quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Tempos tenebrosos virão

Por Amilcar Neves*

 
Encontraram-se no local combinado: um desvão meio sombrio, tanto quanto possível afastado de ouvidos humanos e olhos tecnológicos, como o Chefe falou e ele pensou que fosse brincadeira, o Chefe sempre tem lá seus momentos de galhofa, de pilhéria. De gozação, mesmo.
 
 
- Percebeste bem?
 
 
- Perceber? O que?
 
 
- O que estão fazendo, oras! - o Chefe parecia nervoso, apreensivo, preocupado.
 
 
- Fazendo onde, Chefe?
 
 
- Por aí. Por tudo - fez um gesto vago e redondo como se quisesse abarcar e indicar o mundo ou algo vasto e muito grande.
 
 
Pensou um pouco antes de responder, tentando avaliar melhor a situação, procurando entender com máxima clareza a que, precisamente, o Chefe se referia:
 
 
- Bom, pelo que sei, estão instalando os cabos da nova rede de banda larga, telefonia e...
 
 
- A-há! Isso é o que tu pensas! - enfatizou otu como se enfiasse o dedão indicador no meio do peito do interlocutor. - Isso é o que todos pensam! Será que ninguém está percebendo, será que ninguém lê sobre conchavos e tecnologia?
 
 
- Gostaria muito de saber, Chefe.
 
 
- Olha, quero dizer, escuta - e cobriu a boca com a mão, feito técnico de futebol à beira do gramado, para impedir a leitura labial. - É o plano, um plano de escala nacional. E escala nacional no Brasil nunca é coisa pouca, vai aí pelo menos de 30 a 40% de propina. Todos os locais terão esse mesmo sistema que estão instalando aqui, nas nossas barbas - e deixou escorregar a mão, cofiando a própria barba, muito bem cuidada, por sinal.
 
 
- Sério, Chefe? Essa história começa a me deixar preocupado, inquieto.
 
 
- Pois é, pois é como te digo: daqui para a frente vamos precisar ter muito cuidado com tudo que falarmos: tudo será ouvido, tudo será gravado e as conversas serão todas cruzadas. Nada escapará do conhecimento deles, imagina! Imagina quando todo o sistema estiver implantado, funcionando no País todo?
 
 
- Caraca, Chefe, não tinha pensado nisso!
 
 
- E tem mais: sabes de quem é a empresa - a mão sempre cobrindo os lábios, exigindo idêntica postura do outro, a fim de não ser delatado por palavras alheias - que está fazendo o serviço?
 
 
A primeira revelação
 
 
- O dono da empresa, Chefe? Não faço a menor ideia -quase cedeu ao gracejo do "não faço a melhor ideia"; ia pegar mal.
 
 
- A empresa é a - abafou tanto a voz que ela não saiu e o outro ficou sem saber o nome da fatídica companhia prestadora do serviço. - Pois essa empresa é exatamente aquela.
 
 
- Aquela?
 
 
- Sim, aquela, a empresa fajuta que saiu na imprensa, foi escândalo no Jornal Nacional, capa da Veja, alimentou jornais por semanas. Vem aqui perto - pediu, e aproximou a boca da orelha do outro, tapou dos dois lados essa via de comunicação entre ambos e disparou: - o dono é o filho do Cara! Percebes?
 
 
- Humm...
 
 
- Todo o Brasil instalando, sendo obrigado a instalar o sistema, e o dinheirinho caindo no caixa da família. Dinheirinho pra eles, podres de ricos que já estão. Mas tem mais.
 
 
- Mais, Chefe?
 
 
- Tem.
 
 
A grande revelação
 
 
- Já tremo de medo e angústia, Chefe.
 
 
- É bom ir acostumando mesmo. Porque, daqui pra frente, só vai fazer piorar.
 
 
- Piorar mais ainda?
 
 
O Chefe quase esboçou um sorriso, mas seus olhos pilheriavam, degustando a impressão que causava, certo de que estava a ponto de convencê-lo da Grande Verdade:
 
 
- O esquema, meu amigo, o esquemão tal como foi montado desde lá o final do século passado e que começa agora a ser executado.
 
 
- Meu Deus! - benzeu-se três vezes feito jogador entrando em campo.
 
 
- O uso do capitalismo em proveito próprio! O capitalismo desenvolve a tecnologia, coloca os cabos a funcionar e serve assim ao comunismo.
 
 
- Ao comunismo?!
 
 
- Sim, o plano é o controle total da sociedade brasileira e a implantação do comunismo, do qual jamais conseguiremos nos livrar depois que essa rede começar a operar.
 
 
*Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 26.07.14

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