Por Flavia Marques
Ela se chamava Luana Laurentino. Tinha 15 anos de guerra e dor. Sua primeira recordação é de ter disputado, no lixo, um pedaço de pão com um urubu. Devia ter uns quatro anos. Não se lembra dos seus pais, só de estradas, abrigos e homens que roubaram sua inocência em troca de alguns centavos ou um prato de comida.
Pois bem. Um dia descobriu, meio sem querer, que possuía um dom de convencimento fora do normal. Não lia nem escrevia, mas as palavras em sua boca se misturavam à sua saliva e borboleteavam pela língua, até saírem numa revoada multicolorida de frases bem escolhidas, para cumprir com um só objetivo: trazer para Luana qualquer coisa que desejasse.
Foi assim que Luana Laurentino conseguiu um emprego num bordel de beira de estrada em uma dessas muito pequenas e tristes cidadezinhas, onde o tempo leva uma eternidade e as pessoas envelhecem antes da hora. Conheceu Dona Iolanda, a dona do estabelecimento, na feira e se ofereceu para ajudar a carregar as sacolas cheias de verduras para o jantar de sexta-feira, que era o mais caprichado da casa de tolerância. Enquanto caminhava ao lado da senhora de seios fartos, decote generoso e longos cabelos pretos, falou de suas dificuldades e de como conseguiu chegar viva até ali.
À porta do bordel, recebeu a proposta que esperava:
À porta do bordel, recebeu a proposta que esperava:
- Luana? É esse o seu nome, não é?
- Sim, senhora.
- Você é muito magrinha para uma de minhas meninas, mas preciso de uma ajudante nas tarefas de casa. Por enquanto não posso te pagar muito, mas terá comida farta e teto sobre a cabeça. O que acha?
Não é preciso nem dizer que Luana aceitou na hora. Entrou na casa curiosa com o silêncio das duas da tarde e pensou que estivesse em sua imaginação: ria de como era tudo colorido, cheio de flores e bonequinhas com cara de louça sobre almofadas de cetim. Pelas paredes, meninas seminuas sorriam de dentro das molduras. Dona Iolanda foi lhe apresentando os cômodos e suas funções mais rápido do que ela podia memorizar, mas não estava preocupada com isso. Comparava seu corpinho surrado e magro aos das fotos e pensava no dia em que ela estaria ali.
De repente, ouviu uma coisa que a tirou de seus sonhos de puta iniciante:
- E este é o seu quarto.
- Me-me-meu quarto?! Nunca tive um quarto só para mim!
- Não fique muito entusiasmada. É só o lugar onde costumamos guardar os produtos de limpeza, as vassouras... Vou colocar um colchão para você. Mas antes venha me ajudar na cozinha porque precisamos começar a fazer o jantar.
Descascou batatas, cebolas e alhos. Picou legumes e verduras e lavou louças com tanta rapidez e eficiência que dona Iolanda deu um sorrisinho com o canto da boca e sentenciou:
- Acho que você presta para alguma coisa, menina!Aos poucos as meninas foram descendo e sendo apresentadas a mais nova moradora do sobrado verde de janelas azuis, que ficava à margem oposta a das casas de respeito. Era uma confusão de vozes e histórias e perguntas. Pela primeira vez na vida, Luana Laurentino se viu rindo sem saber o motivo.
Às seis horas, todas subiram numa fila de pezinhos descalços e apressados para descer uma hora depois vestidas de mulher da vida, com olhos maquiados e bocas vermelhas, plumas nos pescoços e sapatos tão altos que faziam seus joelhos tremerem ao andar. Escondida debaixo da escada ou atrás das cortinas, Luana observava tudo com olhos de esfomeada. Cada gesto, cada palavra eram repetidos depois, quando se trancava no seu quartinho de vassouras e vestia as roupinhas que as meninas punham para lavar.
Desempenhava tão bem suas funções de ajudante que ganhou a confiança de Dona Iolanda e, acrescentou as suas atribuições, pouco a pouco, as funções da proprietária do bordel. Era a ela que as meninas pediam tudo o que precisavam, ela que negociava os preços com os feirantes e mantinha a casa em perfeito funcionamento. Dona Iolanda, senhora de olhos experientes, viu a menina magricela se tornar uma bonita mulher, com curvas harmoniosas, seios firmes e pequeninos com biquinhos que apontavam para a frente, como se indicassem o caminho do futuro. Luana Laurentino não usou mal a vida mais tranquila de quem tem onde morar e comer e aprendeu a ler, escrever e fazer contas com as meninas mais velhas da casa, de forma que desistiu da vida de puta e abraçou a de administradora, afirmando de si para si que não voltaria a se deitar com quem quer que fosse sem amor.
Uma noite de muita chuva, quando os trovões abalaram as paredes do sobrado e os homens deixaram pegadas de lama ao pisar o chão de madeira, Chico Trinta Almas entrou pelo salão pondo fogo pelas ventas e pediu a bebida mais forte que houvesse no bar. Tinha esse nome porque matou 30 homens num só dia de fúria, por esses terem zombado dele em diferentes momentos de sua vida, pois ele só possuía um olho. O outro fora bicado por um galo no quintal de casa quando era um molequinho de três anos.
Luana foi servir a bebida de Chico Trinta Almas e Dona Iolanda viu quando o homem arregalou o único olho para o corpinho da menina e a pegou pela mão:
- Suba! Essa noite vou te mostrar o que faz um homem de verdade.
Continua no próximo sábado...
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