então para o deserto, escavar com escova de dentes à
procura de fósseis. Depois de um tempo expulsaram-no da equipe, porque as
histórias que inventava para os Australopithecus,
a cujos crânios deviam pertencer os cacos encontrados, tinham um quê de sentimentalismo burguês.
Eugênio ficou desalentado. Passou um mês em casa, na
cadeira mais rígida, lendo só o Aurélião. Num momento de fraqueza, jogando a
lógica de lado, fez como os dadaístas e abriu o dicionário a esmo. A palavra
que saísse seria o tema da sua última pesquisa – e ele fingiu não ouvir os
protestos do seu hábito científico, adquirido com tanto esforço.
Saiu
sapo. Eugênio mergulhou então num estudo profundo e complicado sobre as deficiências
protéicas que uma dieta constituída somente da mosca Drosophila melanogaster poderia causar no ângulo do salto de um
batráquio. Insuperável. Pôs logo mãos à obra (olhos aos livros e experiências
seria mais correto), e como a avó deixou escapar umas pistas para a Academia
Científica, ganhou alguns ajudantes e um convite para apresentar seu trabalho
aos “caras”, quando concluído.
No
dia, chegou no prédio da Academia com seu termo mais bem amarrotado, cabelo
duro de gel e óculos escorregando o tempo todo. Tinha tudo na ponta da língua,
mas quando viu todos aqueles olhares sérios e meio arrogantes fixados nele,
deu-lhe um ataque de agorafobia, ele arrancou as roupas e fugiu correndo.
Não
estava louco, não; era retirada estratégica. Tirou a ideia de um livro – O
Seminarista, Bernardo Guimarães – que ninguém imaginaria que ele tinha lido.
Assim
que arranjasse roupas, ia procurar uma casa no interior mais isolado. E ia se
chamar Carlos, nome simples, que podia virar Karl ou Charles quando ele
começasse a pintar.
[1] Citação
retirada do livro “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu.
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