quinta-feira, 26 de junho de 2014

A traição do corvo branco

Por Amilcar Neves*



Dorinda sempre manteve uma relação descuidada com os corvos brancos. Para ela, pouco valia a cor do corvo e, sim, a desimportância de qualquer corvo. Assuntos corvinos jamais lhe atraíram a atenção. Tinha mais o que fazer na vida do que ocupar-se - e, menos ainda, do que preocupar-se - com corvos ou bichos de semelhante quilate. Neste sentido, sua única preocupação prendeu-se ao teor de pureza do ouro, medido em quilates, da aliança de noivado proposta por seus noivos. O primeiro deles, só pra começar, ofereceu-lhe em embalagem de aparente luxo uma joia falsa, que sequer 18 quilates alcançou: despediu o noivo e foi em busca doutros, mais bem aquilatados.

Não seria depois de casada, com cinco filhos para criar e encaminhar neste mundo cada vez mais confuso, que ela se envolveria com corvos, corvachos ou corvinas. Se fosse para dedicar algum esforço, seria ao povo das corvetas, um pessoal de inegável futuro e inabalável prestígio, especialmente junto às moças do Sul catarinenses. Nenhuma donzela da região haveria de negar uma homenagem, uma curvatura, um sonho lúbrico ao povo corveteiro.

Foi então que lhe chegou a notícia pelo inseparável iPhone: aí vinha em breve, para visitá-los, a ela, ao marido pragmático e aos filhos (embora todos autônomos ou casados) o sobrinho da Capital, distante ainda que incessantemente referido e, mesmo, reverenciado pela gente do seu imenso clã.

Sim, em poucos dias Manoel Osório arribaria aos ermos de Cocal do Sul com o desígnio primordial de visitá-la, a ela, sua tia Dorinda Osória, altamente estimada por ele dentre todas as mulheres osórias. Ao ler a tela iridescente que rebrilhava aos derradeiros raios de um poente magnífico sobre todos os demais, Dorinda aprumou-se, refletiu sobre suas obrigações e responsabilidades, suspirou e disse de si para si: sim, seja o que Deus quiser e o destino enviar! Gostava muito de Manoel Osório, embora não deixasse de incomodá-la um grande bocado o fato de seu sobrinho morar, único entre os Osórios, na Ilha de Santa Catarina. Era meio como se ele, teimoso na sua decisão de fixar-se num local que lhe fora vedado, quisesse desafiar toda a família, a começar pelo tetravô, então vivo à ocasião da deliberação de não retornar ao Sul. Manoel Osório preferia assumir os incríveis ônus de permanecer para sempre (?) na Capital ao invés de cumprir a imposição quase sagrada de devolver à sua terra o que ela lhe proporcionara: uma formação digna, como a todos os Osórios e Osórias, numa das melhores faculdades de Direito do País. Por isso Manoel Osório era veladamente admirado pelos seus, especialmente pelos mais jovens, e abertamente censurado por todos, em especial pelos mais idosos.

Manoel Osório confessava à tia Dorinda Osória que intentava consumir com ela os dias do feriadão de Semana Santa, Páscoa e Tiradentes, tudo emendado, para conhecer o tal de corvo branco, aproveitando-se da ocasião e da proximidade geográfica para ir ver o morro da igreja e visitar uma certa pedra furada.

Dorinda Osória não chegava a atinar bem sobre o que seriam essas coisas. Em conversas com um e outro aqui e acolá, colecionando opiniões e alinhavando comentários, deduziu que tudo passava por uma estrada de chão batido que demandava os altos do planalto.

Quando o sobrinho aportou, o único que lhe pôde dizer é que uma chuva intensa nos últimos dias interditara a passagem para o seu sonho, o que a ele lhe pareceu um ato de extremas desconsideração e deslealdade.


* Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 23.04.14

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