Por Denise Fernandes
Ainda bem que estou viva. Agora que pensei: só enquanto
estiver viva poderei escrever. Não estou pondo com isso à prova a psicografia.
Não tenho a pretensão de contestar qualquer assunto ligado a Deus. Ouvi uma vez
uma frase que me disseram ser de Jung: eu conheço Deus. Em minha opinião, a
união entre ciência e religião seria benéfica para todos.
Mas hoje também acordei com a consciência fina
que vou morrer e gostaria de pedir ao Brasil, ao mundo e à USP que investigasse
definitivamente a cor das pessoas. Gostaria também de pedir cotas para os
indígenas e a legalização do cânhamo: se os negros têm direito a essas cotas,
os indígenas também têm. Para o Papai Noel, peço a paz mundial.
Estou num mundo
que não existe, já acabou. Não é a profecia maia. Sou verde e invisível, sempre
burra e ausente, escrava e mulher. Não sou rica, não sou pobre, não sou
fantástica. Não tenho muitos amigos – e mesmo estes não me conhecem muito bem.
Se me conhecessem, não teriam me magoado tanto e tantas vezes, por questões tão
pequenas. Meu ex-marido nunca me amou como eu o amei. Quase nunca meu amor foi
correspondido. Ganhei duas medalhas no jogo de queimada do Colégio Pequenópolis,
em São Paulo. Só ajudei mesmo no time porque eu era tão magra que parecia uma
linha; a bola não conseguia me achar. Não estou neste mundo sempre. Tenho dores
inexplicáveis que não consigo escalar de um a dez para a enfermeira, nem para
os médicos. Algumas vezes, as dores se movem como serpentes no meu corpo.
Tenho muitas saudades do meu avô Ídio da Silva, que já
morreu. Mesmo enfrentando dificuldades com o álcool, ele teve uma paciência
comigo que nunca mais ninguém teve. Eu não me entendo. Sinto uma falta de amor
no mundo que me dá tanta vontade de chorar... Quis fazer o enterro
de uma aranha que morreu, só para poder chorar um pouquinho. Tenho bunda grande,
mas não sou “boa de cama”. Será que pode falar bunda ou é melhor falar bumbum?
Tenho horror à depilação e não quero mais “fazer as sobrancelhas”? Elas não
estão feitas? Só não perdi a cabeça porque ela está grudada no meu corpo. Tenho
gastrite crônica, sou asmática e tenho muitas varizes e celulites. Tenho mau hálito.
Arroto. Peido. Morro de medo. Mijo na calcinha. Tenho incontinência urinária.
Sou avó. Nunca li a obra inteira do Freud ou de qualquer autor. Nunca saí do
meu país e nem tenho mais vontade. Tem um pedaço do mundo no meu peito. Meu
segundo filho tem vergonha de mim. Sinto-me muito triste, às vezes, por tudo.
Choro por mim e pelos outros.
Não acredito num futuro melhor. Para mim, como para a
Elis Regina, “black is beautiful”. Se eu fosse um país, eu seria o Japão, com seus
terremotos e sua ética-samurai. Sou zen. Amo o simples. Prefiro cachaça a
uísque. Gosto de fumar e estar com um “processo degenerativo” no pulmão, como
disse o médico. Acho um saco. Fiquei com raiva do médico. Ele não tem culpa,
mas minhas raivas surgem sem motivo. Tenho unha encravada quase sempre. Tenho
dó de mim. Tenho quase todos os vícios que se pode imaginar e preciso lutar contra
eles com uma espada invisível. Quase sempre perco.
Cai lá fora uma chuva
gostosa, que me lembra algo que nem sei o que é. Às vezes, me desconheço tanto
que só escrevendo me sinto contente. Buscar as letras no teclado, escrever e
reescrever...
Ontem fui assaltada, me
urinei na rua e descobri que não sou ninguém. Sou de plástico, estamos num
mundo de borracha, em que ninguém precisa de nada sólido. Já tive dois filhos,
um neto, tentei ser inteligente e sempre fui burra. Tantas coisas eu fiz,
apareci na telinha da Globo várias vezes. Mas nada importa. Tenho hemorroidas e
dores nas costas. Tenho ideias. E sentimentos presos na minha garganta. Quando
eu morrer, me enterrem na Lapinha...
Nenhum comentário :
Postar um comentário