Por Denise Fernandes
Há um tempo atrás recebi o seguinte texto, num e-mail da Lelê: "Oi, amigos. Envie uma receita fácil para o primeiro nome da lista. Ponha o número dois em primeiro e o seu em segundo. Mande para a primeira da lista e mais 19 amigos. Você terá uma coleção de receitas."
Era para ser fácil. Mas para uma pessoa complicada como eu não é. O tempo passou e o e-mail lá. O tempo faltando na minha vida. E depois a pergunta: quem são esses dezenove amigos que posso mandar um e-mail e terão tempo de responder com receitas? Já recebi esse tipo de e-mail, tentei fazer de outra vez e não deu certo. Percebo que não sei realmente como estão a maioria das pessoas da minha lista de e-mails. Elas cozinham? Têm tempo? Ou o tempo falta? Hoje comi uma empada esquisita na rua. Será que tinha algum resto de comida gostosa na geladeira de alguém? No mistério do outro, imagino a Lelê cozinhando. E isso me anima. Quero ter um milhão de amigos. Quero ter uma coleção de receitas.
Cada receita tem uma história. E o segredo da energia de quem faz a comida, diz minha mãe. Acho que ela tem razão: tem esse mistério da energia de quem faz.
Foi na casa da Dri e da Lelê que comi capelette in brodo pela primeira vez. Lembro nitidamente da cozinha da casa da Lia, mãe da Dri e da Lelê. Lembro também do sorriso da Lia, que era um sorriso que pra mim dizia sim, "pode dormir e comer na minha casa". Eu obedecia ao sorriso da Lia. Lembro também que, naquela época da minha vida, eu tinha tempo. Era o começo da adolescência e eu podia me instalar na casa da Dri e da Lelê; provar novos sabores em todos os sentidos. O sol pegava o trem azul com todos vocês e um monte de sonhos na cabeça. Achei engraçado que eles comiam sopa com queijo ralado, mas logo comecei a comer também, para variar. Claro que, de vez em quando, tenho vontade de comer aquele capelette in brodo que tinha lá na casa delas. Exatamente aquele que ficava numa panela grande na cozinha da casa, esperando a gente. Ainda tenho vontade de comer a esfiha da tia da tia Sandra, que morava em Rio das Flores e fazia a melhor esfiha que já comi na vida. A Tia Sandra disse que essa tia está com Alzheimer. Vontade das pizzas do meu avô – que eram as melhores do mundo – e do seu misto quente, que só meu avô José Felipe conseguia fazer.
Tem horas que preciso tomar meu café, comer meu bolo, meu arroz com feijão. Já estou nessa fase da vida. Uma fase em que os sabores são imensamente mais importantes que as perspectivas, promessas ou possibilidades. Me encontro em paz com minha alma de avestruz. E um pão com manteiga gostoso, com um cafézinho, é capaz de me fazer feliz. Porque só há o momento. Não que eu não faça planos e que tenha optado pela superfície da vida, mas é a descoberta; que sabores são importantes. E cheiros e sons. Há um prazer em mergulhar na experiência. O prazer de escutar o som da panela de pressão e o cheirinho de feijão cozinhando.
Minha mãe cozinha tão bem que até o leite que ela ferve é especial, tem a energia dela. Uma vez fiz uma vivência de psicologia que tinha a busca de uma imagem do paraíso perdido. Minha imagem de paraíso foi mamãe cozinhando na infância para mim, meus irmãos, primos e amigos. O Tempo roubou meu paraíso.
Um milhão de amigos não sei como ter. Mas um monte de receitas está um pouco mais fácil e resolvi colocar algumas no blog Alegria e Circo. É meio estranho um blog de receitas culinárias chamar-se Alegria e Circo. Mas se o programa da Ana Maria Braga pode chamar “Mais Você” e ter como atração principal as receitas, me parece cabível o meu blog de receitas se chamar “Alegria e Circo”.
As receitas que têm no blog são todas fáceis e já testei. Sou uma cozinheira preguiçosa e comilona. Me sinto sempre com muita fome e inspiração na cozinha. Pronto: comer, rezar, amar. Não é um filme. É a minha vida real. Sem receitas para a vida, mas fazendo o alimento. Será que o Roberto Carlos tem um milhão de amigos? Tenho o coro de passarinhos, a música, as receitas que minha mãe me dá aos poucos. Enquanto espero um milhão de amigos, escrevo. Sem saber quem cozinha, quem canta e o que acontece quando rezo por meus amigos. Não há tempo ou o Tempo é tão grande que sempre haverá tempo. Mesmo assim espero, como se não tivesse opção, porque é mais simples para o meu coração selvagem esperar. Tem farinha, ovos, açúcar, fome, fogão com memória de muitos aromas. E uma esperança ridícula que tudo dê certo, como um grande almoço.
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