domingo, 18 de dezembro de 2011

Amor Depois do Amor

        Por Kátia Mota

        Sem dúvida já era dia. Não tinha como precisar horário exato, engraçado como esses lugares são estrategicamente projetados para enganar os sentidos, todos os sentidos. Não sabia as horas, se fazia frio, tudo conspirava para ilusão de que o tempo não passa.  Os espelhos projetavam todos os movimentos, refletidos em cada ângulo, com todos os detalhes de luzes e sombras. As luzes indiretas, meia luz, música, o vinho sobre a mesinha e suas taças com fundos magenta denunciando o entorpecimento anterior. Dia, sem dúvida já era dia.

        Virou-se um pouco na cama e sentiu seu corpo cansado. Olhando para cima viu seu corpo nú sozinho, nesse ambiente essa visão era desoladora, deveria ser proibido olhar o corpo despido sozinho entre lençóis de cetim refletido no espelho, como se a visão da nudez só fosse completa se os corpos estivessem entrelaçados.

        O único som vinha do banheiro, água. Teve o cuidado de se levantar sem acordá-la.  O que a havia levado até lá? Perdeu a cabeça? Estaria louca? Não conseguiu dizer não. Não conseguia dizer não, não para ele e sim para ela mesma.  Era para ser só uma noite sozinha, como tantas outras. Dessa vez resolveu ver um filme sozinha, como tantos outros. Jantar na praça de alimentação no shopping, como tantas vezes. Onde estaria com a cabeça?

        Os trailers já estavam sendo exibidos quando ele entrou, um sobressalto, quando a mão tocou seu braço. Sacudida com o timbre da voz: “Posso me sentar aqui?” Não esperou a resposta, talvez o algo nela denunciasse a solidão. O filme começou, ele olhou para ela e sorriu, um sorriso condescendente de quem garantia que estava tudo bem. O braço descansando no apoio do assento roçou no dela várias vezes, na última ela não se moveu, assim como não moveu quando os joelhos também se tocaram, permitiu que o choque caminhasse pelas veias. O perfume que desprendia dele, passeava pelas narinas se alojando no estômago.

        Uma fita francesa, adorava filmes franceses, a poesia no subjetivo. Só via esses filmes sozinha, subjetivo. Um pouco de poesia no cotidiano.  O dia-a-dia era bom, garantia que tudo corresse bem, garantia que tudo estava no devido lugar, até as viagens do marido faziam parte desse cotidiano, assim como o retorno. Mas a beleza... Tinha paixão pela beleza das pequenas coisas, dos devaneios perdidos no final de tarde laranja, coisas que só ela via, uma palavra terna no telefone inesperadamente durante o dia, ou um email dizendo que sentia sua falta, ou simplesmente apoiar a cabeça no peito e comentar a beleza da passagem do livro que estava lendo. Essas e todas as outras detalhes que  faziam parte somente do seu mundo imaginário.

       Em determinada cena, algo triste e ele olhou para ela, esperava surpreende-la chorando. Um olhar faminto, assim o definiu. Ele tinha “olhos famintos”. Surpreendeu-o com um leve sorriso quando ele esperava o pranto, a recordação da expressão que criara para definir pessoas com olhos inteligentes, um olhar de quem tinha muito a dizer a fez sorrir. Esse tipo de olhar era raro, era o tipo de olhar que a calava. Olhos grandes, emoldurados por cílios espessos, escuros e profundos, tão profundos quanto à fome que neles continha. O rapaz voltou os olhos para a tela, fugiu do sorriso.

        Viu-se analisando o perfil. Nariz reto, barba. “Todos os homens deveriam ter barba.”. Era incapaz de confessar mas barba era um fetiche. O marido não gostava de barba. Subiu a manga da blusa até um pouco acima do cotovelo, assim deixando a pele nua roçar no antebraço dele quando apoiou também o braço no apoio. Ele não retirou o braço. Ajeitou a perna que comprimiu um pouco mais contra a dela que também não a retirou.

          Mais para o final do filme as lágrimas corriam involuntariamente pelo seu rosto, não pela dor do personagem, não pelo momento do filme, talvez por ela mesma. Talvez pela beleza do momento em estar oferecendo e sendo aceita, simplesmente aceita, sem nenhuma condição, convenção, formulação ou pré-requisito.  Pega nesse flagra, as lágrimas não podiam mais ser contidas, rompeu as barreiras e a inundou. Chorou copiosamente. Sentiu os dedos fortes passando levemente em seus olhos, cuidadosos. E os olhos famintos dizendo que estava tudo bem. Passou o braço sobre os ombros dela e a trouxe para si, deixando-a chorar o que tivesse para chorar.

          Quando as letras subiam na tela e as luzes foram acesas ele se levantou, olhou para ela que abria a bolsa em busca do espelho para tentar se recompor, não esperava que ele a esperasse. Olhou para cima e lá estava, alto tal qual um deus grego sob um pedestal. “Está com fome?". Saíram do cinema e já na praça de alimentação, depois dos pedidos, se viu surpresa ante a pergunta:
          "Qual o seu nome?". – Porque a pergunta agora já que havia tanta intimidade entre eles? Conheciam-se desde sempre.
          "Ana" mentiu. Porque mentiu? Mentiu porque talvez tivesse de ser assim, porque não era uma mentira, era apenas outra realidade. Conversaram sobre o filme, conversaram sobre o que ela achava, bebeu devagar cada palavra que ele dizia a respeito do que ele pensava. Descobriu que ele leu os mesmos autores que ela, viu as mesmas nuances. Agarrava-se aos fios invisíveis do tempo tentando conter o avanço e manter o momento.

        "Tenho de ir." Disse.
        "Está de carro? Posso te levar?"
        Abandonou tudo que conhecia a respeito de prudência. Aceitou a carona, aceitou o desvio, aceitou o acaso. Ele conduzia tudo. Conduzia cada situação, gostava disso, não ter que decidir só aceitar. Aceitar o que queria, pois ele a conduzia em direção a tudo que desejava.

       Desejou as mãos, desejou o corpo. Desejou quando lentamente ele tirou cada peça da sua roupa a olhando nos olhos, faminto. Desejou o olhar faminto. O corpo faminto. A imagem refletida no teto daquele homem possuindo seu corpo passivo aos seus desejos. Abandonou-se aos caprichos daquele desconhecido, numa deliciosa violência ao seus preceitos morais. Assim abandonada não sentia culpa. A culpa não era dela, nem dele, o culpado era o abandono.

       Quase morte. Um gozo de morte. Diversas mortes. Diversos gozos.

       Exausta numa luta desigual entre o corpo e a razão, entre braços, cheiros e pêlos, o beijos, os membros e a noite que chegava ao fim, dormiu. Um sono sem sonhos, nem pesadelos, só o alívio do cansaço.

       Era dia. Sem dúvida agora era dia. O som do chuveiro. Doía-lhe deixar as recordações desses momentos de posse de seu próprio corpo, dessa mulher desconhecida, adormecida. Era hora.

       Ligou para o serviço de táxi. Deixou algum dinheiro debaixo da taça de vinho, fechou a porta atrás de si. Era Cecília.

(Titulo baseado na canção Amor depues del amor - Fito Paez)



Kátia Mota: A incognita me define melhor. Gosto de escrever. Gosto do universo ficcional.
Estudante de Letras.
Escrevo no Katia em anexo

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