Era uma vez, não faz
muito tempo, em uma aldeia sul-africana, uma moça muito, muito bonita. Quando
ela tinha uns 12, 13 anos, estava colhendo ervas para fazer curativos na perna
do seu pai, que fora mordido por um crocodilo. De repente, bateu um vento e
duas folhas voaram de sua mão. Elas caíram sobre um pedaço de carvão que tinha
sobrado da fogueira da noite anterior. A menina olhou e, achando muito bonito o
contraste entre o negro do carvão e o verde intenso das folhas, suspirou:
– Eu queria ter um
menininho assim, negro como esse carvão e com os olhos verdes, feito essas
folhas – disse para a irmã, que estava com ela.
– Deixa de besteira,
menina – replicou a irmã. – Vamos logo levar isso para a mãe.
O tempo passou. O pai
delas sobreviveu. As meninas cresceram e ficaram lindas. A nossa amiga foi
pedida em casamento por muitos, então seus pais deixaram que ela escolhesse o
melhor. Mas ela não escolheu nenhum.
E assim foi até que um
dia uma empresa inglesa comprou aquelas terras para procurar diamantes. Os
nativos foram expulsos ou “convidados” a trabalhar no garimpo por um preço
baixíssimo. A família da menina ficou ali trabalhando.
Certa vez, o dono estava
fazendo uma inspeção nos “seus” territórios e tinha levado junto o filho, um
loiro alto, bonito, de olhos verdes. Ele viu a nossa menina, que então contava
dezoito anos incompletos. Ela também o viu. Foi amor à primeira vista. O rapaz
foi falar com ela, fingindo displicência, e descobriu seu nome e sua história.
Ficou ainda mais apaixonado. Quando, mais tarde, falou ao pai do projeto de
casar-se com uma das suas empregadas, o velho teve um ataque. Disse que nunca
um filho dele se casaria com uma mulher de classe inferior, muito menos com uma
negra! Se o rapaz insistisse em desobedecê-lo, seria deserdado. Mas o moço
estava mesmo apaixonado, nem ligou para a ameaça. Na mesma noite foi visitar
sua amada. Eles combinaram de fugir e fugiram. Casaram-se na capital e passaram
a lutar pela sobrevivência.
Depois de algum tempo, a
moça engravidou e deu a luz a um menino, o menino mais lindo já visto. Ele
herdara a pele profundamente negra da mãe e os olhos verde-intenso do pai.
Parecia uma pantera e todos se admiravam com a beleza dele. Seus amigos achavam
que Nego-Pantera era um apelido meio ofensivo e passaram a chama-lo de
Nego-Gato, que é um animal menor e macho. A família tinha uma vida feliz,
lutando contra o Apartheid, uma lei que legalizava o racismo na África do Sul,
naquela época. Quando a família ia passar por uma daquelas escadas divididas,
andavam todos de mãos dadas, o menino sobre o corrimão, sendo a ligação entre
os pais. E eles também nunca jantavam fora ou iam a lugares onde não pudessem
entrar juntos. Se tinha guerrilha armada, os pais do menino nunca hesitavam em ajudar
o lado dos negros.
E essa foi, por ironia do
destino, a causa do infortúnio do nosso querido Nego-Gato. O menino tinha nove
anos num dia em que seu pai chegou sozinho na humilde casinha em que moravam,
chorando copiosamente. Abraçou o menino e continuou a chorar, acariciando-lhe a
cabeça e murmurando “Ah, meu filho... meu filho...” O menino não era burro,
entendeu o que tinha acontecido. Chorando, também, tentou consolar o pai:
– C-calma, papai... Nós
ainda temos um ao outro.
– É v-verdade...
Sim, mas não por muito
tempo. O avô do pequeno Nego-Gato, aquele dono da mineradora, nunca mais havia
visto o filho, mas ainda se lembrava da mulher que o roubara. Quando abriu o
jornal e reconheceu-a entre os mortos na foto, exultou, e imediatamente fez um testamento
deixando tudo ao filho, se ele se casasse novamente “e com uma mulher decente,
desta vez”. Já havia perdoado o seu rebento por aquilo que chamara de
“insensatez da juventude”. Não lhe agradava mesmo a ideia de que seus bens
saíssem da família. Pouco depois o velho morreu, sem ter conseguido encontrar o
herdeiro.
Mas o seu advogado
conseguiu. Quando fez a proposta ao loiro, o primeiro impulso deste foi
recusá-la, pois a lembrança de sua negrinha ainda estava muito viva na memória.
Depois pensou que poderia dar uma vida melhor ao filho se aceitasse e foi o que
fez.
Quando correu a notícia
de que ele era muito rico, choveram interesseiras. Ele tinha três meses para
casar-se novamente e acabou se decidindo por uma linda morena, de olhos azuis e
pele rosada, mas que era tão má quanto bela. Logo de início odiou o Nego-Gato,
pois seu pai o amava mais que a esposa, e determinou que acabar com o garoto
seria o objetivo de sua vida.
Com muita sedução e
persuasão foi fazendo o marido desistir da causa dos negros. Por causa do
trabalho, ele passava cada vez menos tempo com o filho. Quando saía, o guri
ainda estava dormindo, e quando voltava, já tinha ido dormir. Descuidou da
educação do menino, que ficou nas mãos da madrasta. Ela tirou-o da boa escola
onde estudava e botou-o para trabalhar fazendo consertos na mansão onde morava,
cuidando do jardim. Nego-Gato vivia com os empregados e tinha um ótimo humor,
mesmo assim. Gostava do pai e, quando estava com ele, não queria perder tempo
queixando-se dos maus tratos.
No aniversário de onze
anos do garoto, o pai tinha prometido passar o dia com ele. Mas a mulher tramou
tudo de um jeito que o fez esquecer a promessa. Quando Nego-Gato veio cobrar do
pai o compromisso, este falou que não podia ir, pois tinha um almoço de
negócios marcado. Meio decepcionado, o garoto sugeriu ir junto com o pai, ao
que este retrucou que não seria possível, pois almoçaria num restaurante só
para brancos.
O mundo do Nego-Gato
caiu. O garoto nunca tinha pensado que seu pai fosse capaz de uma coisa destas.
O mordomo veio conversar com ele e convidou-o para um passeio. Isso eram
instruções da madrasta: ele ganhou mil libras para sumir com o menino, matá-lo,
vendê-lo como escravo, qualquer coisa. Essa era a intenção do empregado, mas
quando viu o rosto desolado do garoto, pensou que ele já sofria o bastante.
Contou tudo a ele e ajudou-o a fugir da madrasta, dividindo o dinheiro com ele
e colocando-o em um navio para o Brasil. A viagem foi agradável, apesar dele
não poder viajar na primeira classe nem que pagasse muito mais caro.
Nego-Gato tinha ouvido
falar desse país. Lá os negros e os brancos tinham direitos iguais. Achou que
seria feliz num lugar como esse. Mas a realidade não era bem assim.
Ele não era aceito senão
nas pensões mais pobres. Mesmo lá recebia uma vigilância maior. O aluguel era
alto e seu dinheiro acabou em pouco tempo. O rapaz tinha recém aprendido a
língua portuguesa (eles falam inglês na África do Sul) e não tinha arrumado
trabalho. Um dia, estava andando pelas ruas com muita fome quando viu uma
pitangueira no quintal de uma casa. Adorava pitangas. Subiu lá e estava matando
sua fome, quando uma senhora gordinha saiu de dentro da casa.
– Desce daí, moleque!
– Desculpa, senhora. Eu
não queria roubar, não, só estava com fome e...
Nisso, mais seis
velhinhas saíram da casa e rodearam Nego-Gato, que a essa altura do campeonato
tinha doze anos e era de admirar, de tão bonito que era. Elas ficaram com pena
do garoto e resolveram ficar com ele. Em troca, ele era menino de recados e cuidava
do pomar da casa, que era muito importante pois dali as velhinhas, que formavam
uma cooperativa de doceiras, tiravam o seu sustento. Ele também entregava as
encomendas. As velhas gostavam muito dele, todas, embora umas fossem mais
ranzinzas, e outras bem humoradas, e assim eles viveram muitos anos bem tranquilos
e alegres.
Enquanto isso, na África
do Sul...
Quando o pai de Nego-Gato
soube pela esposa que ele havia “fugido” de casa, ficou inconsolável. Por mais
que ela falasse que a culpa não era dele, que o menino é que era um ingrato,
ele não ficava menos triste. Acabou morrendo de desgosto, pois por mais que
fizesse, não conseguia encontrá-lo. Suas posses foram todas para a esposa, que
era o “parente” mais próximo depois do filho. E ela curtiu a vida.
Vários anos depois, o
mordomo, que tinha sumido no mundo, reapareceu na casa da megera. Disse que o
menino estava vivo no Brasil e que ele queria determinada quantia de dinheiro
para não abrir o bico a respeito do que ela fizera. Ela pagou o chantagista,
que sumiu. Mesmo assim a mulher ficou preocupada e resolveu acabar de vez com o
herdeiro para que ele não viesse reclamar o que era seu por direito. Então
mandou detetives reconstituírem os passos do Nego-Gato desde que ele se fora.
Descobriram onde ele estava. A mulher resolveu ir pessoalmente dar cabo do
rapaz pois, desde a chantagem do mordomo, ela acreditava que se quer algo bem
feito, você mesmo deve fazê-lo.
Nego-Gato, nessa época,
tinha acabado de fazer dezoito anos e era um negro alto, forte e lindo, com
olhos mais verdes que os do Brad Pitt. Ele estava terminando o segundo grau.
Muitas meninas viviam no pé dele, mas o rapaz não ligava para elas. Vivia
ocupado por seus estudos e pelo trabalho com as velhinhas.
Um dia foi chamado para
entregar uma encomenda em um hotel. Normal, ele sempre fazia isso. Bem que
achou estranha a mulher de olhos azuis que recebeu a encomenda, mas não viu mal
em aceitar as pitangas que ela lhe oferecia. Botou-as no bolso e só lembrou-se
de comê-las quando fazia as tarefas debaixo de uma árvore no quintal de casa.
Quando uma das velhinhas
foi chamá-lo para jantar, encontrou-o desacordado. Por mais que sacudisse
Nego-Gato, o danado não acordava. Então encontrou sobre os cadernos do rapaz
umas frutinhas de mata-cavalo. Ele tinha comido aquele veneno pensando que eram
pitangas! Seu choro atraiu as outras velhas. Elas resolveram dar-lhe um enterro
digno. E ficaram velando-o no jardim. No outro dia, cedo, foram providenciar o
funeral.
Um grupo de patricinhas
saiu da casa do vizinho, onde houvera uma balada na noite anterior. Ao passar
pelo jardim das doceiras, viram o cadáver de Nego-Gato.
– Que gato! Por que ele
está dormindo ali?
– Sei lá. Vamos
perguntar.
E entraram.
– Ele não tá dormindo
não, tá morto!
– Não parece. É tão
bonito...
Uma loira – que era a
líder do grupinho – aproximou-se de Nego-Gato e acariciou seu rosto. Ele
acordou. Não tinha morrido porque era mais forte que um cavalo. Mas as frutas
ainda estavam em seu estômago, e ele vomitou nos pés das garotas, que saíram
correndo e berrando, enojadas. Só uma ficou. Uma linda índia, de cabelos
compridos e negros e olhos amendoados.
Pela segunda vez nessa
história, foi amor à primeira vista. Os dois começaram a conversar, um contou
sua vida ao outro. A índia disse que seu pai era um acionista rico, que tinha
se separado da mãe daquela loirinha líder das patricinhas para casar com uma
índia que encontrara em uma viagem. Quando ficou viúvo, reatou com a ex-mulher,
que se vingava da rival na filha desta, fazendo-a servir de dama de companhia
para sua própria filha, uma consumista fútil e sem cérebro.
O sonho da amada de
Nego-Gato era voltar para o Amazonas, para a tribo de sua mãe. E eles
resolveram correr juntos atrás desse sonho; com a ajuda e conivência das
doceiras, que estavam muito felizes por seu Nego-Gato ter ressuscitado.
Com pouco dinheiro e algumas caronas, eles chegaram a
seu destino: a mesma tribo Yanomami onde se tinha alojado um certo astro do
rock inglês e célebre. Como Nego-Gato sabia falar inglês, esse músico ensinou-o
a tocar alguns instrumentos e depois de alguns anos na tribo, Nego-Gato e sua
índia saíram numa turnê musical pelo Brasil. Contavam suas histórias nas
músicas e conseguiram um bom dinheiro, que doaram. Ainda hoje fazem seus shows
e vivem muito felizes. Combinaram que quando a morte os separasse, o outro
trataria de contar sua história no estrangeiro. Mas nenhum dos dois está
ansioso por deixar o país.
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