Por Amilcar
Neves*
- Levá-lo para casa, isso que eu
quero.
- Desculpe, dona, mas só
transportamos doentes. E ele está recebendo alta.
- Ele quem? Como é que vocês se
referem assim, com tamanho descaso, ao meu marido? Por acaso vocês o conhecem?
Sabem o que ele fez de bom ou de ruim na vida? Sabem se é apenas mais um
canalha que envelheceu ou um cidadão decente que merece todos os cuidados
possíveis e todo o respeito devido a um ser humano honrado? E se ele for alguém
tão importante para o mundo quanto é para mim?
- Desculpe, dona, não tivemos
intenção de ofender, é que...
- Mas ofenderam! Vocês ofendem a
dor suprema de uma mulher dedicada, de uma amante orgulhosa do seu amor, de uma
família que paga seus impostos rigorosamente em dia! O que vocês pensam que
são? Deuses? Vereadores? Vendedores de seguro?
- Desculpe, dona, a senhora
precisa entender que obedecemos ordens, que temos regras rígidas e severas a
seguir, que há procedimentos básicos a cumprir, que...
- Basta! Não vou discutir com
vocês. Muito menos nesta situação dramática. Meu marido vai para casa agora e
vocês é que irão levá-lo - com ordens, com regras, com procedimentos ou sem
nenhuma dessas porcarias.
- Desculpe, dona, o que nos
complica a vida é essa alta que ele, desculpe, dona, que o seu marido acaba de
receber do hospital. Entenda, dona, por favor. Só podemos transportar doentes
graves, pessoas em agudo risco de vida. Seremos drasticamente punidos se a
empresa de emergências médicas que nos emprega sequer suspeitar que estamos,
digamos assim, fazendo concorrência desleal ao serviço de táxis. Especialmente
nesta cidade em que os casos de emergência se multiplicam num final de semana
como este, mesmo numa manhã de sábado como esta.
- Alta médica? Vocês estão loucos
ou o quê? Quem falou em alta do hospital? Meu marido precisa, meu marido quer
dar uma chegada em casa, ver seu canto, suas coisas, e se despedir de tudo.
Logo estará de volta, seu quarto e sua cama aqui no hospital continuarão
reservados para ele. Ele está bem pior do que antes, vocês não conseguem
enxergar isso? Vocês entendem por acaso de fim da vida? Psiu!, sem uma palavra.
Não me venham com experiência profissional, eu falo de experiência de vida. Vocês
estão acostumados com a morte de pessoas, mas não sabem nada sobre como as
pessoas verdadeiramente morrem. Por isso é que vocês vão levar meu marido para
casa, como ele pede para ir, e depois irão buscá-lo para trazê-lo de volta
quando ele achar que terá chegado o momento de voltar. Quando tiver chegado a
hora dele, a hora de ele voltar.
- Desculpe, dona, tudo bem, até
podemos levar ele...
- Levá-lo!
- … para casa, a senhora tem aí
esse documento do médico, mas se nos chamar em menos de uma semana terá de
pagar a taxa de reincidência, como a gente chama, que custa 500 reais.
- Quinhentos reais. Perfeito.
Então eu ligo para a polícia, conto o que vocês estão querendo cobrar de um
segurado fiel e nós vamos passar o resto da vida discutindo esses 500 paus na
Justiça.
- Desculpe, dona, nós temos que
falar tudo isso para os clientes, está na nossa descrição de função. Nós
entendemos sua situação, percebemos que seu marido vai passar o final de semana
em casa...
- O final da vida.
- … para se despedir do mundo,
câncer é mesmo uma doença danada, mas não se preocupe, tudo dará certo, nós
vamos levar ele...
- Levá-lo!
- … para casa e depois, quando a
senhora ligar, a gente traz seu marido de volta para ele cumprir enfim sua
missão neste mundo de Deus.
*
Conto publicado no jornal "Diário Catarinense" de 12.03.14
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