Por
Amilcar Neves*
A explicação é simples: crônicas
viajam de ônibus porque as pessoas viajam de ônibus. E crônicas, todos sabem,
são feitas de pessoas.
A pergunta é recorrente: como
fazer para encontrar crônicas? A temeridade de uma por mês, por exemplo. Ou o
terror de uma por semana, quem sabe. Ou a insanidade absoluta de uma por dia,
talvez. A resposta, acadêmica, é invariavelmente a mesma: crônicas são
encontráveis quando as procuramos. Procura-as e as encontrarás. E não demora
nada achá-las. Em qualquer lugar. Ônibus são ótimos locais para examiná-las bem
de perto, mas pode-se buscá-las em todo ambiente. O necessário, o fundamental é
sair disposto a encontrá-las e ter um pouco de cuidado para conseguir vê-las,
para identificá-las como tais, antes que se evaporem como por encanto. Crônicas
também costumam ser extremamente esquivas, lisas e fugidias. Meio assim como
pegar peixe na água com as mãos ensaboadas.
Como peixes, não é raro que as
crônicas tenham escamas, que é preciso removê-las com perícias de artesão para
que se revele a essência do seu corpo. Todo mundo sabe o que são as escamas
numa crônica: basta não senti-la macia, leve, quase imponderável.
Os ônibus, para quem não embarca
neles dentro já de uma geringonça eletrônica que engole seu portador, cegando-o
e ensurdecendo-o, apresenta a vantagem adicional de permitir ao cronista a
ruptura com a correria do cotidiano, levando-o ao estado contemplativo ideal
para fazer com que as crônicas - duas, três, cinco, uma dúzia - pulem ouriçadas
em seu colo e comecem a brincar com ele, seduzindo-o e fazendo-lhe propostas
impublicáveis na disputa, cada qual, pela preferência do autor que saiu a
buscá-las.
Por isso, acima de tudo, é que se
diz que as crônicas viajam de ônibus.
Note-se, porém, que tratamos de
crônicas, o que significa falar de viagens entre Centro e bairro ou vice-versa.
Uma viagem de ônibus até Curitiba resultará, sem dúvida, no encontro com um
conto, enquanto o trajeto em ônibus de Brasília a Belém te fará, ao cabo,
dormir na Amazônia nos braços de uma robusta novela, pelo menos.
Crônica 1
Celulares foram uma excelente
invenção como máquina de leitura do pensamento. Ao celular, mergulhadas nele,
as pessoas se julgam enfiadas num orelhão com isolamento acústico. Às vezes,
estão expostas, quase nuas, no interior de um ônibus parado ou em movimento.
"Vamos faturar essa, sim!
Fico toda arrepiada só de pensar nesse contrato, parceiro!"
"Claro, já vi tudo, as
crianças vão ser recebidas... Sim, sim, independente de serem ricas ou mais
carentes, todas vão..."
"Vamos ter gente treinada
para receber os clientes, os pais das crianças, e não vamos deixar ninguém sem
atenção, ninguém vai sair sem ter visto o que nós precisamos que vejam. Claro,
claro! Vais sentir orgulho da equipe, escreve o que estou te dizendo."
"Não, à noite não posso, não
nesta noite. Mas amanhã estou livre, disponível, a gente pode..."
Crônica 2
"A mulher perfeita, pra
qualquer homem, é uma dama na sociedade e uma puta na cama. (…) Ei, por que que
tu tá rindo? Tá zoando de mim, cara?"
"Não, nada disso, vê se tu
entende. É básico, percebe? (…) Por que que tu mente pra mim?"
"Aí tu vai ter mais ciúme de
mim ainda, maninha."
"Eu sei que as manas pegam
pesado, tá?, mas é assim que a coisa rola. Não vai ser tu que vai botar areia
no óleo desse esquema, né não?"
"Tu já pensou, cara, tu ter
um marido músico e famoso e poder tocar nele como ele toca na banda? Tu já
sonhou com isso, mana? E tu sabe que tu tem isso, né? Tu sabe que tu me tem,
que tu tem eu, sacou?"
Tem outras, muitas mais. Basta,
desconectado, viajar de ônibus. Conectado nas pessoas, feito voyeur
literário de ouvido, caso esta figura existisse. Problema é que o espaço
acabou, mano, sinto muito.
*Crônica publicada no jornal
"Diário Catarinense" de 24.07.14
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