quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Itinerâncias ao rés do chão

Por Amilcar Neves*

 
 
Assim que entro no ônibus para uma longa viagem intermunicipal não tenho mais pressa alguma. Tudo cessa, nada mais depende de mim até chegarmos ao destino distante, situado a oito horas do ponto de partida. Não carrego comigo computador de colo (laptop), caderno eletrônico de anotações (notebook), tabuleta (tablet) nem computador portátil de mão que fala com outrem (smart phone). Estou só. Isolado. Incomunicável. Maravilhosamente só, isolado e incomunicável.
 
Passa um pouco das 14h30, meu ônibus parte às 14h45. No ônibus ao lado, vejo daqui, um sujeito de cabelo punk arrepiado manuseia uma tabuleta. Estará lendo? O que poderia ser? Literatura? Qual livro seria? Jamais saberei. Jamais saberemos. Ao retornar do toalete, o rapaz do ônibus ao lado abandonou o brinquedinho. Dedica-se agora a interagir com a tela de um celular dito inteligente. E ele sorri (o rapaz, não necessariamente o celular - haveria algum rasgo sutil de ironia da parte de um dos dois interagentes?).

Na plataforma de embarque, um agente (cacilda, como se age neste texto!) rodoviário fala para três colegas de empresa, dois dos quais serão os meus motoristas, isto é, os motoristas do meu ônibus:
 
- Artista precisa ter outras ocupação (sic)!
 
Os demais sorriem para ele, em sinal sincero de simpatia e admiração. Um deles pega sua tabuleta física, vai passando as folhas nela fixadas até chegar à última e mostra a todos, orgulhoso, o esboço do retrato de um rosto masculino:
 
- Isto aqui ele desenhou em dois toques!
 
A simpatia e a admiração inequívocas se expressam agora em sorrisos mais plenos e mais satisfeitos e em tapinhas amistosos nas costas do artista amigo e colega de trabalho. A arte está em todos os lugares, pensam todos ao mesmo tempo.
 
Paro por aqui, por ora (são 3 horas e 15); afinal, tenho mais o que fazer do que ficar conversando sem parar com vocês. Dedicar-me-ei um pouco, agora, a Carmilla. Vocês nem imaginam como é excitante e assustadora. Carmilla, a Vampira de Karnstein, de Joseph Thomas Sheridan Le Fanu. Comprei ontem de tardezinha numa livraria perto de casa. Custou oito reais. Oito pilas. Num sebo que acabou de abrir (sou um dos seus primeiros clientes, esta marca nunca mais ninguém me tira).
 
Carmilla. Já havia visto o filme. Três filmes, na verdade, de 1970 e 1971. Tenho-os todos em DVDs baratos - mas originais, nada de pirataria. O livro é outra coisa, vocês nem imaginam, sinto muito.
 
Passamos há pouco pela churrascaria "Boca da Serra". Vocês já podem imaginar para onde este ônibus trepidante me leva. Como se costumava dizer certa época das nossas vidas: "Fui!"
 
Volto talvez aí pelas 16. Dezesseis horas. Agora quero apreciar a paisagem que principia a se arrepiar serra acima. Chalés europeus começam a pipocar nas encostas. Aqui, mal passamos a ponte, já não existe nada que lembre o litoral. Mar já era. De comum com a Ilha, apenas os morros cobertos de mata nativa. O que não é pouca coisa, claro.
 
Voltado, eu. Re-voltado, tantas vezes já voltei. Menti-lhes. Gostaria de dizer menti-vos, mas isto não seria certo, a confissão estaria gramaticalmente incorreta e, como tal, possivelmente invalidada, o que equivaleria a dizer que lhes falei a verdade, o que não corresponde aos fatos tais como se desenrolaram (o que presume estivessem tais fatos enrolados).
 
Menti-lhes escandalosamente porque, sentado em companhia de Carmilla, acordei nos braços da Princesa da Serra assim que, às 18h30, o ônibus parou na rodoviária de Lages.
 
* Crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 13.11.13

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