Por
João Ramalho Jr.
O caminhão de mudança levou meus pertences no final de semana. Estou voltando hoje, segunda-feira de manhã, apenas para buscar o que sobrou. Toco a campainha do sobrado e sou recebido por mamãe. Ela sorri ao me reconhecer. O som do cadeado prenuncia a abertura do portão. Ganho um beijo no rosto e ouço a voz da sabedoria:
–
Vamos logo, antes que seu pai acorde!
O
patriarca da família estava felicíssimo com a minha partida. Mesmo doente e
ranzinza, o velho aposentado deixava bem claro – no almoço dos domingos – que
não iria sustentar nenhum filho vagabundo... A repreensão de mamãe,
definitivamente, nunca o fez mudar de ideia.
Chegamos
ao quarto de empregados, hoje desativado, nos fundos do sobrado. Mamãe coloca a
chave na fechadura e dá duas voltas. Ao girar a maçaneta, ela comenta:
–
Faz muito tempo que eu não limpo essa bagunça. Cuidado para não ser mordido por
nenhum rato, hein... Ah, e vê se deixa essa porta aberta, porque tem muito pó
aí dentro!
Dito isso, mamãe me deixa sozinho no quarto. E ela tinha razão: naquele cubículo, tudo estava rodeado por uma grossa camada de poeira. No primeiro cômodo, havia uma geladeira (que há muito não era utilizada); além de uma prateleira fixada na parede, com algumas caixas fechadas sobre ela. No segundo ambiente, vejo um pequeno banheiro ao fundo, uma pia, jornais velhos empilhados num canto. Mas a minha atenção voltou-se justamente para o baú no chão, logo abaixo da janela. Espirrei duas vezes ali.
Aproximei-me do baú, destravando suas trancas e levantando a pesada tampa. No interior havia uma porção de objetos do passado. Algumas revistas velhas, amareladas pelo tempo, que denunciavam meus gostos da infância (os êxitos de Ayrton Senna, os álbuns de figurinhas do Campeonato Brasileiro); peças de dominó; a apostila da primeira comunhão...
Embaixo
de uma série de livros escolares, escondia-se o maior de todos os tesouros: minha
coleção de discos de vinil (cerca de 50 deles). Ouvia-se muita música
brasileira em casa: Cauby Peixoto, Benito di Paula, Nelson Gonçalves, Milionário
e José Rico. Qual não foi a surpresa quando me deparei com os discos dos
Beatles! Esqueci do tempo enquanto folheava o encarte de vinte páginas do Magical Mystery Tour, com as fotos coloridas
do filme.
Eu
levei um susto ao perceber que mamãe estava atrás de mim, observando a cena calada.
Ela foi a primeira a falar:
–
Desde pequeno, você passava horas ouvindo isso aí.
No
que respondi:
–
Nem me lembrava mais do baú... E nem do que tinha dentro!
O
silêncio momentâneo foi rompido pelo meu pedido:
–
Mãe, me arranja um pano pra tirar o pó de cima desse baú. Ele vai comigo.
Ela retorna com o pano. Após a limpeza, nós dois carregamos o trambolho – um segurando de cada lado – até o portão do sobrado. Colocamos o volume no chão e mamãe destranca o cadeado novamente. Eu saio e abro a tampa traseira do meu automóvel. Juntos colocamos o baú no porta-malas.
Em meio ao abraço apertado da
velha, na despedida, noto que papai me observa pelo vão da janela, no segundo
andar do sobrado. Percebendo o flagrante, ele se afasta da janela. Entro no
carro sem nada dizer e encaixo a chave na ignição. Ainda aceno para mamãe antes
de partir.
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