Por Denise Fernandes
Um dia o Manu, uma pessoa
ótima – amigo da minha filha Bia e também meu, que faz tempo que não aparece
aqui em casa –, perguntou como eu tinha sentido a ditadura na minha vida; já
que ele é mais jovem e não tinha vivido esses tempos. Achei legal a pergunta e
super inédita, me levando a refletir. Lembrei e contei que hasteavam a bandeira,
nós cantávamos o hino em posição de marcha, com a mão no coração, e depois marchávamos
em fila indiana como soldadinhos no pátio do Colégio Jesus Maria José, em Santo
Amaro. A escola tinha aberto vagas para alunos meninos no mesmo período em que
eu estudava. Na sala de trinta crianças, havia dois meninos para vinte e oito
meninas. Eu usava botas ortopédicas e apanhava no recreio. Nem eu acredito que
marchei tantas vezes como um soldadinho...
Também contei para o Manu
que meus pais falavam que não se podia falar qualquer coisa, e muito menos mal
do governo, porque poderíamos ser presos. Como assim? Isso me indignava. Eles explicavam
que, do jeito que eu falava e perguntava, teria que me preocupar quando
crescesse. Parecia-me absurdo que não se pudesse nem falar, mas depois descobri
o holocausto, a escravidão... Percebi rapidamente que era melhor ficar
preocupada. E talvez calada mesmo. Minha cabeça de criança era cheia de inquietações
políticas: meus pais, a realidade em Santo Amaro e a atenção que eu prestava no
mundo me fizeram notar que a realidade era perigosa.
Minha mãe nasceu numa
favela e lutava contra as adversidades da vida; em condições muito precárias.
Foi deixada para ser criada pela avó devido às dificuldades econômicas de seus
pais. Além dessa história, havia aquela outra: "Come tudo que tem gente
passando fome". Quando a gente começou a reclamar, "e daí que outros
passavam fome?", nós conhecemos a fúria da minha mãe e sua capacidade de
fazer um sermão. Logo deu para perceber que a coisa ali era séria. Mesmo assim,
quando vi pela primeira vez uma pessoa comendo lixo, aquilo me embrulhou o
estômago. Foi um sentimento parecido com o que tive ao me deparar, no meio do trajeto
para a escola, com um suicídio. Lembro até hoje: eu não fui para a aula. Nos
dois dias seguintes, fiquei com aquela sensação estranha que a carta da Lua
expressa (com seu caranguejo, sua força noturna, sua ilusão).
De 2004 para cá, comecei a
jogar tarô e a fazer estudos astrológicos para peças de teatro. Dentro dessa
proposta de trabalho, joguei tarô para a peça "Homens e Caranguejos",
inspirada no livro homônimo de Josué de Castro. E saiu a carta da Lua na
primeira casa, carta número dezoito do tarô, que traz a figura do Caranguejo
estampada.
Josué de Castro
(1908-1973) dedicou sua vida ao estudo da fome, no Brasil e no mundo. Foi
exilado. Seu trabalho, pouco conhecido e reconhecido, precisa ser recuperado. A
fome cresce no mundo: nas crianças sem boas condições de subsistência, na
grande quantidade de pessoas que vivem nas ruas e não fazem parte das
estatísticas. Nas outras tantas fomes que a indiferença e a confusão produzem.
No esquecimento do Amor. Somos nós o caranguejo a andar para trás na lama, a
sobreviver... E também somos a Lua, e os cães latindo para ela, representadas
nas cartas do tarô ou no desenho da criança. Somos essa carapaça recheada de
carne branca festejando o mangue; esse satélite sem luz e com todo o mistério
da existência em seu peso, em sua força sombria de ventre, de recebimento. Somos
os desvarios de latidos na noite, no crepúsculo. Somos até mesmo o ciclo, as
lembranças da ditadura que surgirão sempre como fantasmas. Somos também essa
anorexia, o homem preso dentro do caranguejo, esse exílio permitido que nos
trouxe uma ausência da liberdade eterna, uma opressão.
Na escravidão consentida e na corrupção aceita, o golpe da garra do caranguejo. Na sociedade que não evolui, o enigma da aliança secreta entre o homem e o caranguejo: se há a fome e o alimento, há vida, liberdade e todas as possibilidades. O que vocês nos vendem não é o pão; não é a carne branca produzida pelas marés cheias de vida. O que vocês nos vendem é um medo cavado em dinheiro e leis, insensibilidades, racionalidades perversas. De dentro da minha toca, jogo tarô e ele acende uma luz de onde brotam milhares de caranguejos. Um dia alguém me questionou: você acredita que Ele repartiu o pão e esse pão era mesmo sem fim; capaz de acabar com toda a fome? Pedi desculpas à pessoa que me fez a pergunta. Ela já estava percebendo que eu era louca. Respondi que nisso eu realmente acreditava. Creio mais na história do pãozinho do que naquela de ressuscitar morto. Vai ver o Lázaro estava desmaiado. A parte do pão me parece mais legal. E real.
As apresentações da peça
“Homens e Caranguejos”
vão acontecer nos dias:
vão acontecer nos dias:
26 e 27/05 -
Teatro Reynúncio Lima - UNESP - São Paulo.
Apresentações às 18h30.
02 e 03/06 -
Galpão do Arthur - Mogi das Cruzes
10/06 -
Galpão das Artes - Suzano
11/06 -
Espaço Cultural Brasital - São Roque
16 e 17/06 -
Teatro Marco Camarotti (SESC) - Recife
Você encontra mais detalhes do trabalho do grupo
no blog Homens e Caranguejos.
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