quinta-feira, 19 de abril de 2012

Ao Infinito

Por Rayane Medeiros



Não era de muitos amigos, de muitas falas, de muitos risos. Mas quando o era, o era como ninguém. Conservava o hábito de manter-se só. Vivia para seus livros, seus discos, suas fotos pregadas na parede – a única coisa do passado que ainda mantinha viva. Não saía, não bebia. Mas a solidão – sua melhor desculpa – o obrigara ao vício do fumo. Nunca ninguém o via, mas se o visse, estaria indiscutivelmente, com um cigarro passeando dos dedos aos lábios. O cheiro do tabaco já não lhe desgrudava, era um romance infindável, e isso lhe chegava a ser até interessante.
Não era feio. Em verdade, era belo. A pele branca, barba espinhando, cabelos quase cobrindo a testa expressiva. Tinha uns olhos escuros, de cobiça, desses que nos prendem, como a flertar o horizonte por horas. O riso era de criança que a tudo ver graça – inocente, fácil, convidativo. Era muito desejado. Várias mulheres passavam por sua cama, porém nenhuma teve a sorte de visitá-la mais de uma vez. Não o alcançaram além do prazer. Mantinha um relacionamento sério com sua própria solidão. Em dias alegres, onde se podia ouvir o barulho que vinha da rua, não desejava outra coisa senão a vida que levava. Em dias onde o silêncio era doloroso, se perguntava até quando continuaria ali, com as sombras a escutar seus dedos arrancando melodias do violão cansado.  Em dias de chuva, perdia-se na rua sombria e vazia, com a água fria a molhar-lhe a cara, os pêlos eriçados, a pele que nunca via sol. Deixava escorrer as amarguras, os desejos implícitos, a vontade em ver-se outro.


Foi num desses dias, em que nossos impulsos atropelam nossos hábitos, que ele decidiu sair. Sem destino. Sem nada esperar. Saiu. Deixou pra trás a casa cheia. De ilusões, verdades não ditas, vontades oprimidas. Levou no corpo uma roupa nunca posta, os pêlos no rosto que sempre conservava bem cuidados, e um sorriso que há muito tempo não usava. O vento fresco veio lhe receber à porta. O sol se erguia aos poucos, ainda não de todo acordado. Rua à baixo foi se encontrando aos poucos. Estava nos rostos que lhe fitavam curiosos, nas casas velhas, o cheiro de fruta madura, que roubava do quintal dos vizinhos enquanto moleque... Encontrou-se bem mais nas ruas, do que nas fotos que as mantinha vivas.



 Foi dar consigo enquanto olhava o mar, os pés descalços cobertos pela areia fria, a massagear os dedos cheios de bolhas; o sal lhe impregnando, desgrenhando o cabelo fino. Tinha diante de si os pássaros beijando a água salgada, as ondas quebrando nas pedras, alguns peixes que sobressaiam, banhistas que se arriscavam ao banho frio, castelos de areia que ainda resistiam... A praia sempre foi seu refúgio. Olhar o mar lhe era deliberadamente revigorante. Não, minto! Olhar o mar era tomar das drogas mais fortes, entorpecia-se! Passava horas olhando o infinito, desejando que este lhe tragasse, e lhe mostrasse um paraíso submerso. Foi ali que tantas vezes descarregou suas frustrações, seus planos de vida fracassados... Andou tanto tempo ocupado com o claustro, e o medo em encarar o real, que já não lembrava o quanto aquela imensidão azul lhe fazia bem... Encontrou-se finalmente.
A casa continua como ele deixou. Sem vida. Os vizinhos não deram por sua falta. Seus amigos sempre vão à sua procura, depois da ausência das cartas que ele ainda fazia questão de escrever. O procuram em vão. É provável que nunca o achem. As más línguas dizem que ele já não vive; que a morte o encontrou errante. Os bons de espírito acreditam que ele vaga, contemplando a liberdade. Extasiado, embriaga-se dela pelo tempo que se esquivou. Mas a única verdade, é que ele se encontrou. Ele finalmente se encontrou.

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