terça-feira, 23 de maio de 2017

Doe-se

Por Denise Fernandes




Já faz um tempo. Meu anjo da guarda dizendo que eu deveria retomar o projeto de livros para trabalhadores da construção civil. Esses homens inteligentes, que edificam os sonhos materiais de todos nós, e que são vistos como pessoas burras. Trabalham muito e não tem tempo, nem incentivo, para ir a uma biblioteca ou para frequentar atividades culturais. Geralmente não tem nenhum acesso a livros. E quando têm acesso, o único livro desses trabalhadores é a Bíblia.

O anjo falando e eu dando voltas. Pensava no que fazer, e pensava sem nada fazer.

Até que um dia Jesus, o marceneiro, apareceu aqui em casa. Jesus, um senhor de cabelos brancos, contador de casos e histórias. Me disse que anda pelas ruas e lembra das portas e serviços que fez, em madeira, nas residências; de como ele mesmo, através do seu trabalho, está na vida de tanta gente, em tantas casas. Simpático, além de habilidoso, Jesus me lembrou do compromisso que havia marcado com meu anjo da guarda. Dei um livro a ele. Tirei uma foto do momento.

Doar faz mais sentido que guardar. Tenho doado livros para trabalhadores da construção civil desde então. Provavelmente, o livro doado não vai ser lido da mesma maneira que seria na academia. Por isso mesmo, essa doação (para outros tipos de leitores) é tão interessante.

Quando era jovem, eu batalhava para ter os livros que achava importantes. Lendo livros emprestados ou de bibliotecas, sentia um pouco de dó de não ter o livro pra mim. Imaginava que seria proprietária de uma boa biblioteca. Num momento da minha vida, cheguei a ter muitos livros em casa. E vieram as dificuldades para organizá-los e limpá-los. Os objetos do meu desejo começaram a me causar alergia. E era uma agressão: desejava que meu corpo se desligasse da alergia. Achava que eu tinha que mudar. Não pensava em mudar os livros.

Mas foi mudando que meu corpo melhorou. Libertei os livros da solidão de prateleiras monótonas, de pó fino e denso, invadindo as páginas. O livro liberta mais na mão das pessoas do que dormindo na estante.

E quando penso nos livros, penso em mais. Em quanta doação pode ser feita, em quanto guardamos  pressionados por uma cultura de acúmulo. Não só objetos; mas carinho, alimento, palavras, ideias, conhecimentos.

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