domingo, 12 de agosto de 2012

Vaidade

Por Érika Batista




Ela estava entediada. Casara-se havia três anos com o senhor de uma propriedade, mas não lhe dera filhos. E ele enjoara dela, partindo sempre em caçadas e outros programas que o mantinham por muito tempo fora do Castelo.

O Castelo tinha uma corte. Ela tinha aias em profusão – aias que falavam e riam profusamente: porém só com os lábios. Algo que viesse do coração ou da mente (se é que alguém possuía qualquer coisa do tipo ali) causaria espanto e choque. Ela estava entediada e seu tédio aumentava por não poder falar sobre ele.

Tinha muito tempo para pensar, e pensava. Pensava em como era injustiçada, como era infeliz. Queria uma vida melhor, uma vida mais viva, mas sempre acordava em meio àquele labirinto de risos falsos, aos quais não demorava a acrescentar o seu próprio.

Um dia Ela sentou-se à janela. E viu a vida. Viu-a na figura de um Menestrel que cantava e saltava, tocando um alaúde num círculo de camponesas. Elas pareciam felizes, e voltaram ao trabalho rodopiando, segurando a beirada das saias de trapo com suas mãos calejadas pelo ancinho.

Ela sentiu todo o seu corpo vibrar. Fitando o Menestrel ao longe, concebeu uma ideia. Chamou uma aia com um gesto e mostrou o rapaz.

– Quero que aquele senhor cante no próximo baile – murmurou.
– No de sábado ou no do dia de São Beltrano?
– De sábado – Ela disse, rapidamente, tendo dificuldade em esconder a impaciência. Sábado haveria um baile, uma festa em honra do Senhor, que regressava de uma missão qualquer (certamente nobre, digna e honesta). Ficaria no Castelo em descanso por algum tempo. Seria o dia perfeito.

Na noite de sexta-feira, o jovem Menestrel tocava algumas coisas em seu alaúde, no canto da cozinha que lhe haviam arrumado, quando se aproximou um pajem.

– São ordens do Senhor que amanhã se cante unicamente em louvor da Senhora – era tudo o que tinha a dizer.

Louvar a Senhora era uma tarefa complicada. Ela não se destacava em nada. Era bela, mas de uma beleza comum. Não era corajosa ou clemente, religiosa ou piedosa, nem mesmo modesta, era somente... a Senhora. Mas o Menestrel era um poeta, e acolheu a tarefa como um desafio interessante.

Realizou-o com sucesso. A corte inteira explodiu em palmas; se bem que palmas da corte não significava que as pessoas haviam gostado. O Senhor pareceu surpreso, mas ficou satisfeito depois de perceber a impressão do público. A reação dela foi, entretanto, perturbadora: Ela olhou para o Menestrel com um mal disfarçado ar de dignidade ferida e retirou-se bruscamente, logo na terceira estrofe da longa canção que o Menestrel compusera.

O incidente causou sensação. Algumas aias fizeram circular a notícia de que Ela sentia-se mal. Ficou enclausurada em sua torre durante vários dias. O Senhor, preocupado, decidiu prolongar sua estada no Castelo. Na semana seguinte acompanhou-a até à Igreja, onde teve lugar nova ocorrência estranha.

Lá estava o Menestrel, que se instalara o mais perto possível dos lugares reservados aos Senhores. Ele não ia sempre à Igreja como os outros camponeses. O regente do coro gregoriano não o suportava, com seu alaúde. Mas estranha realmente foi a atitude dela, ao deparar com ele ali. Estancou bruscamente, o rosário caiu de suas mãos enluvadas e ela deu meia volta. O Senhor olhou o Menestrel com hostilidade e seguiu-a. Esse olhar foi o que mais pasmou o Menestrel, alvo agora de todos os olhares. Pouco antes ele recebera do Senhor um recado para ir à Igreja, onde deviam tratar da contratação do Menestrel como músico oficial do Castelo. Isso o interessara o suficiente para fazê-lo resignar-se a ouvir a missa e todo aquele canto sem acompanhamento que agredia sua alma sensível de artista.

Então, depois disso, em todo lugar que os Senhores apareciam, lá estava também o Menestrel. A perturbação dela era evidente ao encontrá-lo. Os boatos corriam soltos na corte, que nunca estivera tão animada por aqueles lados. Assim a coisa continuou até o golpe de misericórdia.

Certa noite, o Menestrel aguardava o Senhor embaixo da janela da torre da Senhora. A ordem era começar sem ele, caso o Senhor não chegasse até meia-noite. A lua se aproximava do meio do céu – era fácil de ver, não estava nublado. Finalmente ela atingiu o seu marco. O Menestrel afinou as cordas do alaúde e dedilhou os primeiros acordes da serenata.

Lá dentro, Ela dava seu próprio espetáculo. Várias aias haviam acordado com a música doce que vinha de baixo, e encontraram sua ama debruçada na cama em pranto convulsivo, entremeado por suspiros e exclamações de “Oh, como sou infeliz!”. Quando foram socorrê-la, Ela ergueu o rosto lavado de lágrimas, com expressão resignada e murmurou:

– Mandem chamar o Senhor.

O homem veio sem demora. Esse rebuliço no Castelo já o havia acordado. Ela, ao ver o marido, em primeiro lugar jogou-se aos pés dele, reverenciando-o. Em seguida, ergueu-se e começou seu pequeno discurso, preparado de antemão.

– Senhor, sei que não sou digna da sua atenção, mas deves ter notado que muito tem me conturbado a presença deste Menestrel, cuja voz podes ouvir a cantar-me canções apaixonadas. Minha vida, que era tão doce, tornou-se um purgatório desde que este homem chegou aqui. Ele me persegue há muito tempo com seus olhares impuros e canções indecorosas, dizendo-se apaixonado. Diz que me ama, mas quando falo das impossibilidades desse amor, ri-se delas, diligentemente. Há algum tempo me é praticamente insuportável sua visão, mas hoje cheguei ao meu limite. Decidi rogar ao senhor, esperando que, em sua imensa piedade, livre-me deste sofrimento. Devo dizer que pensei em tirar minha vida, pois tenho certeza que a tortura eterna é mais amena que essa...

E Ela caiu novamente no choro; comovendo sua numerosa plateia composta pelas aias, o Senhor e seus pajens. Durante todo o tempo em que falava, sua voz denotava sofrimento genuíno. Ela acreditava em sua própria fantasia. O Senhor, que era simplório, apesar de rico, partiu imediatamente para prender aquele que intentava macular sua honra.

No dia do cumprimento da pena, a fogueira estava armada e o povo do feudo reunido em volta dela para aquele auto de fé: queimar o corrupto. Todos olhavam e comentavam o estado da Senhora. Ela mantinha uma expressão de mártir triunfante, fingindo ignorar os murmúrios. Vibrava de emoção por dentro. Aquele era o clímax de toda a trama.

O Menestrel tinha o olhar límpido e perplexo enquanto caminhava para a morte. Muita gente o insultava por sua falsidade, por manter a aparência de ingenuidade mesmo agora. Vendo-o queimar, uma sombra passou pelos olhos dela. Com ele morria toda aquela diversão.

Bem, não fazia mal. Havia muitos homens ainda. Ela olhou em volta enquanto ia embora, para o Castelo. Seu olhar deteve-se em um rapaz.

– Quem é aquele? – perguntou, num murmúrio, para a aia à sua esquerda.
– O ourives da aldeia, Senhora.
Ela virou-se para o outro lado e chamou um pajem.
– É desejo do Senhor encomendar uma bainha cravejada para sua espada...

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