quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Crônicas viajam de ônibus

Por Amilcar Neves*

 

A explicação é simples: crônicas viajam de ônibus porque as pessoas viajam de ônibus. E crônicas, todos sabem, são feitas de pessoas.
 
 
A pergunta é recorrente: como fazer para encontrar crônicas? A temeridade de uma por mês, por exemplo. Ou o terror de uma por semana, quem sabe. Ou a insanidade absoluta de uma por dia, talvez. A resposta, acadêmica, é invariavelmente a mesma: crônicas são encontráveis quando as procuramos. Procura-as e as encontrarás. E não demora nada achá-las. Em qualquer lugar. Ônibus são ótimos locais para examiná-las bem de perto, mas pode-se buscá-las em todo ambiente. O necessário, o fundamental é sair disposto a encontrá-las e ter um pouco de cuidado para conseguir vê-las, para identificá-las como tais, antes que se evaporem como por encanto. Crônicas também costumam ser extremamente esquivas, lisas e fugidias. Meio assim como pegar peixe na água com as mãos ensaboadas.
 
 
Como peixes, não é raro que as crônicas tenham escamas, que é preciso removê-las com perícias de artesão para que se revele a essência do seu corpo. Todo mundo sabe o que são as escamas numa crônica: basta não senti-la macia, leve, quase imponderável.
 
 
Os ônibus, para quem não embarca neles dentro já de uma geringonça eletrônica que engole seu portador, cegando-o e ensurdecendo-o, apresenta a vantagem adicional de permitir ao cronista a ruptura com a correria do cotidiano, levando-o ao estado contemplativo ideal para fazer com que as crônicas - duas, três, cinco, uma dúzia - pulem ouriçadas em seu colo e comecem a brincar com ele, seduzindo-o e fazendo-lhe propostas impublicáveis na disputa, cada qual, pela preferência do autor que saiu a buscá-las.
 
 
Por isso, acima de tudo, é que se diz que as crônicas viajam de ônibus.
 
 
Note-se, porém, que tratamos de crônicas, o que significa falar de viagens entre Centro e bairro ou vice-versa. Uma viagem de ônibus até Curitiba resultará, sem dúvida, no encontro com um conto, enquanto o trajeto em ônibus de Brasília a Belém te fará, ao cabo, dormir na Amazônia nos braços de uma robusta novela, pelo menos.
 
 
Crônica 1
 
 
Celulares foram uma excelente invenção como máquina de leitura do pensamento. Ao celular, mergulhadas nele, as pessoas se julgam enfiadas num orelhão com isolamento acústico. Às vezes, estão expostas, quase nuas, no interior de um ônibus parado ou em movimento.
 
 
"Vamos faturar essa, sim! Fico toda arrepiada só de pensar nesse contrato, parceiro!"
 
 
"Claro, já vi tudo, as crianças vão ser recebidas... Sim, sim, independente de serem ricas ou mais carentes, todas vão..."
 
 
"Vamos ter gente treinada para receber os clientes, os pais das crianças, e não vamos deixar ninguém sem atenção, ninguém vai sair sem ter visto o que nós precisamos que vejam. Claro, claro! Vais sentir orgulho da equipe, escreve o que estou te dizendo."
 
 
"Não, à noite não posso, não nesta noite. Mas amanhã estou livre, disponível, a gente pode..."
 
 
Crônica 2
 
 
"A mulher perfeita, pra qualquer homem, é uma dama na sociedade e uma puta na cama. (…) Ei, por que que tu tá rindo? Tá zoando de mim, cara?"
 
 
"Não, nada disso, vê se tu entende. É básico, percebe? (…) Por que que tu mente pra mim?"
 
 
"Aí tu vai ter mais ciúme de mim ainda, maninha."
 
 
"Eu sei que as manas pegam pesado, tá?, mas é assim que a coisa rola. Não vai ser tu que vai botar areia no óleo desse esquema, né não?"
 
 
"Tu já pensou, cara, tu ter um marido músico e famoso e poder tocar nele como ele toca na banda? Tu já sonhou com isso, mana? E tu sabe que tu tem isso, né? Tu sabe que tu me tem, que tu tem eu, sacou?"
 
 
Tem outras, muitas mais. Basta, desconectado, viajar de ônibus. Conectado nas pessoas, feito voyeur literário de ouvido, caso esta figura existisse. Problema é que o espaço acabou, mano, sinto muito.

*Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 24.07.14

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