sábado, 14 de abril de 2012

Harmonia dos Prazeres - Parte 1 de 2


Por Flávia Marques


Quando Harmonia dos Prazeres chegou à casa de Dona Iolanda, ainda respondia pelo nome de Agostina Maria da Silva e tinha a cabeça infestada de piolhos. Vestia uma blusinha de alças com estampa de flores miudinhas; tão apagada pelo uso que não contrastava mais com a saia listrada. Nos pés não usava nada, combinando com as mãos vazias. Perdera a mãe e o irmão mais novo para a fome e decidiu lutar contra o destino certo, pois possuía a teimosia dos sobreviventes. Completou dezoito anos dois dias após sua chegada à Cabiceira do Rio Seco, e bateu à porta do bordel para não ter que mendigar.

– Preciso de emprego – falou para a senhora alta que a atendeu –, senão vou morrer de fome. Não sei pedir, muito menos roubar. Tudo o que peço é um prato de comida, que para mim vale mais que ouro agora.

– Entre garota, não negocio nada com desesperados – disse Iolanda, amarrando os cabelos. – Coma alguma coisa e depois me diga se ainda quer trabalhar para mim. A vida aqui é dura e triste. Não a recomendo para quem tem outras habilidades.

– Dona, conheço a dureza da vida. Nada mais triste que ficar sozinha nesse mundo, com a morte esperando o momento certo para te levar. Acredite, se eu tivesse saída estaria lá.

– Qual seu nome, menina?

– Harmonia. Harmonia dos Prazeres.

Dona Iolanda soltou uma gargalhada de estremecer seus braços gordos e compridos.

– Seu nome de batismo, tolinha! Não acha que vou acreditar que te deram um nome já pensando que seu fim seria a vida.

Agostina se apresentou, mas decidiu logo na primeira semana que usaria um nome inventado, para não desrespeitar o que herdara da avó paterna. Escolheu um que fosse, ao mesmo tempo, uma identificação e uma propaganda. Dona Iolanda achou engraçado e a apelidou de Tininha, só para contrariar a mulata.

A chegada de Harmonia coincidiu com a festa da igreja. Como não era conhecida, conseguiu passar pelo crivo das beatas e montar uma barraquinha, um sonho antigo de dona Iolanda. Oferecia queijadinhas oficialmente, mas o prêmio secreto para quem comprasse o maior número de doces era a estreia da menina. Dona Iolanda garantiu que nenhum homem havia tocado a moça. Em pouco tempo, não havia vestígio de queijadinha na barraca improvisada. O sucesso entre os homens da cidade foi tanto que, para identificar o ganhador, Harmonia precisou recorrer ao caderninho onde registrou as vendas.

O prefeito ficou em terceiro lugar. Sua esposa, sem saber do prêmio, pediu que ele desse algumas para os eleitores mais chegados. Se tivesse sido a quermesse do ano passado ele certamente ganharia, mas esse ano estava com a popularidade baixa e pouquíssimos amigos. Em segundo ficou seu Finório, da padaria Flor de Cabiceira. Comprou 150 para vender durante a semana, dizendo que eram fresquinhas. O vencedor foi Tácito Eurípedes, o funileiro, que pagou por 215 queijadinhas e comeu só uma. As outras devolveu para serem vendidas novamente, recebendo das senhoras da igreja os mais altos elogios. Disseram que o pobre pagava uma promessa feita pela mãe quando ainda era bebezinho. A verdade é que ele estava enfeitiçado pela beleza inolvidável da morena de ancas largas e seios púberes, que andava descalça pelas ruas cumprimentando a todos com um sorriso estreme.

A primeira vez que Tácito viu Harmonia, soube que seu destino estava traçado desde o nascimento. E teve medo. Viu nos olhos da moça que nascia naquele instante para morrer por causa dele. Na noite de quermesse, quando soube que as queijadinhas eram o ingresso para os braços da amada, reuniu todas as suas economias e comprou o direito de estrear sua musa. Nutria a esperança de convencê-la a viver com ele – e confiava na força de seu amor. Tinha para oferecer uma vida simples, é verdade, mas honesta. Nos dias que se seguiram, arrumou a casa e fabricou utensílios novos para a cozinha, comprou mais uma cadeira e algum tecido para forrar a cama. A ansiedade foi tanta que o rapaz começou a passar mal no dia anterior ao marcado para receber o prêmio, e caiu de cama, gravemente enfermo.

O caso é que demoraram em socorrê-lo, pois morava só em uma das casinhas da vila de dona Argentina. Por ser muito reservado, os vizinhos não estranharam sua ausência durante quase dois dias. Quando faltou à entrega do prêmio a que tinha direito é que souberam do acontecido, porque a própria cafetina foi à casa do fazedor de lampião se desobrigar do compromisso. Saiu de lá mais enlaçada do que jamais fora em toda a sua vida. Não pôde negar ao moribundo o pedido que fez a ela: trocar uma noite com Harmonia pelos cuidados da moça durante sua enfermidade. Assim, dali a um quarto de hora, Harmonia descia a Rua da Alvorada para se meter nos corredores apertados da Vila Buenos Aires, com a missão de servir de consolo a Tácito Eurípedes nos dias de convalescença. A moça não achou a função difícil. Coisa pior era passar fome. De resto, suportaria quase tudo. Cuidava da alimentação de Tácito, fazia sua higiene, limpava seus penicos, aplicava-lhe compressas... Tudo com uma graça que só fazia aumentar a admiração do rapaz por ela. O doente esteve a ponto de piorar só para estender aqueles dias de cumplicidade; mas Harmonia era uma santa, e fez o milagre de erguer o funileiro da cama em pouco mais de uma semana.

Quando avisou que não voltaria mais, Harmonia foi surpreendida com um homem aos seus pés, declarando todo o amor que sentira desde a primeira vez que seus olhos vislumbraram tamanha beleza e graciosidade. O assombramento da jovem pode ser percebido pelo corpinho arrepiado e trêmulo. Jamais na vida alguém havia dito que a amava, sequer demonstrado, e agora aquele rapaz a fazia perceber-se gente, merecedora de algum sentimento. Chorou. Tácito ergueu-se de pronto. Enquanto observava a lágrima descer lentamente pelo rosto de Harmonia, pegou a mãozinha da moça e colocou o anel que havia sido de sua mãe. Era uma joia fininha, sem pedras ou qualquer outro enfeite, mas para os dois equivalia ao caminho que trilharam ao encontro um do outro. Se perguntassem a Harmonia se mudaria alguma coisa em seu passado, naquele instante ela responderia que nada; simplesmente porque tinha medo que algo a desviasse daquele momento mágico. Amou Tácito pelo amor que ele sentia por ela. Todas as tristezas de sua vida desapareceram e deram lugar à alegria de saber que, finalmente, pertencia a alguma história. Só que não é o passado que devemos temer. Ele não pode nos surpreender. O que nos pega desprevenidos, o que não podemos evitar, é o que está por vir. O futuro é que esconde, atrás de suas cortinas nebulosas, o que nos eleva e o que nos abate. E o futuro de Harmonia e Tácito ignorava por completo os planos que os dois passariam a fazer dali para frente.

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