terça-feira, 4 de agosto de 2020

Caminhada na pandemia 2:
Relógio

Por Denise Fernandes




E sinto um medo louco da morte. Medo de morrer não apenas da morte morrida, mas de outras mortes. Como se tudo que erro desabasse em cima da minha cabeça, ao mesmo tempo.

O coração subitamente vazio, como um deserto de pedra e penumbra. Claridade que acendo na base da tinta. Solidões. Lembro da frase que diz: "O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções". Mas a intenção de andar me toma por inteiro. Só pode ser uma boa intenção. Tantos sentimentos em mim, que não entendo.

Passo pela relojoaria do Cambuci. O dono da loja me dá um tchauzinho. Ele está sem máscara  e me sorri um sorriso aberto, feliz, pleno. Ele atende um cliente no balcão. Sorrio por baixo da máscara e me pergunto se ele vê o meu sorriso, de alguma forma. Se meus olhos sorriem, se foi amplo nosso encontro (ou tão rápido).

Lembro que a primeira vez que fui lá, ele apareceu e eu disse que estava só olhando. Ele disse que eu tinha bom gosto, que podia olhar, e que os relógios eram algo lindo. A relojoaria dele é lotada. Há relógios de todos os tipos ali. Enquanto conversávamos, ele tirou, detrás do balcão, um saquinho com pastéis de vento. Nem sei se ainda vendem pastéis de vento. Faz tempo que isso aconteceu. Ele fez questão que eu aceitasse um pastel. Como sou gulosa, aceitei. E também aceitei porque o gesto dele foi de uma gentileza, de uma simpatia... Que graça ele é!

Minha tarde ficou imensamente melhor depois de conhecer essa loja, que considero mágica. É um pecado meu ficar triste; já que tive tantas graças, tantos momentos profundos e inesperados em minha vida. Só não entro na loja por causa da pandemia.

A última vez que estive lá, ele disse: "Peraí, que vou pegar meu computador". E voltou com um caderno universitário velho, onde anotava todos os pedidos e promessas de conserto. Disse, então, que só trabalhava quando tinha vontade e que relógio consertado por ele, ficava bom de verdade. Não consigo lembrar o nome dele. Ele tem uma velhice que admiro tanto. Gostaria que a morte não me pegasse logo para ficar como ele, velhinha, na minha "loja de relógios", anotando num caderno universitário uma lista com promessas de trabalho.

Como fiquei feliz ao ganhar meu primeiro relógio de pulso. Tinha um esquilo desenhado nele. Por um bom tempo, conferi as horas a todo instante. Lembro que meus pais começaram a rir de mim. Tentei me controlar. Enquanto não descobrimos essa vocação para ser palhaça na vida, a gente se chateia quando se torna alvo de zombarias. O barulho do relógio me agradava.

Não quero pensar no inferno. Quero passar de novo por essa relojoaria mágica, onde o dono me sorri. E quem sabe, ter a sorte de provar um pastel de vento, recheado com tic-tac.

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