domingo, 28 de outubro de 2012

Nego Gato

Por Érika Batista


 
 
            Era uma vez, não faz muito tempo, em uma aldeia sul-africana, uma moça muito, muito bonita. Quando ela tinha uns 12, 13 anos, estava colhendo ervas para fazer curativos na perna do seu pai, que fora mordido por um crocodilo. De repente, bateu um vento e duas folhas voaram de sua mão. Elas caíram sobre um pedaço de carvão que tinha sobrado da fogueira da noite anterior. A menina olhou e, achando muito bonito o contraste entre o negro do carvão e o verde intenso das folhas, suspirou:

            – Eu queria ter um menininho assim, negro como esse carvão e com os olhos verdes, feito essas folhas – disse para a irmã, que estava com ela.

            – Deixa de besteira, menina – replicou a irmã. – Vamos logo levar isso para a mãe.

            O tempo passou. O pai delas sobreviveu. As meninas cresceram e ficaram lindas. A nossa amiga foi pedida em casamento por muitos, então seus pais deixaram que ela escolhesse o melhor. Mas ela não escolheu nenhum.

            E assim foi até que um dia uma empresa inglesa comprou aquelas terras para procurar diamantes. Os nativos foram expulsos ou “convidados” a trabalhar no garimpo por um preço baixíssimo. A família da menina ficou ali trabalhando.

            Certa vez, o dono estava fazendo uma inspeção nos “seus” territórios e tinha levado junto o filho, um loiro alto, bonito, de olhos verdes. Ele viu a nossa menina, que então contava dezoito anos incompletos. Ela também o viu. Foi amor à primeira vista. O rapaz foi falar com ela, fingindo displicência, e descobriu seu nome e sua história. Ficou ainda mais apaixonado. Quando, mais tarde, falou ao pai do projeto de casar-se com uma das suas empregadas, o velho teve um ataque. Disse que nunca um filho dele se casaria com uma mulher de classe inferior, muito menos com uma negra! Se o rapaz insistisse em desobedecê-lo, seria deserdado. Mas o moço estava mesmo apaixonado, nem ligou para a ameaça. Na mesma noite foi visitar sua amada. Eles combinaram de fugir e fugiram. Casaram-se na capital e passaram a lutar pela sobrevivência.

            Depois de algum tempo, a moça engravidou e deu a luz a um menino, o menino mais lindo já visto. Ele herdara a pele profundamente negra da mãe e os olhos verde-intenso do pai. Parecia uma pantera e todos se admiravam com a beleza dele. Seus amigos achavam que Nego-Pantera era um apelido meio ofensivo e passaram a chama-lo de Nego-Gato, que é um animal menor e macho. A família tinha uma vida feliz, lutando contra o Apartheid, uma lei que legalizava o racismo na África do Sul, naquela época. Quando a família ia passar por uma daquelas escadas divididas, andavam todos de mãos dadas, o menino sobre o corrimão, sendo a ligação entre os pais. E eles também nunca jantavam fora ou iam a lugares onde não pudessem entrar juntos. Se tinha guerrilha armada, os pais do menino nunca hesitavam em ajudar o lado dos negros.

            E essa foi, por ironia do destino, a causa do infortúnio do nosso querido Nego-Gato. O menino tinha nove anos num dia em que seu pai chegou sozinho na humilde casinha em que moravam, chorando copiosamente. Abraçou o menino e continuou a chorar, acariciando-lhe a cabeça e murmurando “Ah, meu filho... meu filho...” O menino não era burro, entendeu o que tinha acontecido. Chorando, também, tentou consolar o pai:

            – C-calma, papai... Nós ainda temos um ao outro.
            – É v-verdade...

            Sim, mas não por muito tempo. O avô do pequeno Nego-Gato, aquele dono da mineradora, nunca mais havia visto o filho, mas ainda se lembrava da mulher que o roubara. Quando abriu o jornal e reconheceu-a entre os mortos na foto, exultou, e imediatamente fez um testamento deixando tudo ao filho, se ele se casasse novamente “e com uma mulher decente, desta vez”. Já havia perdoado o seu rebento por aquilo que chamara de “insensatez da juventude”. Não lhe agradava mesmo a ideia de que seus bens saíssem da família. Pouco depois o velho morreu, sem ter conseguido encontrar o herdeiro.

            Mas o seu advogado conseguiu. Quando fez a proposta ao loiro, o primeiro impulso deste foi recusá-la, pois a lembrança de sua negrinha ainda estava muito viva na memória. Depois pensou que poderia dar uma vida melhor ao filho se aceitasse e foi o que fez.

            Quando correu a notícia de que ele era muito rico, choveram interesseiras. Ele tinha três meses para casar-se novamente e acabou se decidindo por uma linda morena, de olhos azuis e pele rosada, mas que era tão má quanto bela. Logo de início odiou o Nego-Gato, pois seu pai o amava mais que a esposa, e determinou que acabar com o garoto seria o objetivo de sua vida.

            Com muita sedução e persuasão foi fazendo o marido desistir da causa dos negros. Por causa do trabalho, ele passava cada vez menos tempo com o filho. Quando saía, o guri ainda estava dormindo, e quando voltava, já tinha ido dormir. Descuidou da educação do menino, que ficou nas mãos da madrasta. Ela tirou-o da boa escola onde estudava e botou-o para trabalhar fazendo consertos na mansão onde morava, cuidando do jardim. Nego-Gato vivia com os empregados e tinha um ótimo humor, mesmo assim. Gostava do pai e, quando estava com ele, não queria perder tempo queixando-se dos maus tratos.

            No aniversário de onze anos do garoto, o pai tinha prometido passar o dia com ele. Mas a mulher tramou tudo de um jeito que o fez esquecer a promessa. Quando Nego-Gato veio cobrar do pai o compromisso, este falou que não podia ir, pois tinha um almoço de negócios marcado. Meio decepcionado, o garoto sugeriu ir junto com o pai, ao que este retrucou que não seria possível, pois almoçaria num restaurante só para brancos.

            O mundo do Nego-Gato caiu. O garoto nunca tinha pensado que seu pai fosse capaz de uma coisa destas. O mordomo veio conversar com ele e convidou-o para um passeio. Isso eram instruções da madrasta: ele ganhou mil libras para sumir com o menino, matá-lo, vendê-lo como escravo, qualquer coisa. Essa era a intenção do empregado, mas quando viu o rosto desolado do garoto, pensou que ele já sofria o bastante. Contou tudo a ele e ajudou-o a fugir da madrasta, dividindo o dinheiro com ele e colocando-o em um navio para o Brasil. A viagem foi agradável, apesar dele não poder viajar na primeira classe nem que pagasse muito mais caro.

            Nego-Gato tinha ouvido falar desse país. Lá os negros e os brancos tinham direitos iguais. Achou que seria feliz num lugar como esse. Mas a realidade não era bem assim.

            Ele não era aceito senão nas pensões mais pobres. Mesmo lá recebia uma vigilância maior. O aluguel era alto e seu dinheiro acabou em pouco tempo. O rapaz tinha recém aprendido a língua portuguesa (eles falam inglês na África do Sul) e não tinha arrumado trabalho. Um dia, estava andando pelas ruas com muita fome quando viu uma pitangueira no quintal de uma casa. Adorava pitangas. Subiu lá e estava matando sua fome, quando uma senhora gordinha saiu de dentro da casa.

            – Desce daí, moleque!
            – Desculpa, senhora. Eu não queria roubar, não, só estava com fome e...

            Nisso, mais seis velhinhas saíram da casa e rodearam Nego-Gato, que a essa altura do campeonato tinha doze anos e era de admirar, de tão bonito que era. Elas ficaram com pena do garoto e resolveram ficar com ele. Em troca, ele era menino de recados e cuidava do pomar da casa, que era muito importante pois dali as velhinhas, que formavam uma cooperativa de doceiras, tiravam o seu sustento. Ele também entregava as encomendas. As velhas gostavam muito dele, todas, embora umas fossem mais ranzinzas, e outras bem humoradas, e assim eles viveram muitos anos bem tranquilos e alegres.

            Enquanto isso, na África do Sul...

            Quando o pai de Nego-Gato soube pela esposa que ele havia “fugido” de casa, ficou inconsolável. Por mais que ela falasse que a culpa não era dele, que o menino é que era um ingrato, ele não ficava menos triste. Acabou morrendo de desgosto, pois por mais que fizesse, não conseguia encontrá-lo. Suas posses foram todas para a esposa, que era o “parente” mais próximo depois do filho. E ela curtiu a vida.

            Vários anos depois, o mordomo, que tinha sumido no mundo, reapareceu na casa da megera. Disse que o menino estava vivo no Brasil e que ele queria determinada quantia de dinheiro para não abrir o bico a respeito do que ela fizera. Ela pagou o chantagista, que sumiu. Mesmo assim a mulher ficou preocupada e resolveu acabar de vez com o herdeiro para que ele não viesse reclamar o que era seu por direito. Então mandou detetives reconstituírem os passos do Nego-Gato desde que ele se fora. Descobriram onde ele estava. A mulher resolveu ir pessoalmente dar cabo do rapaz pois, desde a chantagem do mordomo, ela acreditava que se quer algo bem feito, você mesmo deve fazê-lo.

            Nego-Gato, nessa época, tinha acabado de fazer dezoito anos e era um negro alto, forte e lindo, com olhos mais verdes que os do Brad Pitt. Ele estava terminando o segundo grau. Muitas meninas viviam no pé dele, mas o rapaz não ligava para elas. Vivia ocupado por seus estudos e pelo trabalho com as velhinhas.

            Um dia foi chamado para entregar uma encomenda em um hotel. Normal, ele sempre fazia isso. Bem que achou estranha a mulher de olhos azuis que recebeu a encomenda, mas não viu mal em aceitar as pitangas que ela lhe oferecia. Botou-as no bolso e só lembrou-se de comê-las quando fazia as tarefas debaixo de uma árvore no quintal de casa.

            Quando uma das velhinhas foi chamá-lo para jantar, encontrou-o desacordado. Por mais que sacudisse Nego-Gato, o danado não acordava. Então encontrou sobre os cadernos do rapaz umas frutinhas de mata-cavalo. Ele tinha comido aquele veneno pensando que eram pitangas! Seu choro atraiu as outras velhas. Elas resolveram dar-lhe um enterro digno. E ficaram velando-o no jardim. No outro dia, cedo, foram providenciar o funeral.

            Um grupo de patricinhas saiu da casa do vizinho, onde houvera uma balada na noite anterior. Ao passar pelo jardim das doceiras, viram o cadáver de Nego-Gato.

            – Que gato! Por que ele está dormindo ali?
            – Sei lá. Vamos perguntar.
            E entraram.
            – Ele não tá dormindo não, tá morto!
            – Não parece. É tão bonito...

            Uma loira – que era a líder do grupinho – aproximou-se de Nego-Gato e acariciou seu rosto. Ele acordou. Não tinha morrido porque era mais forte que um cavalo. Mas as frutas ainda estavam em seu estômago, e ele vomitou nos pés das garotas, que saíram correndo e berrando, enojadas. Só uma ficou. Uma linda índia, de cabelos compridos e negros e olhos amendoados.

            Pela segunda vez nessa história, foi amor à primeira vista. Os dois começaram a conversar, um contou sua vida ao outro. A índia disse que seu pai era um acionista rico, que tinha se separado da mãe daquela loirinha líder das patricinhas para casar com uma índia que encontrara em uma viagem. Quando ficou viúvo, reatou com a ex-mulher, que se vingava da rival na filha desta, fazendo-a servir de dama de companhia para sua própria filha, uma consumista fútil e sem cérebro.

            O sonho da amada de Nego-Gato era voltar para o Amazonas, para a tribo de sua mãe. E eles resolveram correr juntos atrás desse sonho; com a ajuda e conivência das doceiras, que estavam muito felizes por seu Nego-Gato ter ressuscitado.
 
            Com pouco dinheiro e algumas caronas, eles chegaram a seu destino: a mesma tribo Yanomami onde se tinha alojado um certo astro do rock inglês e célebre. Como Nego-Gato sabia falar inglês, esse músico ensinou-o a tocar alguns instrumentos e depois de alguns anos na tribo, Nego-Gato e sua índia saíram numa turnê musical pelo Brasil. Contavam suas histórias nas músicas e conseguiram um bom dinheiro, que doaram. Ainda hoje fazem seus shows e vivem muito felizes. Combinaram que quando a morte os separasse, o outro trataria de contar sua história no estrangeiro. Mas nenhum dos dois está ansioso por deixar o país.

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