terça-feira, 16 de outubro de 2012

Sem Medo de Morrer

Por Denise Fernandes
        


Ainda bem que estou viva. Agora que pensei: só enquanto estiver viva poderei escrever. Não estou pondo com isso à prova a psicografia. Não tenho a pretensão de contestar qualquer assunto ligado a Deus. Ouvi uma vez uma frase que me disseram ser de Jung: eu conheço Deus. Em minha opinião, a união entre ciência e religião seria benéfica para todos.

  Mas hoje também acordei com a consciência fina que vou morrer e gostaria de pedir ao Brasil, ao mundo e à USP que investigasse definitivamente a cor das pessoas. Gostaria também de pedir cotas para os indígenas e a legalização do cânhamo: se os negros têm direito a essas cotas, os indígenas também têm. Para o Papai Noel, peço a paz mundial.

 Estou num mundo que não existe, já acabou. Não é a profecia maia. Sou verde e invisível, sempre burra e ausente, escrava e mulher. Não sou rica, não sou pobre, não sou fantástica. Não tenho muitos amigos – e mesmo estes não me conhecem muito bem. Se me conhecessem, não teriam me magoado tanto e tantas vezes, por questões tão pequenas. Meu ex-marido nunca me amou como eu o amei. Quase nunca meu amor foi correspondido. Ganhei duas medalhas no jogo de queimada do Colégio Pequenópolis, em São Paulo. Só ajudei mesmo no time porque eu era tão magra que parecia uma linha; a bola não conseguia me achar. Não estou neste mundo sempre. Tenho dores inexplicáveis que não consigo escalar de um a dez para a enfermeira, nem para os médicos. Algumas vezes, as dores se movem como serpentes no meu corpo.

Tenho muitas saudades do meu avô Ídio da Silva, que já morreu. Mesmo enfrentando dificuldades com o álcool, ele teve uma paciência comigo que nunca mais ninguém teve. Eu não me entendo. Sinto uma falta de amor no mundo que me dá tanta vontade de chorar... Quis fazer o enterro de uma aranha que morreu, só para poder chorar um pouquinho. Tenho bunda grande, mas não sou “boa de cama”. Será que pode falar bunda ou é melhor falar bumbum? Tenho horror à depilação e não quero mais “fazer as sobrancelhas”? Elas não estão feitas? Só não perdi a cabeça porque ela está grudada no meu corpo. Tenho gastrite crônica, sou asmática e tenho muitas varizes e celulites. Tenho mau hálito. Arroto. Peido. Morro de medo. Mijo na calcinha. Tenho incontinência urinária. Sou avó. Nunca li a obra inteira do Freud ou de qualquer autor. Nunca saí do meu país e nem tenho mais vontade. Tem um pedaço do mundo no meu peito. Meu segundo filho tem vergonha de mim. Sinto-me muito triste, às vezes, por tudo. Choro por mim e pelos outros.

Não acredito num futuro melhor. Para mim, como para a Elis Regina, “black is beautiful”. Se eu fosse um país, eu seria o Japão, com seus terremotos e sua ética-samurai. Sou zen. Amo o simples. Prefiro cachaça a uísque. Gosto de fumar e estar com um “processo degenerativo” no pulmão, como disse o médico. Acho um saco. Fiquei com raiva do médico. Ele não tem culpa, mas minhas raivas surgem sem motivo. Tenho unha encravada quase sempre. Tenho dó de mim. Tenho quase todos os vícios que se pode imaginar e preciso lutar contra eles com uma espada invisível. Quase sempre perco.

         Cai lá fora uma chuva gostosa, que me lembra algo que nem sei o que é. Às vezes, me desconheço tanto que só escrevendo me sinto contente. Buscar as letras no teclado, escrever e reescrever...

         Ontem fui assaltada, me urinei na rua e descobri que não sou ninguém. Sou de plástico, estamos num mundo de borracha, em que ninguém precisa de nada sólido. Já tive dois filhos, um neto, tentei ser inteligente e sempre fui burra. Tantas coisas eu fiz, apareci na telinha da Globo várias vezes. Mas nada importa. Tenho hemorroidas e dores nas costas. Tenho ideias. E sentimentos presos na minha garganta. Quando eu morrer, me enterrem na Lapinha...

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