Por Flavia Marques
Luana lançou um olhar de súplica para Dona Iolanda e Anastácia, a menina ruiva, fez sinal para que obedecesse a Chico porque senão ele mudaria o nome para Chico Trinta e Uma Almas antes que elas dissessem “valha-me Deus!”. Não era o homem certo para se rejeitar.
Subiram as escadas e Trinta Almas abriu a porta de um quarto e tirou de lá, pendurado pelo pescoço, o vereador da cidade e uma mulata que, dizem, tem o poder de amarrar a ela qualquer homem com suas perícias de cama.
- Vão trepar noutro lugar... Que eu gostei desse aqui – ele disse.
Luana olhou para aquele homem sem um olho, de dentes amarelos e cheiro de mato. Ao invés de medo, teve a certeza de estar vendo num espelho a mesma dor, a mesma tristeza que ela carregava dentro de si. Chegou perto de Trinta Almas bem devagarinho e sussurrou ao seu ouvido:
- Eu sei.
Tirou seu vestidinho como se tirasse todas as suas mágoas da vida inteira, pegou a mão daquele infeliz à sua frente e colocou em seus peitos. Sentiu sua aspereza e tremeu. Trinta Almas deu um pulo para trás, sentou na beirada da cama e perguntou:
- Qual a sua especialidade menina?
Luana, que já tinha visto de quase tudo na vida, mesmo com tão pouca idade, viu ali a chance de se livrar de deitar com um homem sem desejo outra vez na vida e respondeu:
- Minha especialidade é contar histórias.
Trinta Almas deu uma gargalhada tão alta que espantou os trovões, fez calar os cachorros e a chuva parou.
- Então menina, me conte uma história. Se eu gostar, te pago com generosidade. Se não... Te carrego daqui e vai morar comigo nos descampados e nas beiras dos rios até eu achar que é sua hora de ver Deus.
E Luana começou a contar sua própria história e a de quem conheceu pelo caminho até o dia amanhecer. Quando o sol forçou entrada pelas janelas, Trinta Almas pagou e disse:
- Volto mais tarde para ouvir o fim disso.
E assim foi durante dias, semanas e meses. Trinta Almas vinha ver Luana Laurentino e ouvia suas histórias vividas e inventadas como um menino desamparado até adormecer. E tinha por hábito segurar nos peitinhos da menina enquanto ela falava. Nunca avançou porque não suportava interromper as histórias pelas quais passava o dia esperando aparvalhado. Sentia que seu coração já não lhe pertencia e que sua vida não valia nada sem aquelas noites na casa de Dona Iolanda.
Um dia Luana o recebeu como sempre: tirou seu vestidinho e deitou ao seu lado na cama, mas já não queria contar histórias. Queria que aquele homem de rosto encovado e cheiro de mato possuísse seu corpinho com fúria e rasgasse sua pele com suas mãos de lobo selvagem. Trinta Almas hesitou, mas finalmente percebeu que se pertenciam há muito tempo, antes mesmo de se conhecerem. Beijou cada pedaço de Luana como se fossem páginas de um livro, percorreu seus dentes com a língua, como se roubasse suas palavras, e a penetrou como se pudesse entrar nas histórias e viver lá para sempre.
Ao amanhecer, desnorteado como um recém-nascido, virou-se para a mulher ao seu lado e perguntou:
- Que faremos agora?!
- Agora, homem, viveremos nos descampados e nas beiras dos rios até eu achar que é sua hora de ver Deus.
Para maiores informações sobre Flavia Marques,
acesse o blog pessoal da autora.
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