quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O povo, esse idiota

Por Amilcar Neves* 

 

Sem generalizações, por favor. São visões possíveis por parte de profissionais que vivam mergulhados nos afazeres de suas carreiras, sem conseguir enxergar em volta, fora delas, um horizonte mais amplo. Muitas vezes eles nem mesmo querem saber do que se passa além dos limites do seu "núcleo de conforto". Ainda assim, constroem, geralmente inabalável a despeito de eventuais evidências em contrário, a sua sólida imagem do mundo. E dela não abrem mão, não arredam pé, até mesmo porque seria extremamente caro e doloroso construir um novo modelo.
 
 
Advogados veem o povo operando sempre fora da lei; se não os seus clientes, os oponentes deles.
 
 
Tecnólogos de informação e vendedores de celular enxergam seus clientes e usuários, ou seja, o povo, como portadores de burrice incurável: tudo têm que perguntar, nada aprendem jamais.
 
 
Médicos têm nítida consciência de que o povo todo é doente e que não há remédio de última geração que dê conta de tanta falta de saúde.
 
 
Juízes criminais cansam-se de acompanhar pelos autos o dilúvio de sangue que o povo derrama: dos outros pobres mas também de ricos e gente da classe média.
 
 
Enfermeiros de hospitais psiquiátricos juram que o povo é feito quase que exclusivamente de loucos varridos, de débeis mentais diplomados.
 
 
Professores atestam quanto o povo, ignorante a mais não poder, ainda precisa aprender.
 
 
A classe média, apavorada com o clima geral de insegurança, espia o povo que passa na sua rua: cada pessoa desconhecida é um trombadinha, cada vulto, um meliante cruel.
 
 
Pastores e bispos neoevangélicos gozam com a credulidade e ingenuidade do povo, que verte rios de dinheiro para reservar uma cadeira numerada no Paraíso.
 
 
Por isso fica fácil chamar o povo de idiota, dizer que não sabe nem votar. Aos que assim lamentam a "sorte madrasta - embora merecida" desse pobre povo, cabe perguntar quem serão os iluminados que deveriam decidir tudo em nome desse bicho ignorante de 200 milhões de cabeças.
 
 
Teste de posicionamento
 
 
Tente levar a cabo uma experiência interessante: junte um grupo que o escute - em sala de aula, numa palestra, numa reunião - e conte um caso polêmico. Crimes de estupro, por exemplo, são apropriados para o experimento. Todo mundo sabe o que é um estupro e tem julgamento mais ou menos definido sobre esse tipo de violação.
 
 
Conte as circunstâncias do caso, descreva os detalhes que levaram ao desenlace: roupas usadas, palavras ditas, tons de voz, maquiagens, ambientes, histórico dos envolvidos, níveis de álcool ou drogas consumidos, manias e fixações dos personagens, tudo que poderia contribuir para o desfecho. Mas narre tudo objetivamente, sem emitir opiniões nem empregar palavras que induzam a audiência a qualquer conclusão.
 
 
No final, parte das pessoas ficará esperando o comando para aplaudir, vaiar ou ofender com palavras de baixo calão a vítima do estupro.
 
 
As placas de bronze
 
 
Em algum momento antes do início da tarde de sábado, duas ou mais pessoas passaram em frente à Casa de José Boiteux, bem no Centro da Capital, em plena Avenida Hercílio Luz, estacionaram o veículo necessário para remover os despojos que resultariam da operação, retiraram as ferramentas apropriadas ao ato que planejaram executar, colocaram-se a postos da melhor maneira possível para bem realizar o trabalho a que se propunham, arrancaram os pinos de chumbamento, removeram o material de cimentação que reforçava a fixação delas às paredes frontais do exuberante casarão e levaram consigo, sem serem importunados em momento algum da tarefa, duas placas de bronze. Não parece obra de craqueiro.
 
 
Uma das placas indicava que ali funciona a Academia Catarinense de Letras; a outra, do outro lado da magnífica porta, anunciava a sede do Instituto Histórico e Geográfico de SC.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 30.07.14

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