Por Denise Fernandes
Na rádio da minha cabeça
toca há dias "Black Bird". Cantarolo a música e faço um refrão com o
mesmo inglês que tinha aos seis anos de idade. É difícil segurar o riso com a
cena. O Lucas procura a música na internet e põe pra gente ouvir. Coloco o
vinil do "Abbey Road" e ouvimos. Beatles forever. Eu também atravesso
na faixa com os Beatles, estou quase na capa do disco.
Mas mesmo com muita
música, o Black Bird ficou insistindo, solitário, na minha memória. Talvez seja
porque tenho uma asa quebrada. Da janela olho o mundo. Ele passa sem banda
nenhuma e não sou Carolina. Sou tão parecida com esse black bird, que sinto que
saí da boca dos Beatles, de suas mãos sábias, tenho vários lados meus que são
canção, que escuto no silêncio da minha alma.
Na feira livre que
frequento, o pássaro preto empoleirado vigia e alegra a barraca dos temperos.
Livre, solto, mas preso aos seus afetos, o casal que o alimenta, acaricia. Da
casa para a feira, da feira para a casa. Enquanto sua dona muda seu cabelo de
um tom alaranjado para um mais alaranjado ainda, o pássaro estável, tão frágil
e tão profundo, o pássaro preto nos aguarda.
Tive um vizinho que ouvia
todo dia, num período de alguns meses, a música "Black Bird". Ele
gostava de ouvir alto, ele no décimo andar, eu no nono, o quarto dele em cima
do meu. Enquanto ele teve essa fase "Black Bird", eu também tive.
Depois do primeiro mês, eu já esperava a música tocar. Fazia parte do dia. Como
uma emoção. Um dia alguém me deu uma frase de um poeta chamado Tagore. A frase
dizia que Deus gostava de mim quando eu rezava, mas gostava mais ainda de mim
quando eu cantava.
Acho que é porque uma
parte da alma do homem tem tudo de pássaro e voa. Talvez alguns homens tenham
alma de pássaro preto mesmo. Pode ser que haja também um coração de pássaro
dentro do meu peito. E uns ovos para colocar. Pode ser que, nessa parte que
ainda em mim sangra, haja muitos ovinhos capazes de gerar pequenas plumas
cercadas de olhinhos. Enquanto eu penso estar na minha casa, estou num ninho. E
é por isso que o pássaro preto ainda está aqui.
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